Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(10º capítulo)

Terça-feira, 28 de novembro (coordenadas das 22 h GMT de segunda-feira: 19.14 N e 030.39 W).

O horário do barco mudou. Ficamos, agora, uma hora atrasados em relação a Greenwich. Portanto, no meu horário particular de navegador desta valente embarcação, já é 01h-GMT da madruga. Esse atraso é para nos adaptar ao fuso horário. Para nós, já estava amanhecendo depois das 08h, e anoitecendo pelas 19h 30min. Agora, o horário fica mais ajustado à rotina a bordo - acordar, comer, entrar de quarto, chamar o outro, dormir, escrever. Pelo menos, este foi o argumento que o grupo de bordo usou ao me consultar a respeito. Desconfio que eles sabiam que eu iria concordar...

O fato é que não se pode mesmo ter uma anotação de 24 horas - como a singradura, por exemplo -, com variações de fusos horários. Seria caótico calcular diferenças, fazer descontos e outros quetais. Imagine-se que alguém, via SSB, informe uma posição, em um determinado ponto no meio deste Oceano, com horário correspondente ao fuso em que se encontrar. O grave inconveniente de estar recalculando a hora em que um fato ocorreu retira qualquer possibilidade do uso de outro horário que não o de Greenwich, quando se navega.

Pois vai que é um tanque. Balão em cima, o ventão é o mesmo - de nordeste, 20 nós -, proa nos 278, o barômetro baixou pouca coisa, está em 1.032, vai aumentar o vento, faltam 1.812 milhas para St. Martin, o sol vai nascer às 08h 19min, caso ficássemos aqui, plantados, esperando por ele. É uma navegada simplesmente fantástica. Como é que esses alemães podem estar dormindo ante tamanha maravilha?

Cada dia que passa, Orion distancia-se, fica para trás de nós. Em cima, Sirius está mais bela do que nunca. A partir dela, busco Canopus e, apesar do Cruzeiro do Sul não ser visível, imagino onde ele estará. E bem ali, no encontro da linha Siruis-Canopus com o prolongamento da perna maior do Cruzeirão, localizo o sul. Parto dali, para minha direita, em um ângulo reto, e tenho o oeste. É assim que tenho navegado à noite.

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Ontem, quando fui dormir, fiquei-me perguntando se essa coisa de Mar e tanta poesia não é piegas, empolgação momentânea, fruto da conhecida e fugaz volúpia que o Mar causa nos navegantes; se não estarei escrevendo isso tudo apenas porque disponho do maior tempo ocioso jamais sonhado; se quem ler tudo isso não vai achar que…

Pronto. Foi dizer isso e eu já fiquei de bronca comigo mesmo. Sou romântico assumido, viciado, e vou morrer assim. Sou beijoqueiro. Vivo beijando a minha Magra, os meus quatro ricos filhos, as minhas netas mimadas, as minhas irmãzinhas Miriam e Auta, a Márcia, a Maria e mais umas trezentas e sessenta e cinco amigas, os meus sobrinhos, o Alaor, o Heitor, o Pinto, o Brozoza, o Carlos e não sem mais quem. A boca é minha e eu beijo quem quiser.

E tem mais: ando pela rua de mão com os marmanjos dos meus três filhos homens, de braço com os meus amigos. E não paro por aí: com menos freqüência, para não deixá-las mal-acostumadas, beijo também os pés da Magra e da Andréa. Ainda bem que elas, de vez em quando, lavam os pés…

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São 06h 30min no horário da turminha germânica. Para mim - sábio e incomparável navegador desta nave impoluta e sem jaça -, continua o nobre e britânico horário do Big Ben, ou melhor, do meridiano de Greenwich, que é aquele bairro londrino, localizado na zona sudeste da cidade onde fica o observatório do mesmo nome; não é mesmo chique? São, oficialmente, 07h 30min-GMT.

Orion já se mandou para o boreste da nossa proa. Siruis deve ter caído no chão, porque não a vejo mais. Talvez se esconda para não ser ofuscada pelo sol, que vai nascer às 08h 22min. Não demora nada e já será dia, outro lindo e majestoso dia que, como diz o Tom, é promessa de vida no meu coração. Isso, apesar de não estarmos nas águas de março e sim nas de novembro. Mas vá lá. O poeta haveria de entender.

Há coisa de umas duas horas atrás, noite fechada - no quarto do Tatu, para variar -, deu-se uma rajada mais de lado e o balão se enrolou todo no estai. Arriba o barco, baixa o balão, cassa cabo, folga cabo, tudo ajeitado, genoa no lugar outra vez, senta que o leão é manso: retomamos o curso oeste. Mas ainda não foi desta vez que vi um balão passar a noite toda içado. Isso em translado, note-se bem: não estou aí para ouvir bronca de regateiro.

Já disse, é generalizada a regra de que, velejando à noite, reduz-se pano e jamais veleja-se de balão. Conosco é diferente. Temos a bordo três do contra: dois capricornianos - o Panela-Véia e eu - e o Tatu, que é uma porta de teimoso. Sem contar que o Panela preenche ambos os requisitos. Somos intrépidos e diferentes dos mortais. Dava para manter o balão lá em cima. E pronto. Qualquer coisa, o Tatu resolveria a ingrizilha. Por incrível que pareça, ele vê melhor de noite do que de dia.

É impressionante ver o Tatu trabalhando no convés à noite. Ele não quer saber de lanterna nem de nada. Faz tudo no escuro. E com aquela precisão, talvez sua principal característica. Logo mais, vou perguntar a ele se vem daí seu apelido, o daquele bicho da toca que vive escondido. E no escuro.

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Pois aqui vamos nós, numa corrida maluca, com dez a doze nós de velocidade, fugindo desses paredões d’água que insistem em nos perseguir aqui por trás e com esse ventão que Deus mandou. E tudo isso ao som do Mar azul e do céu profundo. Nosso rumo é o iluminado sol do Novo Mundo.

Não; não é não. Na verdade, o sol já está quase nascendo e vem vindo atrás de nós. Depois, ele vai passar o dia por aí nos iluminando, e no fim do dia vai-se pelas bandas da proa. Como a lua fez essa noite. E só depois que o sol for embora, Sirius vai aparecer. Ela não agüenta o brilho do sol superando o dela. E nem sabe que o sol também não suporta a competição: por causa disso, ele não aparece à noite.

Ainda não encontrei quem me explicasse porque alguns sábios filólogos escrevem sol com minúscula e os nomes das estrelas com maiúscula. O de Sirius, por exemplo. Será porque ele é homem e elas são mulheres e, assim, por uma questão de hierarquia, elas é que têm maiúscula na inicial? Mas lua também se escreve com minúscula. Mar é sempre com maiúscula, e o João Bosco diz que o Mar é o homem e a mulher. Está certo. Não fora assim, como é que ele poderia dizer para o Mar que dilataram o teu seio e ergueram teu pênis de sombra e mistério?

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Esta noite, tivemos a companhia do que presumo ser um veleiro. Primeiro, vimos, por bombordo, a luz branca de alcançado. Ela aparecia mais na nossa proa e estava perdendo altura em relação a nós. Estávamos ultrapassando o tal veleiro. Mais tarde, pela madrugada, acho que ele andou se atrapalhando com alguma manobra. Seria o balão? Vislumbramos, por breve tempo, a luz vermelha - de bombordo, portanto -, indicando movimento que o colocava contra seu próprio rumo, retrocedendo.

Depois, a luz branca outra vez indicava estar de popa para nós e, igualmente, fora do rumo. Quando já estávamos quase a não vê-lo mais, surgiu a luz verde. Era a que deveria voltar-se em nossa direção porque o havíamos ultrapassado e ele demandava o nosso mesmo rumo. Estava por bombordo. Agora, com o amanhecer, não o vemos mais. Creio ser um barco da ARC, pensando, talvez, que nós estamos no rally.

No Mar, à noite, é muito mais fácil ver-se a luz de uma embarcação, do que a própria embarcação durante o dia. O velejador, à noite, enxerga melhor em função do contraste de qualquer luz com a escuridão. Por isso - ao menos no meu caso -, prefiro navegar na lua nova do que na cheia. A noite é muito mais escura. Não há lua. E quanto mais escuro, melhor se vê. Pelo menos, as luzes das raras embarcações que por aqui passam.

É claro que isso, para um romântico, é um contra-senso. Mas uma coisa é velejar com a bela lua cheia no Guaíba, ou na Lagoa dos Patos, por exemplo. Outra situação bem diferente é estar em alto-Mar. Na Lagoa, quase se pode correr o risco de uma colisão, porque o socorro, mais cedo ou mais tarde, virá. E aqui, quando estamos, neste preciso momento, a 1.069 milhas de Las Palmas e a 1.762 milhas do Caribe, no meio deste imenso Atlântico Norte, quem viria para nos socorrer? E quando chegaria? Como ficariam sabendo que estamos por aí? E sobretudo, quem viria até aqui?

Então, de quando em quando, o guarda de plantão dá uma olhada ao redor e verifica se não há luzes por aí. No entanto, quanto aos conteiners, ainda não há solução.

Há uma estimativa de que, no Mar, ao redor do mundo, navegam cerca de 20.000 conteiners (vinte mil mesmo). Caem dos milhares e milhares de navios que andam por aí. E, para que se tenha uma pálida idéia do movimento de navios ao redor do mundo, pense-se que, em um único porto apenas, ainda que um dos maiores deles - Singapura -, operam quinhenos navios por dia. É monstruoso o movimento daquele porto, totalmente automatizado. Não vou nem tentar descrevê-lo, logo eu, para quem o mundo todo não poderia conter tanto navio andando ao mesmo tempo…

Pois bem. Estes conteiners caem dos navios em virtude de temporais. Além disso, muitos deles são jogados fora, já vazios, após se haver alguém apoderado da carga, para posteriormente ainda ser recebido o seguro da carga “perdida”... E esses monstros levam dias, às vezes semanas, para afundar. Até que tal ocorra, ficam semi-submersos, a poucos centímetros abaixo da superfície da água. E se uma casquinha de noz, igual a esta aqui, bate em um negócio desses? Quando chegasse algum socorro, quantos quilômetros já teríamos descido na vertical?

Não estou dizendo que a noite escura é antídoto contra conteiners. Claro que não, até porque, como disse, não fica um cristão de vigília o tempo todo, olhando para o Mar. Agora, por exemplo, eu estou dentro da cabine, escrevendo, enquanto o Negrão, lá fora, vai-nos levando em frente. Daqui a pouco, a meu critério, vou dar uma olhadela geral e volto. Senão, como ficaria este único e extraordinário trabalho intelectual que se produz neste vaso de guerra? E mesmo que ficasse alguém lá fora, permanentemente - como ficávamos no Madrugada, por exemplo, levando-o na mão dia e noite -, não veria nada. Muito menos um conteiner.

A noite escura ajuda a ver luzes que se deslocam no Mar porque isso, em noite clara, de lua cheia, às vezes é muito difícil. Outra coisa: quem fica sempre lá fora é o piloto automático, carinhosamente chamado Negrão, nos meios náuticos. Ele não pode entrar aqui em hipótese alguma. Ele não tem turno de trabalho. Está timoneando o nosso Haaviti desde que saímos de Palma de Majorca. Às vezes, para dar uma colher de chá, um de nós o desliga, toma o timão nas mãos e leva o barco durante um certo tempo. Afinal, ninguém é de ferro; só ele o é. Mas em compensação, se ele adoecer, estamos ferrados. Sorte que ele não adoece. É o meu companheiro de infortúnio e mais um operário a serviço da alemoada.

Quarta-feira, 29 de novembro (coordenadas das 22 h GMT de terça-feira: 18.37 N e 033.53 W).

Quase uma da madrugada. A partir de agora, o prontidão sou eu. Entramos no nono dia, ainda longe da metade. O rumo alterou-se um pouco para 294 graus, o vento é ainda aquele nordeste constante de 15 a 20 nós, faltam 1.639 milhas para St. Martin, o sol sairá aqui nesta longitude às 08h 31min, pondo-se às 19h 38min. Nossa velocidade, neste momento, é de ótimos oito nós. O Mar não está para peixe, muito embora os voadores pulem aqui para dentro a toda hora. Quando o peixe-voador bate fortemente no barco, seus olhos saltam de suas órbitas e caem fora. É um fenômeno quase chocante.

Ontem, passei toda a madrugada e toda a manhã examinando estas mal traçadas linhas. E não arredei pé daqui mais do que uma hora, se tanto. Antes, durante quase toda a noite, também não dormira. Fiquei, como se diz, sem saber onde pôr o ovo. Que estranho: dou-me conta, agora, que parecia haver algo no ar...

O Graeff esquentara o rango do dia anterior e ainda deu uma melhorada. Ao contrário dos demais dias, almoçamos antes das 11h. O café-almoço ficou melhor ainda do que o feijãozinho que ele fizera aqui para o Pero Vaz de Caminha, da Divisão Panzer. O Tatu lavou toda a louça que apareceu pela frente, até mesmo a que eu havia escondido, tão cheio andava de lavar pratos. Depois, à noite, ele foi resolutamente para o fogão e fez uma tal de rabanada, pão com ovo e outros venenos mais, que todos comemos até socar, de tão boa. Lavou toda a louça de novo. Mas ninguém falava; era um silêncio só. Em verdade, estávamos abalados com o que ocorrera no final da manhã, um fato desagradável e extremamente perigoso.

Ontem, 28 de novembro, terça-feira, precisamente às 11h 13min, nas coordenadas 18.51.070 N e 032.36.999 W, ocorreu o que mais temem todos que navegam pelo Mar: abalroamos uma enorme baleia. Este é e sempre foi o terror de todo velejador.

Ficamos, todos nós, muito tocados. Passamos o dia quase em silêncio. Aquele clima contagiante de fraterna alegria e gozação, até ali imperante no barco, não se fez presente. Durante o resto do dia, ninguém dormiu. Enquanto eu escrevia, notava o semblante pesado dos companheiros. Nada bom. À noite, durante a roda do SSB, o assunto não foi outro entre os demais velejadores. Até da Indonésia vieram narrações de casos ocorridos. E isso só piorava o nosso já baixo astral.

Foi um choque. Literalmente. Choque que atingiu o íntimo de cada um de nós. Ficamos imaginando o que teria ocorrido se o enorme cetáceo atingisse, por exemplo, um dos lemes da embarcação. Certamente, o leme rebentaria e abriria o túnel pelo qual o equipamento atingido liga-se ao interior do barco. Iríamos ao fundo. É bem verdade que não tão rápido, mas, fatalmente, o barco soçobraria. Talvez tivéssemos tempo de sair para a balsa de salvatagem; mas também poderíamos ficar por aí, à deriva, até que alguém…. ou um tubarão….sei lá.

Pensou-se, ainda, na hipótese de uma colisão frontal com um dos cascos. O barco, então, travaria daquele lado e, com o outro casco progredindo livremente, um cavalo-de-pau ocorreria face à grande velocidade desenvolvida naquele momento. A proa do casco liberado, ao mergulhar, faria com que o barco capotasse: o temido capsize. E catamarãs não desviram; eles afundam.

É bastante comentada, nos meios vélicos, a sorte de um casal que recentemente velejava pelo Pacífico, na região do Havaí, a bordo de um Arpege 28. Colidiram com uma baleia, o barco afundou, e eles ficaram 63 dias no Mar, à deriva. Por pouco não morreram.

Outra ocorrência destas deu-se próximo a Galápagos, na costa ocidental da América do Sul, quando uma baleia-piloto atacou um veleiro, pondo-o a pique. Eles teriam colidido e a baleia, ferida, voltou para atacar o barco.

Há casos relatados de fêmeas que atacam embarcações que passam próximas de seus filhotes. Querem defendê-los da ameaça. Também há relatos de colisões com baleias que estão dormindo e que, quando atingidas, reagem e saem atrás da embarcação, procurando enfrentá-la.

Felizmente, há teorias segundo as quais baleias não atacam catamarãs porque estes, sendo constituídos de dois cascos, aparentam ser dois enormes peixes, e não apenas um, como no caso dos monocascos. Teorias...

O cetáceo deve ter sido atropelado pelo bordo interno do casco de boreste, próximo à proa, isto é, o lado que fica para a linha média longitudinal do Haaviti. Conforme ocorreu a colisão, o barco travou, dando a impressão de que a baleia passou por baixo da ponte, levantando levemente a embarcação. A parte da ponte de ligação entre os cascos mais fortemente atingida é, precisamente, onde se localiza meu camarote. Há poucos instantes do acidente, logo após o almoço, eu havia deitado um pouco.

Depois da pancada, a baleia imediatamente surgiu pela popa, na esteira deixada pelo barco, ergueu seu enorme corpo e deu o que o homem do Mar chama de cachimbada (o esguicho característico); em seguida, desapareceu. O temor de que viesse a nos atacar demorou muito a se desfazer. O Graeff chegou a ver o lombo escuro do animal quando este se afastava. Ninguém está preparado para enfrentar serenamente tal situação. O Tatu entrou correndo no barco, foi ao meu camarote, levantou os paineiros e constatou que estava tudo bem. Não havia infiltração d’água e sequer rachaduras.

Minha cama fica na parte frontal do barco, na proa, a boreste, trasversal em relação ao eixo longitudinal da embarcação, local onde ocorreu a colisão. Ela forma um prolongamento com a cama do camarote correspondente, situado no casco de bombordo. Por isso, literalmente, eu durmo sobre as águas. Os dois camarotes de proa - um em cada casco - ficam no que chamamos ponte, isto é, a parte que liga os dois cascos um ao outro e onde se localizam a área externa de popa, o salão interno e, um pouco mais para vante, os dois referidos camarotes. No extremo frontal do barco, na proa, portanto, situa-se a rede suspensa entre a ponte, os dois cascos e a barra transversal de sustentação do estai de vante.

Vista de fora, a ponte não fica mais do que meio metro da superfície da água. É a região que sofre os mais violentos impactos das ondas, provocando os estrondos antes referidos. Os mais fortes, estremecem, literalmente, toda a embarcação. Parece que tudo vai desmanchar.

O Tatu ocupa o camarote de popa do casco de bombordo; o Graeff ocupa o correspondente ao do Tatu, só que no casco de boreste. Ou seja, o Graeff é meu vizinho de camarote - ele no de trás e eu no da frente, no mesmo casco de boreste. Entre ambos, os banheiros de cada camarote e, entre estes, a pequena escada de três degraus que dá acesso ao salão interno.

Feita essa digressão, é fácil imaginar que, com o Mar muito mexido, como este que temos enfrentado nos últimos dias, ocorrem explosões de ondas contra a ponte, pela proa, em virtude das parciais, porém grandes, mergulhadas que o barco faz nas cavas das ondas imensas. São muralhas d’água que levam por diante tudo o que encontram. Não por outra razão, os barcos surfam nas ondas quando navegam de popa.

Derrubado pelo sono, eu já estava me acostumando com os tais estrondos; eles já ocorriam no trecho do Mediterrâneo, em que a navegada foi muito dura. Parecia que iam levantar o assoalho da cabine, rebentando o cavername do barco, inundando tudo de vez.

Na colisão com a baleia, notei que houve uma dessas freqüentes trombadas mas, diferentemente das demais, senti o barco travando, como se tivesse freado. Pareceu-me, porém, que ele encontrara a cava mais profunda de uma onda bem maior, o que acontece com alguma regularidade nesta região do Atlântico. Os manuais chamam a atenção para ondas que, apesar de um Mar calmo e tranqüilo, vêm com grande força e tamanho bem maior que o comum. São ondas resultantes de fortes temporais ocorrentes nas altas latitudes do norte do Atlântico e que, arrastando consigo enormes massas d’água, transformam-se, em alta velocidade, nos famosos swell. Estes, em alguns casos, viram embarcações situadas aqui, tão longe da origem do fenômeno. São, verdadeiramente, um pequeno tsunami.

Assim, atribuí o choque a um swell e virei para o lado, pretendendo seguir meu breve descanso. Não era swell. Era uma baleia. E das grandes.

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São cinco horas da manhã locais. Vamos no rumo 290, com ventos ainda de nordeste. O tempo é bom. A velocidade é entre 6 e 7 nós, o sol virá às 08h 34min e se porá às 19h 41min.

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São 21 h GMT, noite magnífica com uma lua maravilhosa brilhando no Mar. Ela provoca um facho de luz que vem por baixo da retranca, como se quisesse entrar no barco. O Mar, durante o dia, esteve grande, bem mexido. Não consegui escrever uma letra sequer. Tudo sacode. À tarde, avistamos um veleiro por boreste quando encontrávamo-nos no rumo 296. Às 13 horas, estávamos em 18.40 N e 035.44 W, faltando 1.555 milhas para St. Martin. Navegávamos, naquela ocasião, igualmente no rumo 296, de balão e com ventos soprando de nordeste.


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