Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(11º capítulo)


DO MEIO DO MAR OCEANO AO MAR DO CARIBE

Quinta-feira, 30 de novembro (coordenadas das 22h GMT de quarta-feira: 18.38 N e 036.45 W).
Pouco antes da meia-noite, sou despertado pelo Tatu. O balão enroscara-se outra vez no estai de proa. Quando lá cheguei, o Graeff já estava sobre a rede. O balão foi arriado, posto pela gaiúta da proa no paiol onde ele mora, abrimos a asa-de-pombo e seguimos adiante. Manobra perfeita, bem mais tranqüila que a inesquecível manobra no través de Casablanca, ainda antes de chegarmos às Canárias. Lá foi muito duro; aqui tem sido mais fácil.

O vento está forte; o Mar está agitado. Mas o balão foi recolhido sem maiores problemas. Apenas um pouco molhado, porque eu não o segurei como devia. Pela manhã, será posto para secar.

Pronto, já temos assunto para um dia inteiro. Se é que a trova já estará hoje de volta...E tem gente que pensa que em barco a vela não há nada para fazer e nem assunto para conversar! Por isso, esses velejadores malucos vivem lendo. Total: eles não têm mesmo o que fazer; velejar é uma coisa monótona. E muito demorada…

......................................

Ultrapassamos a metade!

Agora, às 14h 30min-GMT, já estamos do lado de cá da travessia. Após completarmos, neste Mar Oceano, nove fantásticos dias de navegada, desde Las Palmas de Gran Canaria, cruzamos a marca do meio. Passamos para o lado oeste da grande cruzada. Se tudo continuar assim, faremos a travessia entre 18 e 21 dias.

Nossa posição agora é 18.31 N e 038.54 W. Para St. Martin, faltam 1.375 milhas; Las Palmas ficou 1.415 milhas para trás. Nosso rumo é 279, direto ao objetivo, e estamos surfando a uma velocidade entre 8 e 9 nós com ventos fortes entre 30 e 35 nós.

Apossa-se de mim o sentimento de que estou, finalmente, voltando para casa. É estranho: mesmo estando tão longe do ponto final, sinto uma espécie de vitória antecipada. Muito embora falte ainda exatamente tudo o que já percorremos, desde Las Palmas.

O Mar, este desconhecido imprevisível, ergue-se em monumentais paredões, rugindo sinistro. Levantam-se gigantescas ondas de água cor de petróleo brilhante. A navegada, conquanto ainda duríssima, é branda se comparada à de ontem à noite.

O Haaviti comporta-se como o fazem os bravos e fortes. Provou meu erro, reconheço: ele é um valente. E por isso eu o respeito. Como ao Molecão. Decidido e bravo, enfrenta galhardamente este Oceano gigantesco, tangido por ventos e vagalhões capazes de preocupar os mais calejados navegantes.

Emociono-me. Como diz a canção, se chorei ou se sofri, o importante é que emoções eu vivi. E para vivê-las, busco o mais profundo do meu ser e de lá recolho, com amor e respeito:

 

Muito obrigado Haaviti
por me teres trazido aqui
neste Mar grosso e profundo
que a melhor coisa do mundo
é mesmo sair por aí

sem lenço, sem documento
pronto para a qualquer momento
o Mar grandioso singrar
e dizer todos os dias
quanta e quanta alegria
o Mar eterno me dá...

Sexta-feira, 1º de dezembro (coordenadas das 22 h GMT de quinta-feira: 18.23 N e 039.41 W).

São cinco horas da manhã. Começou dezembro. Estamos cruzando o centro do Mar Oceano, no hemisfério norte, a 1.262 milhas de St. Martin. Há 4.668 metros de água por baixo de nós. Como temos pensado nisso.

Abro a carta 4.012 do Atlântico Norte, fixo uma das pontas do compasso de navegação no ponto em que estamos, e giro o instrumento 360 graus. Levo ambas as pontas até a régua vertical de medida das latitudes e constato: em um raio de 1.200 milhas em nosso entorno, inexiste terra conhecida. Também não temos notícia de qualquer embarcação navegando por perto. Cerca-nos a espantosa vastidão do grande Mar. Estamos no planeta Água; hoje é dezembro. Somos nada.

É dezembro, mês das expectativas do fim de ano e planos para o próximo. É sempre assim. O ser humano teima em querer o que ainda não tem: o futuro; ou prende-se, desesperadamente, ao que ele já não tem: o passado. Recusa o seu tempo. Duas condutas, um só resultado: ele é infeliz. O dia em que vivermos no presente, como agora nós, aqui, neste imenso Oceano, viveremos melhor. Viveremos felizes. Melhor, porque não estaremos buscando o impossível: resgatar o passado e saber o futuro. Felizes, porque satisfeitos com o que temos aqui e agora.

O consumismo por que passa a humanidade, se leva ao conforto fácil, retira o que podemos ter sem consumir: a auto-suficiência. Quantos têm uma bela casa na praia e moram em um quase-cortiço na cidade grande! Vivem privações durante onze meses para, em troca, viverem um mês, ou menos, numa realidade que não é real. Por que? Certamente, por causa desse monstro voraz, a maldita posição social, que rouba ao homem o que talvez mais o iguale a seu semelhante: a simplicidade.

O ser humano, com sede de destaque em seu grupo, esqueceu-se de olhar para dentro; já nem mesmo sabe quem é. E a tal ponto que restou desfigurado pela vassalagem ao novo imperador da sociedade moderna: a aprovação social. Desvirtuou-se. Cuida apenas e tão somente dos efeitos mais favoráveis que sua vida social de fachada lhe proporciona. Prostituiu-se. Saiu de si próprio e buscou estranhos caminhos de submissão.

O homem já não tem mais vergonha de si próprio. Rebaixou-se. Busca somente a suficiência do status que os indicadores sociais lhe exigem, na repugnante bolsa de quem aparece mais. Aviltou-se. O homem degenerou-se e isso deve-se a uma só causa: a cultura deixou de ser um bem em si mesma. Ela não tem cotação em bolsa; já não há mercado para ela.

Felizes os simples, felizes os que se aceitam como são e que podem ficar sós consigo mesmos; felizes os que se bastam. Estes são felizes porque não devem provar nada a ninguém. Nem a si próprios: eles se conhecem.

Hoje parece dezembro de um ano dourado. E este ano, para mim, foi e até ao fim será dourado. O melhor ano de minha existência. Porque é o do presente. O futuro será tão bom? Será, com certeza, ainda melhor porque, se eu fraquejar e quiser olhar para trás, verei que lá ficou um grande ano: o ano 2.000, um ano dourado. E se assim aconteceu, assim poderá acontecer outra vez.

Mas não estou esperando pelo novo ano porque sei que certamente virá. Não fiquei esperando o sistema me comandar, dizendo que rumo eu deveria seguir. Escolhi a minha rota. Não fiquei chorando as tormentas, porque elas nem são tão fortes assim e, além disso, preparei-me para suportá-las. Elas não conseguirão tirar-me do rumo. Preciso de muito pouco, embora receba em abundância. É por tudo isso que vou sem pressa, sem medo, sem ansiedade, sem aflições. Sou um velejador.

……………………………………

Já faz alguns dias que ocorreu o episódio da baleia. Nesse interregno, procurando verdadeiramente levantar o moral da turma, deixei de ser o exclusivo lavador de louça, aqui da pensão, e assumi o papel de desajeitado comediante. Inventei uma “hora de arte”. Virei o palhaço de plantão para ver se distraía a galera, naturalmente ainda bastante tensa. Não há como abreviar a navegada. Estamos a mais de 1.000 milhas da terra mais próxima e o remédio é levar tudo na caricatura, na sátira e até no deboche.

Assim, para minimizar a situação obsessiva que nos faz pensar apenas no risco de naufragar, fiz o Pé-quente conviver pessoalmente conosco, na qualidade de verdadeiro tripulante. Passei a falar como se eu próprio fosse o Pé. E será que não sou mesmo?...

Tão logo termino de escrever, passo a encenar para os rapazes o papel voluntariamente assumido: o Pé-quente em alegres horas de arte. É possível que, quando voltar à terra, eu julgue ridículo o que agora escrevo com vistas a aliviar o tenso ambiente. Enfrentamos a sinistra realidade: volta e meia o Graeff indaga, com seriedade, se a baleia estará ferida, ou se ela voltará para nos atacar; se voltará sozinha, ou com dezenas de outras. Só pode saber o que sentimos quem já tenha, por ventura, passado por algo semelhante ao que passamos.

Sábado, 02 de dezembro (coordenadas das 22h GMT de sexta-feira: 17.56 N e 042.23 W).

Inicio o primeiro quarto do dia. Faltam 1.156 milhas para St Martin; rumo 305; ventos ENE; alvorecer 09h 06min-GMT. E aqui vamos, tentando elevar o moral da pensão, na cara e na coragem. O besteirol corre solto e a coisa tem sido mais leve. Sou o melhor comediante num raio de muito mais de dois mil quilômetros. Aliás, nesse raio, somos os melhores em tudo. Não há mais ninguém por aqui…

O tempo anda inconstante, incerto. Acabo de corrigir 20 graus no rumo. O vento orçou e desarmou a genoa que está, em asa-de-pombo, armada a barlavento. Fico ligado: se ela voltar para onde estava, tenho de imediatamente orçar para que não ocorra o eternamente perigoso jaibe do grande. Os ventos têm variado muito, de direção e intensidade.

Na calmaria de ontem, diminuímos bastante a velocidade mas, com o passar da noite e a reentrada do vento forte, recuperamos o retardamento. Por isso, a singradura permaneceu ao redor das mesmas 170 milhas que, em geral, tem-nos acompanhado. Enormes pirajás despejam sobre nossas cabeças toneladas d’água. Mas o tempo tem ajudado e não será contrariado. Devemos entendê-lo. O tempo é amigo do homem do Mar.

………………………………

Agora são 18h 30min. Não consegui escrever o dia todo. Não há como. Vamos a 10 nós, em uma grande baloneada. Levantamos o balão às 14 horas. Vamos retirá-lo quando cair a noite. As manobras noturnas de balão têm sido mais difíceis. Mas a turminha é teimosa: sempre quer recuperar o tempo perdido nas calmarias. Daí a mania do balão tendente a ser diuturna.

O sol se porá às 20 horas. Mas amanhã ele voltará a iluminar nosso caminho. Pelas informações colhidas ontem no SSB, a presença de vida humana mais próxima neste Mar infinito está a mais de quatrocentas milhas daqui. Deve ser um veleiro retardatário da ARC. Não sabemos. E nós, aqui, velejando de balão à noite…

………………………………

Na hora de arte, o Pé-quente faz a maior crítica ao balão noturno, dizendo a verdade. Devido ao tom de pilhéria, nenhum dos três malucos fica ofendido. Infelizmente. Mas acho que ao menos pensam no que pode acontecer se houver uma encrenca noturna com o balão. Ataco, pois, outra vez, de Pé-quente…


Glossário

Índice