Amigos... Como diz meu irmão o Paulo, "exercitei a tolerância" contra esse corno de vento até onde pude, mas o chifrudo descobriu que comecei a voltar e soprou do norte por mais de dez dias.
Tive crises histéricas galopantes até minhas forças se esvaírem e me acalmar. Fiquei mais de três dias com fortes dores no ombro esquerdo por causa de um tombo antes de chegar em Rio Grande. Azar da dor, pois agora vou até o fim. Certamente algo ruim aconteceu, mas agora é que não vou parar.
Cerrações intensas, tempestades, travessias de riachos obrigaram a desmontar as bagagens e atravessar diversas vezes a barra de um rio. Outro tive que atravessar a nado e buscar alguém para conseguir um caíque. Afora tempestades e muita sugeira o pelotão terminou uma etapa dificílima e chegou a Quintão. Dos 1630 km previstos, 1300 km já se foram.
Pensei que seria um passeio, mas me enganei duplamente, tanto na ida quanto na volta.
Estou louco para acabar com isto, mas agora que me lambuzei vou lamber o prato.
Aí vai a parte desde R Grande até Quintão, espero que gostem.
Rio Grande 2-09-07
Como fiquei transcrevendo o diário até às 6 h da manhã, acordei só às 10:30 h e um amigo do Henri ligou dizendo que viria assar umas cavalinhas que ganhou. Paulo e Marília são muito simpáticos e o peixe assado ficou delicioso.
Pelas 17 h vamos ao Grupamento para eu seguir minha viagem. Fiquei lisonjeado com o desejo de D Gesine querer ir junto, pois já estava meio frio e uma cerração ia tomando forma.
Retiro o carro do Grupamento Naval do Sul e vamos até a casa do Sr Sadi, amigo do Lúcio. O problema é que a cerração ficou forte e ele achou melhor deixar para o dia seguinte.
Deixamos o carro na casa dele ali perto do canal e retornamos a casa do Henri.
3-09-07 segunda
Cedo o Henri me leva e ajuda a embarcar o Imortal no "Cigano do amor" (foto) , barco do sr Sadi.
Que grande amigo que é o Henri, espero ter a oportunidade de um dia retribuir um pouco do muito que ele e sua família fizeram por mim.
Obrigado amigos.
No meio do caminho cruzamos com o barco de meu amigo Chico Preto, ele estava levando muitas pessoas em seu barco para R Grande e acena enquanto eu tiro uma foto.
Desembarcamos no multicolorido trapiche da vila Quinta seção da Barra e ali fico conhecendo o seu Lírio que me convida a tomar um café na sua casa.
Encontro dona Ana, esposa de seu Chico e não sabe quando ele volta.
Tomo o café e resolvo seguir para os molhes. que pessoa gentil foi seu Lírio.
Esporões x "miguelitos"
Tchê, se na vinda a praia estava repleta de peixes-porcos e papaterras (jogados fora por um barco pesqueiro porque não tinham tamanho comercial), agora estava pior, pois a praia estava tomada de bagres de todos os tamanhos (foto).
Pior, eles têm esporões que ficam abertos e funcionam como "miguelitos", triângulos de pregos que são jogados nas estradas para furar pneus, seja para assaltos, seja pela polícia para deter suspeitos.
É impressionante, não há a mínima possibilidade de velejar nesse campo minado e sou obrigado a passar puxando e cuidar para nem eu ou o Imortal sermos furados por tão inusitada experiência.
Puxo por mais de duas horas e o nº parece diminuir. Então resolvo velejar contra o vento, subindo e descendo a praia numa orça perigosa entre os bichos.
O resultado é que furaram os pneus por três vezes em menos de 40 km e antes, em mais de 1060 km apenas havia furado duas vezes, uma delas justo neste trecho. É que os pescadores antes de entrar na barra da lagoa se desfazem dos peixes não comerciais ou protegidos pelo defenso, como o bagre nesta época.
Tiro fotos ao lado de um pesqueiro naufragado (foto abaixo) .
O pior de tudo é que entrou uma forte cerração perto de 17 h e fiquei completamente perdido, pois sequer as dunas eu enxergava. Ainda por cima tive que desmontar a vela e seguir puxando, pois se fura mais um pneu eu não tenho estepe e se fura o carro não sai de onde está.
Pelo GPS sabia que estava perto de um povoado, mas onde?
Te vira cara, dá um jeito!
Vi uma coisa na escuridão, eram traves de um campo de futebol. Subo mais e vejo outro vulto mais para cima. É uma casinha sem teto, mas as paredes vão me proteger do vento pelo menos. Armo o sarcófago ali no meio no escuro mesmo.
Mesmo no sufoco escuto trovoadas, só faltava...
Desaba violento temporal com raios, trovoadas e todo o resto do show de horror.
Abrigado do pior do vento, o soldado sarcófago defendeu muito bem o pelotão e ganhou o respeito de todos. Êta baixinho macanudo, tchê!
Pior que a tempestade foi a dor forte no ombro esquerdo com pontadas agudas até que achei uma posição dobrada, como se o braço estivesse numa tipóia.
Certamente foi aquele tombo antes de chegar em R Grande, quando estava andando de "patinete" e caí forte sobre o ombro. Estranho que só foi doer agora. Bueno, cerca de 41 a 48 km se foram.
04-09-07 terça
Agora que se foi a cerração foi que descobri que estou há menos de 1 km do farol-torre do Estreito.
Como sopra nordeste de novo, resolvi antes consertar as câmaras furadas, pois borracheiro agora... sólo yo!
Fiz uma linha de montagem e conserto dentro do que sobrou da casinha.
Acabo partindo só depois das 11 h. Logo depois de passar pelo farol vejo uma casinha familiar: uma casa onde meus hermanos de Rosário foram alojados por um pescador humilde que deu o que tinha e o que não tinha de mantimentos para hospedar tão ilustres hóspedes (afinal eles foram de caiaque desde Rosário-Argentina até o Rio de janeiro pelo mar e remando contra o nordeste). A casinha estava abandonada, mas pelas coordenadas que Daniel Ross me deu e pela foto que vi na página deles era aquela casa mesmo.
Tinha dois andares, uma escadinha por trás e as dunas ao lado.
Vejo algo escrito e tenho a confirmação: Seldo 2007.
Eles passaram por aqui no verão de 2004.
Saio dali alegre e triste, pois meus hermanos talvez não gostem de saber que a casinha está caindo aos pedaços...
O temporal desta noite aprontou mais uma: um riacho grande que cruzei na vinda agora virou um rio forte com água acima dos joelhos. Estava fechado para carros e caminhões, mas a marcha do pelotão é inexorável. Tentei vários pontos e elegi um menos pior.
Dois caras de moto se aproximam e faço sinais para que parem. São de Minas Gerais (BH) e vêm com duas shadows lindas, não sei o que estão fazendo aqui, pois são motos estradeiras.
São Sérgio e Bento e rumam para Montevidéo... Conversamos, tiramos fotos. A moto de Sergio cai na areia e quebra a bolha do párabrisa. Eles resolvem subir seguindo a trilha dos carros dunas acima e eu começo desmontando o carrinho. Cruzo mais de sete vezes de um lado a outro carregando vela, bagageiros, carrinho e coisas. Descobri que sem nada em cima ele flutua...
Remonto tudo do outro lado e descubro que o cano do bagageiro está se rompendo... Soldar onde?
A solução é seguir em frente.
Encontro um bagre gigante e retiro seus esporões como recuerdo.
Estou exausto de esforço da travessia, só agora vi o quanto pesam todas as traquitandas que carrego. Por isto que o vento tem de ser forte para deslocar a mim e ao carrinho.
Como o vento enfraquece sigo puxando, mas estou muito exausto do esforço da travessia. A cerração começa e resolvo parar antes ao avistar uma casa no campo ao fundo, pois não sei o que tem pela frente e é melhor me garantir pois pode vir outra tempestade.
Arrasto pelos campos e lagos e chego na casa que está fechada. Armo a barraca na face sul da casa, assisto ao por de sol e vou dormir ao som de uns pássaros de cabeça preta, peito amarelo e dorso marrom, muito lindos e que disputam as poucas acácias dali para fazer ninho e dormir.
A noite foi de trovoadas, mas choveu pouco desta vez. Andei muito pouco, pois na travessia e na casa do Seldo gastei mais de 3 h.
Para conseguir dormir um pouco tomei uns remédios, pois a dor no ombro tá forte. O remédio foi bom até o efeito passar. Depois não consegui mais dormir. O estranho é que quando levanto a dor diminui muito.
05-09-07 quarta
A chuva desta noite foi fraquinha e amanhece com NW a NE de novo...
Brody, estou extremamente irritado, pois o sul não deu folga na vinda e agora é só vento do norte...
O vento ronda de um lado a outro, partes velejo, partes vou no patinete. Depois puxo um pouco, seguindo só de calção pois está quente, até estranho esse calor depois de tanto frio.
Em um dos riachos encontro um enorme osso de baleia que tem a mesma área do carrinho.
Ás 15 h chego ao farol da conceição, uma torre de metal ao lado do antigo que caiu e é lavado pelo mar.
O tempo etá super estranho e, para me prevenir, paro em umas casas na saída de um riacho a uns 4 km ao norte do farol. Tenho medo da cerração não me deixar ver um possível abrigo no escuro e na cerração forte que tem feito sempre ao final de tarde. Mesmo parando antes das 16 h consegui avançar 23 km. 77 km já se foram. A casinha tem teto de concreto, uma cama com estrado e até uma porta. Chovendo estarei abrigado. A previsão é de NE para toda a semana e minha tática é seguir avançando mesmo assim, melhor que ficar parado.
06-09-07 quinta
Algumas trovoadas durante a noite, mas sem chuva.
Um dos pneus está no chão. Saco!
Encontro um esporão de bagre no pneu e tento remover com o punhal. O corno escapa duas vezes e me fura a mão.
- Senhor, está querendo se matar?
- Apenas curiosidade para saber se meu sangue é vermelho. Não está vendo que o punhal escapou?
Conserto a câmara furada e sigo entre blocos de argila negros que há nesta parte. A praia parece ter pó de café derramado por tudo. O mar está cor de chocolate. Esta coloração se deve ao tipo de plâncton que há por aqui.
antes eu pensava que fosse barro!
Sigo puxando e andando no estilo patinete quando aumentam as rajadas.
Perto de 12 h encontro Tazinho, o mesmo que me ajudou no povoado fantasma depois da barra da lagoa do Peixe. Ele me dá bergamotas e uma garrafinha de água. A que eu tenho etá no fim, ainda é aquela que peguei no banhado em Santa Vitória do Palmar. Mesmo assim está no fim e tenho que pegar mais.
Sigo em frente e logo vejo outro corno de bagre grudado na roda por seu esporão. Não deu outra: pneu furado!
Passo o povoado de Bojuru e mais tarde, já com o céu nublado e sem saber onde dormir resolvo ir pelo certo e dormir em uma casa grande onde dormi na vinda.
07-09-07 Faltam 13 dias para a Revolução Farroupilha!
Amanhece com intensa cerração e vento norte...PQP!
O pior é que dá de andar contra o vento, pois (teoricamente) a praia baixa quando sopra o nordeste. Acontece que a praia é mole e o mar sempre sobe a tarde.
Além disto, para orçar tem de ser vento forte, caso contrário não dá de avançar.
O pior é que a praia está crivada de bagres mortos. andei 1060 km e só furou pneu duas vezes (uma das vezes foi neste trecho). Agora, em menos de 100 km já furou cinco vezes.
É que nesta época os pescadores não podem vender nem comem os bagres e daí jogam fora. É só aproximar de onde há cabos de redes que ali está infestado de peixe morto por tudo. A areia esconde alguns e na orça tenho que subir e descer na região onde o mar deposita os peixes.
Resultado: apesar de cuidar muito, os pneus furam a cada instante. Menos mal que trouxe um kit de reparo. Não é dos melhores, mas está me tirando desse buraco que me meti.
Fico com raiva, mas ao mesmo tempo entendo que os caras tem que viver... Faz parte!
A água que peguei no riacho ao lado da casinha é bem amarelada e com um pouco de terra. Fecho os olhos na hora de beber.
Assim o kinojo cru fica mais "cremoso". Tri bom!
Bactérias verdes vão dissolvendo os peixes porcos na areia, pois deles as gaivotas comem apenas os olhos. Fica aquela meleca na praia super fedorenta e que as rodas do imortal fazem o favor de me jogar pela cara e nas roupas.
Estou com "cheiro de mar".
Os cabelos viraram caldo de cultura de bactérias de peixe porco e plâncton:
- Senhor, até parece o filme dos piratas do Caribe, seus cabelos estão cheios de vermes se movendo...
- É o vento seu palhaço. Além disto não são vermes.
- Isso são "dreads", dá uma aparência de quem passou sabão no cabelo e deixou secar.
- E como vamos "ganhar" as gatas?
- Você viu alguma por aqui?
- Eu só encontrei baleias mais fedorentas que nós.
- Senhor e qual é o sabor do plâncton e das bactérias verdes?
- Olha, é salgado, mas assim mesmo é melhor que o kinojo!
Agora são 9 h, estou há 40 km da barra da Lagoa do Peixe e mais oito do povoado fantasma. Tazinho disse que a barra continua profunda e que terei que atravessar de caíque de novo.
Parto só às 10:30 h com cerração muito densa e vejo muitos carros que aproveitam o feriado para pescar.
Um pessoal oferece peixe e carona. Além do Tazinho mais três ofereceram carona, mas se fosse para fazer isto, a carona que eu pegasse seria direto para casa, pois não faria sentido.
O vento quase zero e eu puxando na esperança de que aumente. No meio do nada surgem carros de repente e até me assusto.
Encontro Claudio que me ajudou na vinda. Ele vem revisar as redes. Adiante passo por um povoado com uma bóia na entrada (Divinéia). A cerração é tão forte que o dia passa e ela não some, pelo contrário, aumenta!
90% dos lobos que vi estão mortos e em decomposição. a maioria estava viva quando passei há um mês.
Há um cheiro forte de decomposição no ar.
Ao caminhar, a cerração era tão intensa que meus supercílios, a barba e a vela coletavam a umidade do ar que acumulava e pingava.
Justo onde começa o parque nacional da Lagoa do Peixe há umas casinhas super bem conservadas onde me abrigo já às 17 h.
No interior há duas camas e espumas que posso utilizar nos estrados. É só colocar a lona plástica por cima e dormir um pouco mais confortável. Só não posso dormir para o lado do ombro esquerdo. Consegui tirar o casaco de neoprene. É só levantar o braço e o ombro estrala como nunca. algo ali deslocou e só me resta agüentar e avançar.
Há prateleiras e alguns utensílios de cozinha.
Pego mais água amarelada ali no riacho ao lado só que coloco na garrafa azul para não ver mais a cor.
Há uma imensa lâmpada de farol pendurada no teto.
08-09-07 sábado
Aqui neste ponto passei há exatamente um mês. Foram mais de 710 km, sendo que 13 dias estive parado por diversos motivos.
Amanheceu com forte cerração de novo e um fraco vento de nordeste que não tem força sequer para deslocar meu carro e a carga; tenho que seguir puxando.
Ontem andei cerca de 22 km e faltam 18 para chegar a barra da Lagoa do Peixe.
- senhor, hoje é sábado, dia de banho...
- Algum voluntário?
- Silêncio...
- Alguém quer usar desodorante?
- Tá louco? Esse troço é gelado!
- Homens, o pelotão está adotando uma tática ninja de cheirar igual ao ambiente. Se nosso cheiro for diferente de peixe podre o inimigo saberá onde estamos. Melhor seguir incógnitos utilizando nossa "camuflagem"!
- Alguns homens estão reclamando dos travesseiros. a barraca é alta demais e a garrafa de água estrala e deixa todo mundo surdo...
- Eu já disse para colocarem a manta de lã por cima, assim abafa os estralos.
Agora são 9 h e a previsão é de que mude o vento só para segunda ou sei lá quando. Por isto tenho que atravessar a barra antes.
Os ventos, fracos ou fortes sopram do quadrante norte há oito dias seguidos. Antes eu rezava por esse maldito, mas ele só aparece quando o pelotão marcha para o norte.
É por essas e outras que eu odeio esse chifrudo com todas minhas forças.
- Senhor, o nosso inimigo só faz se fortalecer, estamos fracos e combalidos de tantas batalhas e parece que os reforços vindos do sul não conseguirão nos ajudar!
- Eu nunca esperei nada diferente disto. Que sirva de lição a vocês, lutem e não esperem ajuda nunca.
- O pelotão terá que sair dessa batalha sem ajuda de ninguém. Quanto a estes chifrudos do nordeste não é a primeira vez que eles se atravessam em nosso caminho e eles não aprenderam que o resultado da batalha entre nossas tropas sempre teve a vitória ao lado do pelotão.
- Vamos vencê-los sempre e tanto, que mesmo em face do maior desencanto o pelotão será lembrado com mais espanto.
É isso aí soldados, não esperem reforços e façam vocês mesmos a nossa estória.
Seremos lembrados como aqueles que foram mais longe combatendo o inimigo e sempre lutando contra as forças do vento.
Aos chifrudos de todos os quadrantes lancem o brado de guerra para eles nunca esquecerem que antes de morrer combateram contra o pelotão farroupilha.
Parto às 10:10 h em meio a neblina e percebo grande quantidade de mariscos de casca branca enormes, os mesmos que comíamos na praia do Cassino. Hoje está proibido coletar estes mariscos em Rio Grande. Parece que estão sumindo...
À medida que avanço, bandos cada vez maiores de Batuíras (maçarico pequeno que corre muito) que sobem e descem correndo de acordo com as ondas para comer tatuíras e outros bichinhos.
Perto de 12 h encontro um grupo que pesca ali na praia. Estão a cavalo e são de Novo Hamburgo (minha cidade natal) e Dois Irmãos. São muito legais e logo sigo em frente.
A quantidade de lobos marinhos mortos impressiona. Certamente a maioria estava viva quando passei rumo ao sul.
Por volta de 14 h finalmente a neblina permite que eu veja um pouco além das dunas.
Para meu espanto, às 15 h finalmente chego a barra da lagoa do Peixe.
Caminho até o povoado que havia no lado sul, mas ali não tem ninguém. Tenho que atravessar, mas ali é largo, profundo e com correnteza. Tenho medo que depois de andar tanto possa ter câimbras ao atravessar a nado na água gelada.
Lá do outro lado tem o povoado onde mora Joel, o que me atravessou na vinda em seu caíque.
- Senhor, esse local é profundo e com correnteza...
- Precisamos atravessar e conseguir um barco para cruzar o Imortal. Ele não pode atravessar todo o pelotão.
- Mas quem irá arriscar a pele?
- Não se preocupem, para as missões arriscadas e difíceis só um de nós conseguirá fazer isto...
- Quem senhor?
- O super tenente Issi!
É verdade, só me resta atravessar nadando para o outro lado nessa água gelada. Como sou macaco velho, levarei por dentro da jaqueta uma garrafa de refrigerante vazia. A possibilidade de dar câimbras é grande, pois caminhei o dia inteiro arrastando o carro na areia mole.
- Tenente Issi. Que frescura é essa?
- Uma bóia, senhor!
- No pelotão isso é coisa de maricón!
- Melhor que morra afogado, mas sem bóias ou similares!
Entro no rio e nem dois passos depois já não dá pé. a correnteza é forte.
- Tenente, que estilo de m... é esse?
- É o estilo cachorrinho para não molhar os cabelos na água gelada...
- Mas será possível?
- Tudo que é "inho" ou "inha" é boiola, fruta, maricón e similares.
- Daqui a pouco o pelotão estará nadando no estilo "borboleta"!
- Me poupe!
- Que faço então, senhor?
- Nade em um estilo macho como o "Krau"!
- Não seria crown, senhor?
- Não, porque se alguém vacilar o pelotão krau!
Demoro em atravessar, mas felizmente tudo deu certo, se bem que lá no meio me arrependi de não ter levado a garrafa vazia.
Começo a caminhar na direção do povoado e nisso vêm três caras na direção de um caique encalhado na lama.
São "J" , Adão e Chico. Peço ajuda para que atravessem o resto do pelotão.
Eles são muito divertidos e concordam em atravessar.
Ajudo a desencalhar o caíque e vamos em direção ao carro. No caminho muitas tainhas estão pulando e eles tarrafeiam na tentativa de capturá-las. O barco vai com dificuldade contra o vento, mas volta rápido, porque colocamos o carro com vela e tudo e foi só caçá-la pro caíque "voar".
Despeço-me dos novos amigos e sigo meu caminho. Às 16:30 h já estou de volta a praia e retomo minha marcha para chegar ainda hoje ao povoado fantasma.
Tive sorte em encontrar os pescadores, pois nem seu Nilton, nem seu Joel estavam no povoado.
Como a praia ficou cheia de atoleiros, só cheguei ao povoado às 18 h. não havia ninguém. que pena!
Vou dormir na mesma casa da outra vez.
09-09-07 domingo
Achei que o pessoal havia saído para recolher redes, mas hoje também não havia ninguém. Devem ter ido para a cidade.
Já comi o kinojo cru com sopa de ervilha (ARGH) e vou deixar uma barra de chocolate aos amigos que tão bem me receberam da outra vez.
Sigo para a praia e logo depois um carro pára. São Jorge e Gabriela. Ele sabe da viagem pelas páginas do POPA. Tiramos fotos e eles seguem seu passeio.
O vento contra aumenta e sigo orçando até chegar ao farol de Mostardas. Ali deixo o carro virar e termina de romper o cano do bagageiro que já estava rachado. SHIT!
Velejo até onde está um senhor na beira da praia e pergunto se ele conhece alguém que tenha solda ali no povoado.
É seu Adão e por incrível coincidência o vizinho dele tem aparelho de solda.
O cara saiu, mas seu Adão me leva de rural até a casa de outro amigo dele que também tem aparelho de solda.
Encontramos seu Paulinho e voltamos com ele e seu aparelho até a casa de Adão.
Seu Paulinho está de boina e bombacha. Tem bigode e acho engraçado de ver ele soldando o Imortal ali no gramado. Parece um gaudério colocando creolina nas bicheiras de uma ovelha deitada no pasto.
Tento mandar notícias pelo telefone público dali, mas está mudo...
Pago seu Paulinho e deixo um pouco de arroz e feijão para a senhora do mercadinho entregar a ele quando eu partir. Sei que seu Adão não aceitaria.
A senhora pergunta se eu quero levar pão...
- O senhor quer "cacetinho"?
- Olha, no meu tempo a gente pedia pão assim:
- Me dá um pão de meio (Kg), um pão de quarto ou tantas cervejinhas.
- As coisas por aqui mudaram, devem ser as correntes migratórias do norte, hehehe
Só falta alguém perguntar:
- De que tamanho?
Às 14 h já estou na peleia de novo e sigo na orça com vento cada vez mais forte. O problema é que a praia ficou cheia de atoleiros mais para cima e o carro atola direto.
O meu astral vai abaixo de zero, tudo fica longe.
Depois de passar outro povoado um senhor avisa que 6 km adiante há umas dessas casinhas abandonadas que os viajantes utilizam como refúgio. Fica escuro e o pneu fura... Merda!
Tenho um ataque de fúria histérica galopante. Estou cansado, não acharei nada no escuro e com cerração. Ainda tenho que trocar a câmara e me virar. Só falta vir um temporal.
Depois de muito tempo gritando como louco ali no escuro me acalmo o suficiente para trocar a câmara e seguir puxando, pois orçar no escuro pode fazer furar o pneu de novo, pois não enxergo os bagres para desviar.
Concentro minhas forças em puxar rápido e assim chego na casa. Mais adiante tem outra que parece maior, mas não gosto de me aproximar no escuro. Essa que vi está trancada, mas tem uma área fora onde posso armar a barraca ao abrigo do vento. Deixo o carro e sigo a pé até a outra. Parece que tem roupas penduradas, deve ter gente. Começo a retornar quando quatro grandes cachorros surgem nas dunas e vêm com tudo na minha direção.
Merda, estou sem o punhal!
Só tenho tempo de me abaixar e jogar areia nos olhos do primeiro corno que chegou mais perto.
Estou cheio de ódio e os cornos sentiram o perigo e ficam rosnando, mas não vieram mais para cima.
Saio logo dali, pois só falta aparecer o dono achando que eu iria roubar algo.
Volto no escuro e encontro o Imortal. Arrasto-o pelas dunas até a primeira casa que vi e armo a barraca no escuro. Foi bom treinar armar sem a lanterna, assim fica fácil quando preciso.
Como a granola e vou dormir. Mesmo assim velejei por mais 30 km.
10-09-07 segunda
Amanhece com vento norte mais forte que ontem.
- Senhor! E os reforços que viriam do sul?
- Esqueçam, teremos que lutar sozinhos! o inimigo (NE) está cada vez mais forte e acho que os reforços não virão mais.
- Vocês acharam que seria fácil para retornar, mas será tão ou mais difícil que a ida.
- Senhor. O Imortal está com o pé ferido de novo.
- O inimigo pensa que ele é o soldado Aquiles e estão tentando acertar em seu calcanhar...
O pneu dianteiro que troquei ontem a noite está no chão de novo. Desmonto e percebo que tem outro ferrão de bagre por dentro.
Tenho mais duas câmaras para consertar antes de partir.
Acabo seguindo em frente só às 11:30 h com NE forte.
Acho que vento sul nunca mais, então não conto com vento nenhum. É melhor lutar assim do que esperar algo que não vem.Para seguir sou mais o pelotão.
Acontece que a praia está mole e mais para cima cheio de areia solta. ali o carro atola mesmo que tenha vento forte.
Então a faixa de manobra se reduz a menos de 5m onde tenho que fazer os jaibs muito rápido antes que as ondas nos atinjam.
Para piorar o mar está completamente cor de chocolate causado pelo plâncton em abundância. Aquilo se deposita na areia em grossas camadas e se gruda nos pneus. Daí os pneus fazem o "favor" de me jogar aquela meleca na cara aliado ao suco de peixe podre mais para cima. O campo de batalha virou merda!
- Senhor, isso aqui está parecendo guerra de bugios (mono carajá). Eles cagam nas mãos e jogam nos outros...
Tchê, que nojo! Que porcaria é essa?
- Pelotão, agora esse é o palco de batalha. O inimigo está usando munição diferente e armas não convencionais.
Cada um por si!
E assim o pelotão teve que adaptar-se novamente e lutar contra as forças do mal.
Minha cara ficou cor de chocolate e o cheiro...
Bueno, aqui não tem ninguém mesmo e não vou me deter por mais esta artimanha do inimigo.
O plâncton na areia lembra pó de café.
É uma luta para nao deixar o carro capotar no contravento, assando as mãos ao manusear o cabo cheio de terra e meleca e tentar evitar areia solta, tanto dentro da água como mais para cima.
E ele vai atolando, atolando, atolando...
PQP, m....!@@##$%%¨%&&&**((((
Pronto, crises histéricas uma depois da outra, berrando e gesticulando contra o vento e praguejando sem parar ali sozinho na beira do mar.
Mando vento, melecas podres, esporões de bagre, redes de pesca e areia solta pra casa do chapéu até dar um branco total.
Paro tudo, fico dentro do carro atolado por minutos até voltar a razão e a capacidade de pensar.
Cara, que ódio, que vontade de meter o punhal em qualquer coisa, mas meu inimigo é covarde demais para se aproximar o suficiente. Inferno!
O cara fica com uma sensação de impotência diante dos elementos, mas a minha vingança é seguir em frente, matando o inimigo aos poucos e avançando sempre, até o desgraçado se arrastar e pedir perdão.
Tenho que puxar e andar quando dá.
As horas passam e paro para conversar com uns pescadores que riem da minha cara barbuda cheia de meleca planctônica, para não dizer "merdônica"..
Eles oferecem carona. Recuso!
- Isso não me serve. Tá louco!
- Se fosse fácil qualquer um faria. Retruco!
Mesmo assim vou avançando, mesmo diante do pior do inimigo. Não é muito mas a vitória está sendo conquistada casa a casa, quarteirão a quarteirão.
Passo pela praia Pai João, São Simão e sigo sem parar nem para beber.
Às 17 h encontro uma casa entre as dunas. não tem ninguém, ótimo!
Ao lado tem um riacho rasinho. Cavo um buraco para coletar água e lavar o carro e a mim daquela meleca nojenta. fico quase meia hora nesse processo, mas o cheiro fica.
Ainda bem que tenho outras roupas para dormir.Sinto um grande alívio ao me ver livre da meleca. A casa é excelente, tem dois quartos com beliches, uma cozinha e sala, afora varandas com sofá na frente e outra menor, nos fundos.
Os caras fizeram uma calha que coleta água da chuva que vai para uma pequena caixa d´água e dali para outro camburão com torneira que deságua na pia, muito engenhoso.
Mesmo assim tomo da minha água amarelada e com areia.
- Senhor, essa água tem até pedrinhas...
- A mulherada não vive chamando o pelotão de "galinha"?
- É, mas o certo é "galo". Não sei porque elas mudaram as coisas. É o galo que fica com várias galinhas...
- É verdade, mas tanto galo ou galinha tem moela e as pedras vão para a moela e ajudam a digerir os alimentos...
- Se o galo come pedras, nós também podemos!
- É verdade!
- Assim ajuda a "digerir" as galinhas!
Bem ou mal, com todos os atoleiros e saindo tarde ainda fiz 20 km.
11-09-07 terça
Agora são 7:22 h. a noite toda a folha de zinco rangeu. Ora parecia som de cachorro latindo ora uma mulher gemendo. Depois estralos fortes e associado aos problemas do ombro acordei às 2h e não consegui mais dormir.
Descubro que faltam menos de 200 km para chegar a Torres e a moral volta a melhorar.
Desanimado com esse nordeste pensei em parar em Quintão, mas sabendo que estou mais próximo do que pensava...
- Senhor, essa resistência feroz, tanto na ida quanto na volta só valoriza ainda mais o que já fizemos.
Como diz o hino do Rio Grande:
Mas não basta pra ser livre, ser forte, aguerrido e bravo.
Povo que não tem virtude acaba por ser escravo.
Mostremos valor constância, nesta ímpia e justa guerra.
Sirvam nossas façanhas de modêlo a toda a terra!
É isso aí brody! Eu passei por um baixo astral por causa de tudo que passei e do que tenho que passar. Tenho que superar tudo isto e esquecer uma música que cantarolo às vezes:
- Preciso acabar logo com isto
- Preciso lembrar que eu existo, que eu existo....
Vamos à luta! Mal começo a andar e o pneu dianteiro murcha. Desta vez é o remendo que solta. Todos os outros estão soltando. Tenho que trocar todos quando chegar a uma borracharia.
O vento está NE de novo. Já são dez dias!
Pelo menos está forte o suficiente para avançar no contravento. Sigo assim até às 12:30 h, mesmo atolando seguidas vezes.
Já pelo final da tarde o tempo fica estranho e resolvo parar para me garantir de possível temporal. parei perto de umas casas, mas o dono vem pela praia em sua rural. Diz que posso dormir na varanda da casa de seu irmão, mas que tem que recolher duas redes antes de voltar. Deixo o carro ali e sigo com eles, pois não tenho nada para fazer.
Ele puxa a rede com sua rural e ela vem repleta de bagres. É um absurdo de peixes. Ajudo a tirar os peixes e devolvo os menores que ainda estão vivos ao mar.
Depois de recolher os peixes é só soltar o cabo que o mar puxa para o fundo.
Já noite, monto a barraca e vou dormir. Mais 35 km contra o vento se foram.
12-09-07 quarta
Parece que virá mau tempo e por isto resolvo chegar hoje mesmo a Quintão.
Incrivelmente às 7:30 h, já estou com tudo desmontado e na praia pronto para seguir.
Despeçome de Isaurino, seu irmão, dona Nita e Valdecir.
Eles foram super legais. O vento sente minhas más intenções e resolve ficar fraco. Não tem força sequer de fazer o carro subir da água mais para cima. Além de tudo fica cheio de areia solta e o carro atola direto...
Pronto, já sou acometido de crises histéricas galopantes até ficar rouco.
Só me resta voltar a puxar. Por mais duas vezes monto a vela e desmonto. Completamente irritante. Passo por alguns restos de navios naufragados e já no fim de tarde passo pela capelinha e pelo farol Berta. Mais hora e meia, completamente exausto chego a pousada da Lorinha, na rodoviária. Revejo kátia, seu Francisco e Lourinha. Como um imenso e delicioso prato de comida, tomo banho e vou a net dar notícias.
Estou completamente quebrado, mas consegui fazer os 35 km que faltavam.
Mil trezentos e trinta km já se foram. só faltam 300 km.
13-09-07 quinta
Passei a manhã caminhando para achar um borracheiro e a tarde fui de latão a Tramandaí para comprar outra roupa de chuva.
14-09-07 sexta
Hoje foi dia de escrever o diário. Parece que amanhã chega um temporal e vento sul. Tenho que “pegar o bonde” e seguir.
Conheci o Paulo aqui na net e sua mãe, Maria Ivânia, que já foi vereadora em Palmares e mostra o excelente trabalho que fez no computador mostrando o plano diretor de Palmares. Eu nunca tinha visto nada parecido. É um trabalho que demorou quase dois anos para ser feito.
è isso aí amigos. Amanhã a batalha continua.
Um grande abraço
André