25-08-07 Sábado (Continuação)
Pois é, mandei o relato depois de treze horas em dois dias no computador e sigo sob chuva e frio para o lado brasileiro.
Antes dou uma olhada na previsão meteorológica que revela que soprará um vento sul até sexta feira. Então ficou decidido meu destino. O pelotão volta suas armas para o norte, pois além de ser contra o vento, não tenho documentos do carro e a prefectura (que detonou minha viagem de caiaque no Uruguai) estará me esperando. Além disto, aquela vez eu sai do Uruguai na moita, minha pequena vingança. Ano passado fui a Argentina com minha xtz 125 para agradecer a quem me ajudou em parte do caminho. Dali passei ao Uruguai e tive problemas com um boludo na fronteira. O cara mandou eu voltar, eu recusei e ele disse que iria me prender. Assim mesmo não recuei e fiquei ali até às 3 h da manhã e ele foi embora. Os colegas dele resolveram me deixar passar e segui pelo Uruguai para agradecer a quem me ajudou no trecho em que fui de bicicleta rebocando caiaque e carga (mais de 100 kg) por 650 km. Aproveitei e segui pela costa para saber onde poderia velejar mais ao sul caso decidisse viajar em windcar. Descobri que seria en La Coronilla, cerca de 25 km ao sul do Chuí.
Aquela viagem de moto foi de 4500 km e na fronteira, a mesma onde tenho de passar agora, de raiva acelerei quando os caras da aduana saíram para ver quem se aproximava. Estou com aquela porcariada de papéis burocráticos deles jogados em uma gaveta.
Atravessei a ponte e adiós!
Então é melhor não mexer no vespeiro!
Vou dormir e um frio de rachar acompanhado de chuva se faz sentir.
27-08-07 Segunda
Tchê, cama com dois cobertores grossos e eu dormindo que nem no sarcófago. Cabeça tapada e encolhido sob as cobertas. A chuva é tão forte que dá de ouvir o barulho da água correndo nas calhas. Ligo a tv, faz 4ºC.
Tomo um banho quente e sigo meu destino.
Vou para a rodoviária e o ônibus parte só as 10:30 h. Aproveito para tomar um delicioso café com leite e volto para a rodoviária. Estou sentado lá no fim e duas pombas entram no prédio e vem caminhando até o lado do meu pé. Fico maravilhado com a calma e a tranquilidade do bichinho. Tiro uma foto da pomba e vou para o ônibus.
Que delícia! Ali dentro está quentinho e vou me deliciando com o calor enquanto vejo a paisagem. Tudo que é bom dura pouco!
Logo chegamos perto do farol. Desembarco no vento gelado e sigo para o farol. Pelo menos parou de chover.
Encontro o sub Gama e o sargento Pepolim, super legal e amigo de Magno e Franklin. Eles me oferecem ajuda e Pepolim chega a me oferecer dois óculos para proteger os olhos. Agradeço de coração, mas desde o acidente naquela saida de riacho-rio não uso mais óculos de proteção.
Arrumo as coisas, está tudo certo. Vento sul até sexta.
Agora chegou a minha hora.
Sigo a estradinha de terra até o asfalto. Ali é só dobrar à direita e seguir para a praia...
O pelotão está com o coração apertado. A sensação é de derrota, como se algo estivesse faltando oprime o peito cheio de cicatrizes de um pelotão que não sabe o que é paz!
- Soldado!
- Sim tenente!
- Aquele acordo ou tratado foi entre que países?
- Portugal e Espanha, senhor!
- A República do Rio Grande participou dele?
- Não, senhor!
- Então porque não vamos a La Coronilla?
- Porque sopra vento sul, porque por várias vezes atravessamos a fronteira sem permissão, porque a prefectura...
- Não me fale destes boludos!
- Dizem que nem bicicleta pode descer para a praia...
- Com essa vela de mais de cinco metros de altura somos visíveis como um holofote em corredor escuro...
- Então você quer dizer que viajamos 800 km no pior inverno dos últimos 44 anos, contra o vento, com cicatrizes que não curaram ainda, atoleiros, acidentes, lutas sem fim... Para simplesmente virarem as costas e desistirem sem tentar?
Silêncio...
- Soldados, vocês deveriam se orgulhar, vocês foram forjados no ardor das batalhas, no orgulho de ser do sul, nos costumes e na tradição.
- Eu não acredito que ninguém aqui do pelotão esteja satisfeito consigo mesmo.
- Nós temos origem em um povo que sabe dizer não e aprende desde cedo a fazer seu próprio caminho, mesmo que pareça não ter fim ou mesmo que alguns tombem no campo de batalha.
- O que sobra disto tudo não é um ou outro soldado, mas o legado que deixamos para as outras gerações.
- Todos sabemos que um Gaúcho não se dobra em combate e que se ele cair outros cem tomarão seu lugar.
- Calar baionetas, nós vamos para o Uruguai ou onde quer que seja!
- O pelotão inteiro explode de alegria e os hurras são ouvidos até mesmo para os lados da banda oriental.
E assim o pelotão dobra para a esquerda e segue para a fronteira.
Já chegando na ponte, peço a um senhor tirar uma foto. Para minha agradável surpresa sua linda filha se aproxima para tirar a foto ao lado.
Nem entrei no Uruguai e já deram um jeito de machucar meu coração...
O primeiro prédio ao passar a ponte é o da Prefectura Naval Nacional, mas devido aos gritos de hurras do pelotão todos estão aquartelados e fingem não ver.
Resoluto, o pelotão se dirige para a aduana e fala com o simpático sr Gerardo!
Ele nem pede minha identidade...
- Puedo seguir por el pavimiento?
- Si!
- Si no vuelvo hoy, no hay problema?
- No!
- Puedo sacar una foto de ud.?
- Si!
Não é por nada, mas se os boludos me pararem adiante tenho a foto com quem me deixou passar.
Vou em frente, nem olho para trás!
Quando estou longe o suficiente dou um salto no ar.
Lembrei da cena final do filme Expresso da Meia noite, quando um cara ficou preso em uma prisão Turca por muitos anos. Quase ficou louco, mas um dia, sem querer, matou o guarda que mais lhe torturava.
Desesperado, colocou as roupas do Guarda e foi em direção ao portão de saída da prisão. As portas foram se abrindo até que ficou do lado de fora daquela terrível prisão. Quando estava longe o suficiente, ele deu um salto no ar.
O pelotão está radiante, não cabe em si de tanta alegria.
- Senhor, agora é só seguir contra o vento pelo asfalto e voltar de La Coronilla velejando...
- Negativo! Nós vamos pela praia!
- Mas senhor...
- Isto é uma ordem soldado!
Entro por ruas, mas o fim delas é nas dunas altas. Pergunto aos moradores se hay paso!
- Es mejor que te vayas cerca de la prefectura...
Dou um largo sorriso e vou para as dunas altas.
Com um pouco de dificuldade chego a praia e sigo para o sul.
Para minha surpresa o vento sul pega um pouco de través. Acho que dá de encarar na vela.
- Mas senhor! Vai estragar nosso disfarce, vamos ser vistos com esta vela montada...
- Eles que corram atrás!
Monto a vela, o peito parece pequeno para tanta felicidade. Eu tenho a chance de poder lutar para realizar o objetivo então vou entrar nessa com tudo.
Meus pés e o cabo de puxar estão sujos de óleo.
- Tenente, isso sim é que é jogo sujo!
São 13 h, não quero saber nem de comer nem de beber água até chegar a La Coronilla!
Vou partes a pano, partes no estilo "patinete" e partes puxando, pois o vento está diminuindo rapidamente.
IUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHHHUUUUUUUUUUUUUU!
Como é bom jogar a vida ao destino e ter estes momentos máximos de alegria, de liberdade e poder ao mesmo tempo. São momentos que tu mesmo constrói e que nada consegue apagar depois. São tão intensos que ficam para sempre. Um destes foi quando entrei entre Paraguai e Argentina, depois de vir remando de Brasília por dois meses e seguir assim depois de tantos percalços.
São vitórias alcançadas através da ajuda de familiares, amigos e pessoas maravilhosas que vou conhecendo nas trilhas da vida.
A vocês eu dedico estas pequenas vitórias, pois elas não são apenas vitórias, são realizações dos sonhos de muitos que não tem a felicidade ou oportunidade de fazer o que estou fazendo e a alegria que sentem por mim é tão ou mais intensa do que a minha própria.
É por isto que nunca desisto, acho que ajudo a realizar pequenos sonhos dos outros além dos meus.
A costa aqui é de dunas altas cobertas de matos de acácias e se precisar é fácil de achar lugar ali no meio para passar a noite.
Vejo leões, lobos, papa-terras gigantes e até uma tartaruga marinha que não havia visto até então, todos mortos.
Há muitas gaivotas e quero-queros.
Depois se aproxima uma carroça com três garotos simpáticos (Franklim, Brian e Arturo). O mar começa a subir e a praia fica pequena. De moto eu passei aqui de noite e não vi muitas coisas que vejo agora.
Adiante eu vejo a construção onde desci com a moto para a praia, é La Coronilla, o destino perseguido arduamente contra o vento por mais de 800 km...
Já não tem mais vento, mas as pernas estão no rítmo do coração e nem precisam de alongamentos.
Agora o pelotão é coração!
Adiante vejo um filhote de baleia. Está mais inteiro do que aquele que encontrei na barra, em São José do Norte.
Mais um pouco e chego na construção. O mar está quase batendo nos barrancos e a cor da argila ali é verde...
Algumas construções o mar derrubou e outras estão condenadas... Os caras constroem nas dunas, cercam a beira do mar e depois o mar retoma...
Às 17 h chego ali, naquela parte as ondas estão furiosas e tiro umas fotos no trapiche de concreto onde as ondas batem. Coloco o Imortal ali e tiro boas fotos.
- Senhor conseguimos...
- Negativo! Vamos em frente!
E assim seguimos em frente até que chegamos a saída de um rio. O sol aparece e tudo fica mais lindo. Do outro lado ainda tem uns dois km de praia que terminam em uns rochedos, mas para passar há uma ponte pênsil.
Ela não tem largura suficiente para o Imortal. Tiro fotos dali e dou por encerrada esta etapa da viagem.
- Senhor, este cerro logo depois é onde está localizada a fortaleza de Santa Tereza. Vamos retomá-la?
- Não. Como posso pelear com um povo tão amável e hospitaleiro?
- Vocês viram aqueles garotos?
- O Uruguay não é o que as autoridades representam. Eles são nossos amigos.
- Que fiquem as fortalezas e Colônia do Sacramento como um presente dos Riograndenses a esse povo amigo.
- Vamos para casa!
Encontro outro garoto de uns dez anos (Sebastian) que corre com seu cavalo pela beira do mar.
Assim como veio, o pelotão se volta para o norte e segue em frente.
- Onde vamos dormir?
- Onde escurecer, como sempre!
Por volta de 18 h subo uma estradinha pelo meio das dunas e enfio carro e barraca entre uma brecha no mato de acácias.
Arrumo tudo e como minha granola assistindo ao espetacular surgimento da lua cheia no mar.
Depois um espetacular reflexo nas águas do Atlântico servem como palco de fundo ao dia mais importante da jornada.
28-08-07 Terça
São 8:36 h, escrevo sentado ao lado da barraca e hay viento, sólo no sé de donde!
- Senhor, como se sente depois de tudo?
- Em paz comigo mesmo!
- A questão é: por quanto tempo?
Fez um frio do cão esta noite, mas já estamos acostumados.
Arrumo tudo e às 10 horas o pelotão está perfilado na praia.
O vento é terral e o avanço é a pano.
O que levei 4 h ontem fiz em hora e meia hoje. Passo do ponto onde saí na praia e sigo até os molhes, só que do lado uruguaio. Amarro o Imortal nas pedras e depois sigo para La Coronilla.
Desmonto a vela, atravesso as dunas e encontro a menina de ontem (suspiro profundo). Passo pela aduana e não resisto:
Tiro uma foto do Imortal bem na frente do prédio da prefectura, qui qui ri qui qui!
- Senhor qual é o placar?
- Pelotão (duas de bike, duas de moto e uma de windcar) 5 X 1 Prefectura
Passo pelo farol para agradecer. Iria seguir em frente, mas descubro que aqui na barra do Chuí tem net, mas só abre às 15 h. Resolvo ficar por aqui, pois o pelotão pertence ao cromossomo XY, ou seja, não pode ficar sozinho numa ilha deserta com um mulherão, ele tem que contar pros outros, hehehehheh
Amanhã de manhã eu sigo para o norte, mas acho que já fizemos história.
Um grande abraço
André