A massa do Rui
Do diário de bordo não autorizado
Tau Golin

Na navegada entre Porto Alegre e Fernando de Noronha, quando os veleiros Passatempo e Entre Pólos chegaram em Santa Cruz de Cabrália, na costa da Bahia, em 29 de agosto de 2005, comemoramos a ancoragem naquele recanto espetacular, onde a esquadra de Cabral chegara há 505 anos, com um jantar no Entre Pólos. Protegidos no ancoradouro do rio João de Tiba, em frente ao vilarejo de Santo André, o Rui Ketzer encarregou-se da massa, carregando nos temperos, no óleo, cujos ingredientes também, à medida que aumentava a cerveja, foram semeados além das panelas.

Enquanto a turma revisitava os lugares registrados pelas máquinas fotográficas na mesa do comandante, o Rui, desde o seu reduto de bocas fumegantes, colheres de pau e inox, panelas de todos os tamanhos, de onde fervilhavam massa e molhos, entre uma mexida nos caldeirões, intercalava com um gole de cerveja, e emanava um rápido comentário sobre os temas propiciados pelas imagens do computador. Cibernético compulsivo vivia o drama de estar repartido entre a cozinha e a impossibilidade de acionar aqueles milhões de bits do nootbook do Gigante.

O Gigante somente balançava a cabeça e ria, talvez pensando nos testes a que o seu veleiro vinha sendo submetido. O lugar coabitado com Cabral, a emoção da navegada, a camaradagem a bordo, gradativamente, ia sendo manifestada pelo cozinheiro, que, sem os apetrechos de um chef, convertia-se, com sua longa barba maruja, cabelos desgrenhados e abandonados pelo pente, espetavam um estilo vertical punk, que, em razão da idade, revelavam que, aos poucos e com seguidas latinhas de poções a base de cevada, o velho Rui adquiria o aspecto de um bruxo.

Não podendo futricar no teclado, descarregava a sua energia no preparo da massa, usando todo o farto utensílio e surtido rancho de bordo do Entre Pólos. Mandava ver uma cervejinha, um comentário ao largo para a tripulação que se deliciava nas imagens, um tempero no molho; mais um gole, uma mexida na massa; outro gole, mais condimentos na primeira panela; outro gole regado a comentário à distância; lançamento da décima colher na pia; centésima provinha da terceira panela; um golinho para não atrapalhar o deguste da segunda prova; oitava concha na pia; mais uma respingada na alva parede, convertida em tela para o pintor-cozinheiro da arte de arremesso livre de tonalidades variadas, ocres, vermelhos, amarelos desmaiados e fortes, dependendo do momento e da intensidade do molho, bolhas da água da massa que salpicavam um metro ao redor, concretando o branco gosmento no exterior das panelas, dos pratos, das travessas, da geladeira que, ao zarpar do distante trapiche do Iate Clube Guaíba, tinha uma delicadeza de cor que parecia uma plumagem de gelo transparente.

Nos ciclos constantes de seu ritual, o Rui realizava pausas reflexivas, como a lembrar de receitas com poções mágicas. Em seguida, recomeçava seus improvisos, nova preparação com dois goles de cerveja para cada ação de cozimento (respingando um pouco para o santo), ora três, de vez em quando quatro, pequenas pausas contemplativas da sua obra, com a tripulação já temendo o recomeço de tanta criatividade para uma simples massa com molho.

Aos poucos, o pintor entrou em abstração profunda, parecia em transe e esqueceu por momentos os parceiros. Abriu gavetas, portinholas e localizou os saquinhos de queijo parmesão. E deslocando-se para depositá-los sobre a mesa, como se somente a si interessasse, a exemplo de uma sentença indiscutível e transcendental, observou: “melhor seria servir com queijo colonial, artesanal, como o feito no Rio Grande”. O queijo da nona deveria ser... Todos tremeram, pois nas cavernas do veleiro havia caixas de leite e o velho Rui, com tantas emoções naquele ambiente inaugural do Brasil, poderia incorporar também um queijeiro. 

Entretanto, a criatividade do pintor de cozinha com aquele lançamento extemporâneo de tinta comestível, transformando o ambiente em detalhado quadro em pastel, foi esquecido momentaneamente quando o principal daquela função foi para a mesa. Os glutões comeram com se fossem naufragar no outro dia e, depois, salvar-se, supostamente, em uma ilha remota e isolada da civilização.

Satisfeitos e já prevendo os efeitos posteriores daquele exagero, trataram de documentar em uma fotografia a confraternização na ampla cabine do Entre Pólos.

O Selmo, percebendo que as energias do Rui poderiam não ir além da laboriosa massa e dos repetidos pratos que consumia para comprovar seus dotes, como cobaia de si mesmo, intercalados por contínuos golinhos de cerveja, resolveu contribuir com a limpeza da cozinha.

Melhor que não fosse, pois detalhista irrecuperável, baixou a eficiência da dona Maria, e se atracou na faina.

A partir de então, seguidamente, o Selmo balanceava a cabeça – cujo gesto poderia significar “que barbaridade!” para os demais, distantes daquele entrevero de esponjas, sabão, multiusos, palha de aço, lixas e esfregões – e foi removendo o entulho: cobras, lagartos e outros bichos camuflados em espaços imagináveis também iam sendo descobertos.

O Rui, que já parecia nocauteado, levantou-se do confortável sofá, prendeu a latinha de cerveja na pinça dos dedos polegar e indicador e, como se apenas ele voltasse a navegar, ficou balançando ao lado do Selmo, soltando a trava da prosa de sua metralhadora giratória.

E o Selmo escutando! Algumas esfregadas e uma olhada de soslaio, imitando a gaivota pescada na costa gaúcha. Outras enxaguadas, outro causo do Rui, no balanço do barco e da bebida. Enxugadas, mas um capitulo. E aquela limpeza, como a verve do safado do cozinheiro que estava ao seu lado, à medida que ia avançando nos meandros da cozinha parecia não ter mais fim.

Então, o Selmo percebeu, como provas do estilo do mesmo chef, pistas de refeições anteriores. A ali estavam acumulados dias de frituras, restos de comidas que pularam das panelas, frigideiras guardadas sem lavar e que respingaram com restos de ovo e óleo no forno e no balcão, sobras de torradas, bolachas, queijos, que haviam penetrado entre os vãos dos móveis durante as navegadas, forma com sobra de atuns, pudins, danoninhos, todinhos, chocolates, leite coalhado, uma fartura que, caso salva anteriormente, daria para alimentar uma creche.

Com a decidida e eficiente operação do Selmo, a cozinha do Entre Pólos foi retomando o seu delicado aspecto clássico.

Depois de gastar tubos de detergentes, multiusos e outros limpadores, puir esfregões e panos de prato, o Selmo, quase de madrugada, deu por concluída a faina. Com o Rui ainda mareando de cerveja ao seu lado, contando causos. O Selmo também já estava mareado pelo efeito dos produtos de limpeza e do centésimo terceiro causo do Rui, que, naquele instante, contava-lhe, em detalhes, a história do primeiro computador que ele montou e trabalhou, sobre o seu modelo, os seus 800 quilos, descrevendo minuciosamente as peças, os periféricos e os cartões de armazenamento.

E, ainda assim, o Selmo, impagável, se mostrava educadamente interessado.

Quando o eficiente removedor de entulhos retornava de bote ao Passatempo, as minhas ilações e do Adriano o levaram a deixar flutuar uma exclamação: mas, bah! No instante em que cuidávamos da amarração do bote na popa, ainda ouvimos a preocupação do Selmo: “O Gigante poderia pensar que eu não sei lavar louça!”

 

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