Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe (De Outubro a Dezembro de 2000) |
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim |
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Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(1)
UM LIVRO NÁUTICO? Este livro foi escrito nos últimos meses do ano 2.000, a bordo do veleiro Haaviti. Tendo zarpado das Ilhas Baleares, no Mar Mediterrâneo, comecei a escrevê-lo depois de Gibraltar, quando já velejava ao largo da costa africana do Marrocos, próximo ao paralelo de Casablanca. Terminei-o, quatro mil milhas além, quando chegamos do outro lado do Mar Oceano, em St. Bartholomey, Mar do Caribe, pouco antes do destino final, St. Maarten. Além disso, este é também um livro do sentimento. Pretendi algo que transcendesse às coisas da navegação. Por isso, nele coloquei tudo o que me veio à alma durante a inesquecível travessia. Sou um incorrigível sentimental. Escrito por um marinheiro enamorado do eterno Mar, nele lancei pensamentos, retratei emoções e procurei transmitir lições que vão desde os primeiros tempos do ser humano no planeta, sua passagem da vida nômade para a vida sedentária, passando pelos egípcios, os aborígenes australianos, os guanches e outros povos cuja história, de uma forma ou de outra, tocou-me, de modo especial, durante a grande viagem. Nele, busquei privilegiar a cultura, comentando invenções, descobertas, guerras e outros fatos históricos da humanidade, pondo à mostra as exigências da nefasta e destruidora vida moderna. Nele, empenhei minha alma marinheira em prosa e até em versos que aqui e ali me ocorriam. É também nessa precisa data que o inesperado fez-me uma surpresa sem precedentes. Jamais soube que algum marinheiro fosse presenteado pelos companheiros de grandes navegadas com o que acabo de receber. Meus bravos parceiros de travessia, como que simbolizando o que vivemos juntos e o que o grande Mar nos desvendou, entregaram-me um cartão de prata onde se lê:
AINDA É TEMPO DE NAVEGAR Quase meia-noite. O comandante desce correndo ao meu camarote e entra. Ele me chama às pressas porque a vela-balão enrolara-se no estai . Precisa ser imediatamente arriada ou poderemos perdê-la. Levanto-me e corro para lá. O Graeff já está na rede da proa, procurando desenrolar o balão, puxando-o para baixo por um dos punhos inferiores. Agarro o punho. Sem dizermos qualquer palavra, Graeff corre para soltar o cabo que prende o balão no tope do mastro. Só ele sabe como a adriça está amarrada. Na última levantada do balão, foi ele quem o subiu. O comandante, no leme, arriba o barco o que pode, para que o balão fique escondido na sombra da vela grande. Penduro-me no balão, puxando-o para baixo. A adriça é solta. O balão despenca e então me jogo sobre ele, abraçando-o o mais fortemente que posso. Devo abafá-lo contra a rede. O Graeff vem rápido, solta os punhos na adriça e na escota de barlavento. Ainda abafando o balão, libero o outro punho. O Mar, ensurdecedor e furioso, passa urrando por baixo de nós e a florescência dos noctiluca miliares ilumina nossos rostos. Estamos a poucos centímetros da água enraivecida e revolta. Passa rápido por minha cabeça que, se um de nós cair do barco naquele instante, pode ser o fim de tudo. Abraçamos ainda mais fortemente o balão molhado com a água salgada do Mar e nos arrastamos sobre ele, levando-o para dentro do paiol de avante. A manobra de proa está concluída. O Tatu recoloca o barco no rumo e iniciamos a manobra para abrir a genoa em asa-de-pombo, substituindo o balão. Asa-de-pombo aberta, voltamos para o cockpit. O barco navega serenamente outra vez. Nosso rumo é o Novo Mundo. Sento-me. Estou exausto. Olho em torno e vejo as duas longas esteiras de luz que o barco deixa para trás, a iluminarem nossos rostos sonolentos. Estamos calados. O Mar bravio, com um uivo medonho, mostra toda sua aterradora força. Hoje ele está sensivelmente mais violento. Nas grandes latitudes, o vendaval deve ter destroçado praias e encostas. Suas imensas ondas agora chegam aqui, agigantadas pelo eterno mistério da escuridão de onde viemos e para onde um dia voltaremos. É noite. Somos nada. Permaneço imóvel. Quieto e reverente, recordo a oração que escrevi não sei quando em homenagem a dois de meus amores: o Mar e o meu barco. Qual cruzamento cúmplice de coordenadas náuticas, na longitude daqueles versos, rendo-me ao misterioso templo criado pelo grande Arquiteto do universo: o Mar. Na linha vertical onde se medem as latitudes, qual mastro sustentáculo das velas - motores propulsores dos veleiros -, reproduzo as sete letras do grande e fiel amigo, companheiro de tantas milhas navegadas: Molecão. Entro na cabine e, emocionado e saudoso, mais uma vez escrevo:
Ainda é tempo de navegar; é tempo ainda de aproveitar as forças que me restam. Até quando, o tempo dirá. Mas ainda há tempo de velejar, com vagar, sim, mas urgentemente. Não sei quando, já não haverá mais como pedir ao tempo que refaça o que desfez. Ah, o tempo, este voraz e insaciável inimigo do homem, dizem. Nada mais errado, porém. Não é o tempo o inimigo. É o próprio homem. Dizer que o tempo passa, não basta; é quase nada. O passar do tempo é o seu cerne imutável. Mas a forma como ele passa, não é; depende de nós. O tempo, em si, é o fenômeno resultante de um imperativo categórico e natural. Mas seus elementos circunstanciais - à exceção da própria inexorabilidade - são mutáveis. Podem ser transformados pelo próprio homem. O homem tem algo que o tempo, em seu devorador e irreversível avanço, não pode destruir. Ao revés, é algo que cresce e se fortalece precisamente com o passar do tempo. É como se fosse o contratempo do tempo, seja no sentido de que é sua própria negação - na medida em que não se deixa destruir por ele -, seja no sentido de que é um retorno, verdadeira volta ao passado, porque alcança para trás algo que já passou. Retroage. E o faz invariavelmente para melhor: é a fé. A fé não é atingida pelo passar do tempo senão que com ele se fortalece. O tempo é o fermento da fé. Ela faz o homem retornar sobre os próprios fatos pretéritos, explicando-os a quem os viveu e não se deu conta das circunstâncias que agora percebe. Esteve com pressa; estava cego. Por isso, o tempo não é o inimigo do homem. Ao contrário, ele é seu aliado porque o amadureceu. Auxilia-o, pelo passar dele próprio, a olhar para trás, mas o faz de forma diferente. Não para chorar o passado, mas para entendê-lo. Não para lamentar o passado, mas para evitar perdê-lo. Numa palavra: para resgatar o passado perdido. Perdeu-se o que não foi bom. Se deixar de ser mau, no entanto, ainda que só percebido depois, o passado torna-se bom no presente. E aquilo que antes foi dor passa a ser consolo. O tempo não é inimigo do homem. É, sim, o escudeiro que não o larga em circunstância alguma, precisamente porque é inexorável. Mas, afirmo convicto, lembrando Couture: o tempo vinga-se das coisas que são feitas sem a sua colaboração. Não o desafiemos, pois. Respeitêmo-lo. Saibamos esperar cada coisa a seu tempo. Ele é o aliado e nosso mestre. …………………………………. Agora, volto ao Mar. Não há canção de amor que não se possa dirigir ao Mar. Estou aqui neste reencontro - demorado e ao mesmo tempo breve -, pensando no Mar e meditando sobre os versos que eu queria ter escrito mas que Chico Buarque de Holanda escreveu antes:
O tempo, um dia, já não mais me permitirá as ousadias marinheiras de hoje. Mas enquanto me for permitido fazê-lo, sequer hei de dormir para vivê-las. Devagar, sim, mas urgentemente. Tempo virá de se desvencilhar, não porque a força do amor se foi, mas porque a força física já se terá ido. O tempo a terá levado. Será o tempo da delicadeza, porque a dura vida marinheira é o contraponto da fraqueza física. Ainda assim, porém, vez por outra, haverei de reencontrar o Mar, e já não diremos nada. O que ocorreu não carece ser dito; é como se não houvesse ocorrido. Apenas, em silêncio, seguirei como um encantado ao lado seu. O repouso já me terá sido imposto pelo próprio tempo. E este já não poderá refazer o que desfez. Será como a mensagem do náufrago posta na garrafa encontrada na praia. Ninguém sabe quem a fez. Recolho do meu íntimo, aguardando serenamente esse dia, e improviso:
…………………………………. Pois aqui estou, outra vez, no eterno Templo bravio, lúbrico como o inverno mais frio. Desta feita, quando me assalta essa vontade doida de escrever, estou velejando a cerca de oitenta milhas da costa africana do Marrocos, no través da longínqua Casablanca. Nossa primeira posição que programei deveria ser N 33.50 e W 008.41, mas abrimos um pouco mais para fora, a fim de escaparmos das incertezas da costa marroquina. O tempo é bom, o vento sopra de norte (os famosos trade winds) e o rumo é 230 graus. Com o vento entrando em três quartos de popa, estamos velejando a 09 nós. Mais três ou quatro dias e chegaremos ao fim da primeira perna de Atlântico, a Ilha de Lanzarote, no Arquipélago das Canárias, território espanhol, onde iniciaremos propriamente a grande travessia, rumo ao Novo Mundo. A bordo do Haaviti, um catamarã Nautitec H 475, construído pela francesa Dufour, nossa missão é levar o barco de Palma de Majorca, ilha espanhola do Mar Mediterrâneo, a Sint Marteen, ilha do Mar do Caribe, metade holandesa, metade francesa. Nossa tripulação é constituída pelo Ralph Hennig (o Tatu), o Roberto Graeff e este encanzinado marinheiro. Nosso porto anterior fora Gibraltar. Naquele ponto final do Mediterrâneo, na Antigüidade, o mundo terminava. Para nós, no entanto, ali o mundo começa. Por isso, alegres e desprendidos, temos vivido com a simplicidade e a camaradagem que a vida marinheira sabe ter, conquanto toda sua dureza. Acabamos de atrasar nossos relógios em 60 minutos, pondo-os de acordo com a hora oficial GMT. Cai a noite, o Mar parece crescer cada vez mais. É ocasião para muitos se perguntarem se no fundo, no fundo, não somos três loucos para embarcarmos numa casquinha de noz e enfrentar essa vastidão na qual, por vezes, estaremos a dias, às vezes semanas, apartados de qualquer ponto de terra firme. Lembro versos do João Bosco que dizem:
Penso na grandeza da expressão Mar, és o homem e a mulher. Penso nos tumbeiros que conduzem barcos sem conta, direcionando-os fatidicamente às proas do inferno, para a viagem sem volta. A imensidão do Mar me faz meio sonhador, meio poeta. Em face dele, não sou mais que um ser minúsculo e frágil; quando a ele retorno, lembro sempre: quem foi ao Mar e voltou, nunca mais será o mesmo. Terá aprendido a própria insignificância. O Mar, verdadeiramente, nos mostra o que somos. Por isso mesmo, é muito bom estar no Mar, para quem digo, copiando o poeta, que é duro ficar sem você vez em quando; parece que falta um pedaço de mim. …………………………………. Tem sido um tempo rico em longas navegadas. No ano passado, a bordo do Maravida - lentamente, como convém -, velejei a maior parte da costa brasileira. Desde Parati até Recife, fizemos o total de três etapas durante a primavera-verão. Já em janeiro do corrente ano, embarcava outra vez naquele magnífico veleiro, desta feita em Natal, para levá-lo ao Caribe. De Natal a Grenada, foi uma viagem tranqüila. Claro: zarpamos à 01h da madrugada do sábado, dia 5 de janeiro, ou seja, uma hora depois que terminou a sexta-feira. Em sextas-feiras, não se iniciam grandes navegadas … Passamos dez dias sem ver terra, o Tatu, dando aulas de pescaria e fazendo sushi; o Joel, cozinhando e expulsando até o comandante da cozinha; o Zeca, filosofando e contando a história do Maravida, que ele mesmo construiu; o Mauro, tirando sarro da turma e rindo baixinho; e eu, ajudando a galera como podia a fazer o que eles mais gostavam: nada. Ou quase. Todos faziam algo em comum: muitas risadas, muita gozação. Como aqui e agora no Haaviti. Éramos cinco marinheiros iguais e amigos. Quase nem se notava que o barco, como qualquer outro, tinha um comandante. O Mauro me convidou para a empreitada porque um amigo comum implorou de joelhos para ele me levar. Foi o Fernando Marins, aquele sujeito engraçado, dono do restaurante Le Bistrot. O Magrela é muito esperto: enquanto eu navegasse, não iria ao restaurante para dar palpites, como sempre faço... Lá pelas tantas, o barco virou uma biblioteca, com todos nós - os cinco intelectuais da ocasião - lendo, horas a fio, todo tipo de literatura, principalmente a de natureza náutica. Entre tantos, li um livro maravilhoso, presente do meu caçula Rafael: O dia do Coringa, do Jostein Gaarder. Como convém, navegar é um permanente convite à leitura. Com ela, guardam-se dois ingredientes em comum: não se tem pressa e tem-se todo o tempo do mundo. No final, ancoramos em Prickly Bay, Granada. Havíamos completado, desde Natal, exatamente, 2.001 milhas marítimas. Logo chegariam a Magra e a Ruth e faríamos, ainda, um belíssimo cruzeiro de dez dias pelas ilhas ao norte, rumo a San Vincent. Ainda no decorrer de 2.000, integrei a tripulação do Shogun, do Marcelo Caminha, levando-o, na companhia do Joel Rosa e do Marcos, de Florianópolis para Porto Alegre. Foi bom demais. Eu não havia, antes, tripulado aquele barco e nunca navegara com o Marcelo e o Marcos, grandes parceiros, grandes marinheiros. O mesmo trajeto fizera em outubro do ano anterior, juntamente com o Manotaço e o Zeca Rizewski, tripulando o Maragato. Por sinal, esta foi a pior viagem de toda minha vida marinheira, pior ainda que a inesquecível regata Santos-Rio, de 1991, a bordo do Madrugada. No Maragato, “chamei o Hugo” desde o meio-dia da sexta-feira, até às três horas da madrugada de sábado. Sem parar! Fiquei quase imprestável. Seria só coincidência? Bem depois, já próximo a Rio Grande, fui dar-me conta de que saíramos de Florianópolis dia 20 de outubro, uma sexta-feira. Acho que só parei de vomitar na semana passada... E agora, aqui, outra vez. E a convite do Tatu, um tremendo amigo, com quem já fiz grandes navegadas. Apesar de ter idade para ser meu filho, com ele tenho aprendido bastante. Ao fim desta travessia, terei completado, só no corrente ano, mais de seis mil milhas marítimas, sem contar as navegadas a bordo do Molecão, no Guaíba e na Lagoa dos Patos. Acho que é uma boa marca para o ano. E quando eu voltar, ainda haverá um resto de dezembro antes que acabe 2.000… |