Mayday, mayday...
Sem condições de manobra na Lagoa dos Patos
Danilo Chagas Ribeiro

Na semana da Páscoa de 2004 tentamos rever o Cebollati, o bonito rio uruguaio já visitado pela Aline do Cmte Adroaldo Mesquita da Costa Neto. Quem sabe alcançaríamos desta vez o Arroio São Miguel, com as águas doces mais austrais do Brasil.

A Don't Ask, do Cmte Renato Plass, desatracou do Veleiros do Sul junto com a Aline, com o mesmo



destino. Foi um passeio bem planejado.
O sol já havia se posto e a lua, cheia, brilhava.

Pelo rádio foi combinado o pernoite na Praia das Pombas, sul do Rio Guaíba.

Quando chegamos, o Renato e o Chaguinhas já tinham fundeado. Ficamos no contrabordo.

O jantar daquela noite - um excelente strogonoff - foi oferecido pelo comandante da Don't Ask.

O papo depois do jantar estendeu-se até bem tarde. A conversa manteve-se animada com uma mistura de uma parte de Drambuie com algumas de


 

scotch, apresentada pelo comandante Renato como um "Rusty nail".

No dia seguinte partimos em direção à Lagoa dos Patos. Logo o ecobatímetro mostrou-se instável.
A Lagoa Mirim estava muito baixa, 2 metros menos do que quando estivemos lá. Sem uma sonda confiável não seria conveniente navegar.
Voltamos da Lagoa dos Patos à Vila de Itapuã.



Perdemos quase um dia aguardando a substituição do instrumento. Enquanto atracados no arroio da vila, Adroaldo tocou bossa-nova, mandando ver Ary Barroso e outros. Confira no vídeo mais adiante.

No outro dia o vento formava ondas na lagoa, tornando a navegada desconfortável. Mesmo assim iniciamos a descida da Lagoa dos Patos. Fundeamos no Birú (Saco de Tapes) onde almoçamos e tomamos banho de lagoa.


Tentativa noturna
Atracamos no Clube Náutico Tapense para o pernoite. A lua cheia estava colossal, disputando com o pôr-do-sol que recém havíamos apreciado. Aliás, não precisava ter havido a disputa...
Tocamos bossa-nova e outras canções até a meia-noite, quando o vento acalmou e decidimos continuar a navegada, àquela hora.
Guardamos os instrumentos e preparamos a lancha para a partida. Toda a parafernália de navegação foi novamente instalada sobre a mesa (GPS, computador, carta, lápis e borracha, livro do Cmte Knippling, etc). Ao chegarmos à Lagoa dos Patos, a umas 12mn de Tapes, percebemos que o vento ainda estava forte. O comandante resolveu retornar ao Clube Náutico Tapense, onde pernoitamos. Ainda bem... Nem imaginávamos a surpresa que nos esperava.

Pane nos motores
Pela manhã desatracamos rumo a Pelotas, onde novamente encontraríamos a Don't Ask, que a essas alturas já estava em Rio Grande. Quase no Canal da Feitoria houve acentuada perda de giro no motor de bombordo, causando importante queda na pressão do turbo. A velocidade de cruzeiro caiu bastante.

O rumo foi alterado para São Lourenço do Sul, para que a manutenção fosse providenciada (veja carta mais abaixo). Uma meia hora depois o motor de bombordo parou. Prosseguimos até que o outro motor parou uns 15 minutos depois, coincidentemente. Era uma hora da tarde. Havia pouco vento e céu limpo, a não ser a oeste.

No dia seguinte soube-se que a causa da pane foi filtros de óleo obstruídos. Isso de abastecer a lancha em lugares diferentes, de caminhões-pipa por aí, é complicado. Nunca se sabe da qualidade do combustível abastecido.

Sem condições de manobra no meio do nada
Sem condições de manobra, fundeamos* com uns 6m de profundidade.
Nos 360º o horizonte era de água e não se via embarcação alguma. Na verdade dava pra ver mal e mal um morrinho isolado no horizonte a oeste, onde aliás, um baita CB estava engordando. Mais parecia um urubu nos olhando.

A sensação de estar sem condições de manobra no meio do nada tenta incomodar a gente. É ímpar. Se V. nunca esteve em uma situação dessas, talvez possa ter uma idéia da desolação, vendo a cena de vídeo gravada do fly bridge**.

"Meidei"?
A idéia era chamar reboque de São Lourenço, mas os celulares não tinham sinal. O meu então, nem pensar (entrei na maior fria ao aceitar um celular CDMA da Vivo: presente grego).

Depois de chamarmos pelo rádio várias vezes o Iate Clube de São Lourenço sem êxito, a solução foi pedir ajuda.
Pela primeira vez fiz um pedido de socorro pelo VHF. Repeti várias vezes, e nada. Depois de vários maydays*** sem sucesso, resolvi dizer que era um pedido de socorro mesmo: e vai que a jaguarada cruzando ali pela volta não soubesse do tal do "meidei"?...

Não recebemos resposta de autoridade marítima alguma. Nem das estações de rádio que fazem comunicação, como a Rede de Estações Costeiras do Sistema Móvel Marítimo. Creio que de onde estávamos nosso sinal não poderia ser captado de lugar algum, a não ser por uma embarcação passando nas proximidades. Dá uma sensação de abandono...

Fazendo contato por rádio
Certamente esperamos menos do que aparentou, mas demorou muito até ouvirmos alguém atender. O operador do navio NT Rio Grande pediu a nossa posição e indagou:
- Vocês tem feridos ou incêndio a bordo?
- Não, respondi.
- Bom, disse ele, então pelas leis marítimas internacionais, não preciso ir até aí porque já estou passando pelo Vitoriano.
Estávamos no norte da área demarcada na carta para fundeio de navios que não podem trafegar à noite no canal (veja na carta acima), a umas 10mn a NE da extremidade norte do Canal da Feitoria, e há umas 20mn a SW do navio.
Mas enfim, Ulisses, do NT Rio Grande, que operava o rádio e mostrava-se muito esclarecido e atencioso, fez a ponte com o Iate Clube de São Lourenço do Sul pelo rádio e avisou da nossa pane. Certamente a maior altura do navio em comparação à lancha permitiu que o sinal de rádio alcançasse São Lourenço.
Valeu Ulisses! Foi uma grande ajuda ter mantido o contato e ter passado nossas coordenadas.

Celular funcionando na Lagoa
Neste meio tempo o Adroaldo descobriu que o celular dele funcionava lá do fly bridge. E de lá ele conseguiu o telefone do dono do Bucaneiro, uma escuna de uns 50 pés, que realmente tinha condições de rebocar a Aline (6ton), e solicitou o reboque. Houve outra possibilidade de reboque, apresentada pelo comodoro do Iate Clube de São Lourenço, mas foi acertadamente preterida pelo comandante.

Faço questão de contar algumas experiências desse evento.

Mayday x Pedido de Socorro
1. Se algum dia eu precisar pedir socorro de novo, a cada mayday, vou dizer que é um pedido de socorro. Afinal, "socorro" todo mundo sabe o que é. Já o tal do meidei, meibí.

Resgate a olho
2. As coordenadas que passamos de nada adiantaram. Eles não tinham GPS funcionando a bordo da escuna, como já havia acontecido no ano passado quando um veleiro de bandeira alemã foi rebocado por outro barco também lá de S. Lourenço.
Só soubemos da falta do GPS na escuna, pelo rádio, quando eles já estavam a caminho de nós, isto é, estavam à nossa procura. De fato, estavam afastando-se, indo para um local ao sul de onde estávamos...

Presunções
3. Fiz referência ao fundeadouro. Expliquei que se tratava de uma área demarcada na carta da Marinha, onde certamente nos achariam por estarem, presumi eu, acostumados a ver os navios fundeados por ali.

Soubemos mais tarde que os navios efetivamente fundeiam próximos ao Farolete 86, e não na área demarcada na carta. Era para lá que o Bucaneiro estava indo, um destino 10 milhas a sudoeste de nós.
E eu achando que estava passando uma informação muito útil, o que na verdade confundiu o pessoal do socorro. Se eles tivessem a carta à mão talvez tivessem entendido a informação sobre o fundeadouro.
Em uma situação crítica não se pode presumir nada. Todas as informações têm que ficar bem claras e confirmadas.

O rapaz com o binóculo no convés já está enxergando vocês!
Logo em seguida, perguntaram se estávamos próximos ao Farolete 86. Este farolete fica na extremidade norte do Canal da Feitoria. Epa... Não é bem por aí!
Perguntei se tinham carta a bordo. Pela resposta, deduzi que não.

Nisso, Adroaldo viu a escuna, de través, e bem contra o sol refletido n'água, lá no horizonte. Não sei como ele pode ver aquela manchinha escura no meio do forte reflexo do sol, que nem saiu na foto (aí ao lado). Foi uma observação importantíssima que o comandante passou a eles pelo rádio.

"Vocês estão em uma lancha branca, não é?... O rapaz aqui no convés já está enxergando vocês com o binóculo".
Uhhhhhhhh!!!... Que alívio!


Falando difícil
4. O pessoal que fez o resgate mostrou-se muito safo.
É gente simples e experiente mas que usa alguns referenciais diferentes dos nossos. Enquanto vinham já na nossa direção, perguntei se tinham visto o enorme CB atrás deles. Não entenderam. O cumulus nimbus, falei... Negativo. Aquela nuvenzona lá atrás! Ah ta... Mas a pressão não está caindo, informaram.
Aceito que "falei difícil" com eles, mas não conheço outro navegador que não saiba o que seja um CB.

Depois, já em terra, eu soube do velejador Beto Goidanich "Raspajunco" que aqueles CBs formam-se sobre as muitas lavouras de arroz lá pro oeste e dificilmente vêm pra Lagoa.

Escapamos da pane à noite
Quatro horas mais tarde, observando o vento apertar, fomos rebocados até o trapiche do Iate Clube de S. Lourenço do Sul, aonde chegamos já no escuro, e onde terminou o passeio.

O resgate custou R$400,00, tendo dado umas 5h de trabalho à tripulação da escuna.

Se tivéssemos continuado a navegada reiniciada na madrugada anterior, como tentamos em Tapes, certamente teríamos ficado empenhados na lagoa com bem menos chances de conseguirmos reboque.

Quando a Marinha vai passar a exigir GPS a bordo?
Imagine localizar alguém na chuva, no nevoeiro, no escuro, ou em uma tempestade, em vez do tempo bom que desfrutávamos. Com um GPS, digita-se as coordenadas do destino e vê-se sobre a telinha uma seta indicando o caminho a seguir. Muito simples. Esta seta pode ser a salvação da embarcação. Principalmente daquela onde está o aparelho.

Víamos a Aline plotada na tela do notebook sobre a carta da região (conectado ao GPS). Tínhamos o plotter também com a carta da Lagoa dos Patos. E tínhamos cartas em papel. E mesmo tendo passado as informações que cabiam, fomos localizados a olho!

Um GPS simples custa US$100 (FOB). No Brasil costuma ser encontrado por uns R$ 700.
Está caro ainda? Compare com outros preços de equipamentos de uma embarcação de recreio e perceba que não é das coisas mais caras a bordo. O preço do GPS é um percentual irrisório do valor de uma embarcação.

O GPS está tornando-se commodity e deveria ser de uso compulsório na grande maioria das embarcações. Falta a Autoridade Marítima determinar.

Aspectos Positivos
Dentre os aspectos positivos da navegada, conheci pessoalmente o experiente e prestativo velejador Emílio Opitz (o "adriana-s", do grupo popacombr) que me forneceu informações e me levou à cidade de Tapes para compras. Mais uma vez muito obrigado, Emílio.
Foi legal também desenferrujar minha velha gaita de boca enquanto o Adroaldo tocava bossa-nova.
Trouxe algumas imagens na câmera. Veja mais abaixo.

Nossos parceiros
A Don't Ask também não pode alcançar o objetivo desta vez. De Jaguarão voltaram a Rio Grande devido aos fortes ventos de NE, logo após a passagem da frente sul.
_______
(*) Fundear = Ancorar
(**) Fly bridge é o "andar de cima" da lancha
(***)
Mayday (pronuncia-se meidei) é o pedido internacional de socorro utilizado por aeronaves e embarcações, via rádio. É um anglicismo da expressão francesa m'aidez (me ajude), mais precisamente venez m'aider (venha me ajudar), oficializada pela Convenção Internacional de Rádio e Telegrafia de 1927.

1mn = 1 milha náutica =~ 2km


Vídeos

Vídeo
Stream
1. Cenas da navegada, com bela trilha musical gravada na Aline 3 minutos

2. Já ficou sem condições de manobra no meio do nada? Não?... Então veja a cena

1 minuto
3. O mesmo vídeo do item 1 acima, mas em tela cheia. Imagem muito boa.
Mas Atenção: é um "mangrulho" de Quarenta e Quatro MEGABYTES!!!
44MBytes
(zipado)

Fotos

Clique uma imagem para carregar todas da mesma moldura

 

 

 

 

 

 

 

 

O Bucaneiro chegando para nos rebocar
(Não parece, mas foi a melhor imagem da navegada)

 



Desenvolvimento:

Recebi mensagem do Cmte Carlos Altmayer Gonçalves (o "Manotaço", veleiro Barba Negra/VDS) informando que na situação em que a Aline encontrava-se, o correto seria ter sinalizado a ocorrência com um PAN, e não com um MAYDAY.
É muito bom ter amigos assim, que volta e meia gritam "Água, água..." pra gente. Mas será que ele tem razão dessa vez também?...

Consultei a Marinha do Brasil, para esclarecer, solicitando indicar um documento onde conste tal assunto. A resposta veio imediatamente, pelo que muito agradeço*.

Aprendamos com o Capitão-de-Mar-e-Guerra Luiz Isidore Barbejat, Encarregado da Divisão de Socorro e Salvamento:

Prezado Danilo,

Você poderá encontrar as informações sobre os sinais de emergência na publicação "Manual IAMSAR" Manual Internacional Aeronáutico e Marítimo de Busca e Salvamento. Volume III - seção 4 - Emergências a Bordo. Este manual é publicado em conjunto pela Organização Marítima Internacional (IMO) e pela Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO) e o seu uso é respaldado pela Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS).
Como informação, existem três sinais de emergência previstos:
Sinal de Socorro - MAYDAY , indica que uma embarcação ou aeronave em movimento está em perigo iminente e solicita auxílio imediato;
Sinal de Urgência - PAN-PAN, deve ser utilizado quando existir uma situação insegura que possa envolver a necessidade de auxílio; e
Sinal de Segurança - SECURITÊ, é utilizado para mensagens relativas à segurança da navegação, ou para transmitir algum aviso meteorológico importante.


Cordialmente

Luiz Isidore Barbejat
Capitão-de-Mar-e-Guerra
Encarregado da Divisão de Socorro e Salvamento


Recebi também o comentário do Cmte Geraldo Knippling, velejador, autor, e ex-comandante da Varig, 40.000 horas de vôo, agraciado com a Ordem do Mérito da Aeronáutica:

Danilo,

Mayday (do francês americanizado) e PAN era muito difundido nos primórdios da aviação (e navegação marítima) antes do VHF, quando toda a comunicação era feita precariamente em HF com muita estática, fading, e outros impecilhos. O mesmo é válido para o código "Q". Oficialmente ainda está valendo, mas na realidade não se usa, pois as comunicações de hoje podem ser feitas de forma plena sem as interferências de antigamente.

Creio que seria mais fácil, simplesmente dizer "...aqui é embarcação tal, com chamada de emergência" e entrar logo no assunto que no caso, pode ser feito no próprio canal 16 (sendo emergência). A verdade é que a grande maioria dos navegadores e pseudo-navegadores, inclusive "autoridades", não tem nem idéia do que é "Mayday".
Um abraço,
Geraldo


(*) Não vou agradecer ao Manotaço pra não encher demais o pano dele.

 

Envie seu comentário ao popa: info@popa.com.br

Outras navegadas da Aline

 

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