Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(12º capítulo)


Domingo, 03 de dezembro ( coordenadas das 22h GMT de sábado: 17.59 N e 045.16 W).
Começa um novo dia. Agora é uma hora da madrugada. Faltam 991 milhas para o ponto de destino. Nosso rumo magnético é 304 graus, com vento aumentando de nordeste - 20 nós.

Subi para o cockpit cerca das 22 horas, após dormir desde às 19 horas. Era meu primeiro sono do dia. Mas preciso estar atento para não perder um detalhe sequer do entorno. A noite é belíssima. A lua crescente, com sua metade já quase completa, vai-se pondo aos poucos para oeste, por baixo da retranca, no bombordo. Para leste, pela popa, as constelações de Orion e, depois, Touro parecem seguir os passos da enorme e brilhante Sirius, que se encontra sobre nós. Pela nossa marcha rumo às maiores longitudes de oeste, a cada dia que passa, todas as estrelas parecem cair um pouco mais para o nascente, em relação à hora da noite em que privilegiadamente as observo.

Na mesa de navegação, encontro a “máquina humana de navegar” de pé, olhando a carta. É desconcertante, para mim, a extrema naturalidade com que o Tatu veleja. É impressionante vê-lo na travessia, sem perder um só detalhe. Para quem chegou temporão, como eu, à atividade marinheira, isso fica acima de qualquer compreensão.

Já disse antes, meu aprendizado não foi fácil. Jamais tive e jamais terei o reflexo desses homens que começaram a navegar ainda crianças. Como o meu Rafael, por exemplo; ou o Tatu. Eles navegam com a mesma naturalidade e conhecimento de causa com que eu escovo os dentes. É a natureza deles. Esforço-me o que posso para imitá-los, mas falta-me a base: o reflexo, que desemboca na facilidade em fazer. Não cheguei a tempo de alcançá-lo.

Esta noite, o Mar está enraivecido como poucas vezes esteve. O barulho é ensurdecedor. Digitar torna-se muito difícil. O barco joga como nunca jogou até aqui. O vento uiva lá fora. Mas é o mesmo e benvindo vento leste-nordeste, que nos tem acompanhado desde Las Palmas, com poucas variações de direção. O Mar fica imenso.

Vou-me segurando até a roda de leme de boreste e fito a extensa mancha de noctiluca miliaris que o barco vai deixando para trás. Apoiado no guarda-mancebo, sento-me para apreciá-la. É um outro firmamento, salpicado de estrelas como o próprio céu. E reflito: aquele rastro, que agora vejo, não deixa, por certo, de existir durante o dia; mas eu não consigo vê-lo. Não o vejo porque não há o contraste da escuridão da noite, para que a luminescência apareça. Mas ele permanece lá. As estrelas também são assim; não deixam de existir só porque não se pode vê-las. São uma realidade que queremos, mas não podemos ver.

Penso no avesso dessa reflexão. Enquanto esta é uma realidade que queremos ver, mas não podemos, quantas mais existem que podemos ver, mas não queremos? Quantas vezes enganamos a liberdade de vê-las, ainda que sejam coisas muito simples? Fala-se tanto em liberdade, mas não se fala na simplicidade. Esta é a medida daquela: quanto mais simples, mais liberto; quanto menos, mais dependente. Ambas vivem uma relação harmoniosa, mas a liberdade depende da simplicidade. Aquela não existe, se não existe esta; mas a simplicidade até pode existir, ainda que não exista a outra. Os escravos são simples; mas são escravos.

A liberdade não ocorre sem a simplicidade. Esta é a irremediabilidade de tal dependência. Sem simplicidade, não há liberdade porque o fútil sempre cobrou caro pedágio da liberdade. Ele avassala, escraviza. A dependência do fútil, do que não é indispensável, tira a liberdade na medida em que não se pode estar sem ele. E por depender-se dele, não se é livre. O velejador busca a liberdade. Ele possui o requisito básico: ele é simples.

Não há liberdade sem simplicidade. E isso porque, se o meio não me permite ser simples, eu não tenho liberdade. Eu me rendo à imposição do meio. E se eu não me rebelo, ou não posso me rebelar contra o meio opressor, liberdade eu não tenho. Porque a única liberdade possível é a da não sujeição. E quem se sujeita, depende, precisa; quem precisa não tem liberdade. É um tutelado. Está subjugado ao objeto de que carece. Quanto menos se precisar de algo fora de nós, maior liberdade teremos. A liberdade, em seu ponto culminante, é a desnecessidade, é o bastar-se a si próprio. Sem simplicidade, a liberdade é apenas uma palavra.

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Acordo com um estrondo em baixo de mim que quase me arrancou da cama. Ao sair de uma cava de onda maior, o Haaviti deve ter levantado muito a proa para compensar o mergulho de nariz e a onda seguinte pegou-o em cheio, explodindo em sua barriga, ou seja, sob a ponte que liga seus dois cascos. Desta vez, não era uma baleia. Felizmente. É impressionante que o barco não se despedace com o Mar ensandecido do jeito que está. Milagres da tecnologia náutica.

Fui para a cama às duas horas, pensando na estabilidade emocional dessas máquinas de velejar. Quem não conviver com eles dentro de um barco, em uma grande navegada, não imaginará como são incríveis essas criaturas. Quando velejam, não parecem seres humanos; são irracionais. Penso até que não raciocinam como o comum dos mortais. Conquanto a natureza os haja dotado de inteligência superior, são brilhantes, acho que se tornam animais instintuais, tal a naturalidade e perfeição com que velejam. Tudo fazem nos barcos, tudo conhecem. São capazes de construir os barcos. E pô-los para navegar. Todos são grandes costureiros de velas rasgadas, emendam cabos partidos, consertam aparelhos avariados, resolvem problemas elétricos e de motor, conhecem os ventos, são íntimos do Mar, das estrelas, dos humores do barco, cozinham muito bem, e assim por diante. Para eles, tanto faz o timão, quanto a chave de fenda. Levam tudo a bom termo.

Já fui para o Mar, fiz translados e já corri regatas com sete desses monstros. Jamais saberei qual o melhor dentre eles na ordem em que, no Templo eterno, com eles entrei. Não tenho como saber. Talvez só haja mesmo uma única coisa em que não me superam: nenhum deles é mais louco do que eu. E todos sabem disso. Dentre os velejadores que conheço, escolhi estes porque, sob seus comandos, não apenas fiz longos translados mas igualmente corri regatas no Mar. Outros haverá, por certo, mas, com estes sete, compartilhei inesquecíveis momentos de aprendizado e prazer.

O primeiro desses estranhos seres que conheci é o Bóris Ostergreen. Dentre meus mais próximos amigos, o Bóris é, certamente, um dos mais calmos e pacíficos. Velejando, entretanto, é ousado; e frio como o mármore. Não é por nada que se tornou campeão mundial de vela. Não é por nada que já foi a duas Olimpíadas como técnico da equipe brasileira de vela. Ele é uma geladeira que veleja. Quando tudo está parado, sem vento algum, numa exasperante calmaria, só o Bóris sabe captar o vento, algum vento. Às vezes, ele pede um cigarro aceso para alguém e fica, longo tempo, olhando a fumaça desprender-se no ar. Não fala, não respira; fica imóvel. Para os mortais, a fumaça apenas sobe na vertical; para ele, ela mostra a direção do vento que só ele vê.

Certa feita, corríamos a regata longa do Circuito de Florianópolis, no Iron lady, do Mauro Galicchio (onde anda o Galicchio?). Eu me considerava a maior autoridade internacional em navegação presente no hemisfério sul. O Bóris, ao longo do percurso, ia me indagando sobre profundidades, rumos, correntes. E eu me achando o máximo. Deixa para lá que é tudo comigo.

Contornávamos a Ilha Coral, de fronte a Garopaba, uma das mais perigosas da região devido às pedras submersas esparramadas em seu lado sudoeste, sem qualquer sinalização identificadora. Sentado na borda, eu controlava nossa passagem com um olho no GPS e o outro na carta, que levava sobre as pernas. Lá pelas tantas, disse a ele que mudasse imediatamente o rumo, senão bateríamos nas pedras, eis que as circunstanciais correntes arquejantes do perímetro e não sei o que mais... Eu sabia tudo.

O Bóris dizia que ia dar, que a carta estava errada, que não podia ser, onde já se viu regata sem risco, que na véspera, certamente, haviam retirado as pedras dali... Passamos. Fiquei com cara de bobo e o Bóris, carinhosamente, segurou a minha mão e me cumprimentou pelo belo trabalho feito. Até hoje desconfio que ele nem estava ouvindo minhas sábias e bem fundadas instruções. Máquina de velejar.

Depois do Bóris, quase ao mesmo tempo, conheci o Nelson Horn Ilha. Da primeira vez que levei o Molecão para o Mar, o comandante era o Nelson. Era impressionante: ele saía de quarto, deitava e imediatamente dormia; duas horas depois, pontualmente, na mesmíssima posição em que adormecera, despertava de modo automático, sem ninguém acordá-lo. Retomava seu turno de vigília. A naturalidade com que conduzia a navegada era algo acima da minha compreensão.

Na saída de Rio Grande, houve um princípio de incêndio a bordo, partindo do painel de instrumentos. O Nelson foi lá, deu uns berros com os fios, e voltou com tudo resolvido. Não entendi nada. O Nelson não havia nascido e já corria regatas pela Lagoa dos Patos, no útero da Valmy. Ele nasceu velejador. E é marinheiro até no nome: seu prenome é o do herói de Trafalgar; o sobrenome é composto do acidente geográfico mais benvindo e o do cabo mais temido pelos navegantes em geral. Hoje, ele é juiz de regatas nas competições olímpicas do mundo inteiro.

Naquele primeiro traslado do Molecão, éramos quatro no barco; os turnos feitos com dois tripulantes. É que um deles não poderia ficar sozinho, à noite, responsável por um turno de vigília. Não tinha experiência suficiente. O inexperiente era eu.

Dois dias após a partida, durante a noite, tivemos que fazer uma manobra de balão. Quando o Joca e eu fomos para o convés, o Nelson lembrou-nos que havia um cabo amarrado no guarda-mancebo, por boreste, que certamente impediria a passagem da escota do balão. Seria o maior desastre. Durante a primeira noite, o Joca amarrara o cabo ali e só o Nelson vira. Ele lembraria dois dias depois.

Nelson vê no escuro. E tem memória de elefante. Além disso, é tão maluco que fazia traslados para cima e para baixo, por esta costa toda, levando apenas bolacha e água. Era para treinar sobrevivência…Na vez em que me levou para correr a regata Santos-Rio, ele timoneou o barco, dia-e-noite, durante quase todo o tempo que durou o longo percurso. Raramente entregava o leme para alguém. No comando, creio que o Nelson não dormiu um só minuto. Naquele barco, eu era certamente o mais velho tripulante; todos os demais poderiam ser meus filhos. Até o Nelson poderia.

Nessa minha segunda Santos-Rio, as coisas não foram muito melhor do que da primeira vez: fiquei vinte e três horas consecutivas sentado na borda do barco, fazendo contra-peso com toda a tripulação. Encharcado, cansado, com sono, louco para fazer xixi e odiando o Nelson, eu me perguntava a toda hora: “o que é mesmo que eu estou fazendo aqui?”

Após aquele primeiro traslado com o Molecão, permaneci pela costa catarinense, sofrendo as dores do tardio aprendizado. Ali apliquei muito do que havia, até então, aprendido com o Bóris e o Nelson, meus primeiros e pacientes mestres. Depois disso, nunca mais entreguei o comando do meu barco para quem quer que fosse.

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Estamos a 944 milhas do porto de chegada. A noite é incrivelmente estrelada. O vento, muito forte, sopra a 30 nós. O barco, galhardamente, luta contra o Mar revolto. O vento aumentou em muito a altura das ondas, mas se esfrega sobre elas, com isso ainda impedindo que se esborrifem e levantem espuma sobre nós. Contudo, já não me passa pela cabeça chamar o comandante para determinar manobras a fim de manter o barco em segurança. Meus companheiros estão dormindo e assim continuarão. Mesmo, como agora, quando o vento uiva raivoso, levantando enormes montanhas líquidas atrás de mim, enquanto o barco surfa, perigosamente, a doze nós de velocidade.

Nessas condições, torna-se quase impossível digitar no laptop. Só o exemplo dessas obstinadas máquinas humanas de velejar me faz permanecer tentando. Sei que tenho de diminuir o pano. Vou enrolar a genoa: o barco poderia mergulhar em uma cava de onda e, quem sabe, capotar. E catamarãs não desviram...

Todos os meus atos são prévia e cuidadosamente pensados. São praticados com demora. É o imenso temor de errar, o medo dos que sabem pouco, dos que aprenderam tarde, dos que chegaram depois. Para esses outros seres, como o Tatu, que agora dorme, são atos conaturais a suas estruturas psíquicas e de formação vélica. E eu jamais chegarei a ser um desses.

Sento-me outra vez na braçola da popa, por boreste. É o meu recanto contemplativo. Fico maravilhado com a estabilidade dessa monstruosa fortaleza que navega sobre suas duas enormes patas. Penso na estabilidade do barco e daqueles marinheiros que têm a vela no sangue. Penso na estabilidade tão ansiada pelo homem. O homem é um ser instável.

Quando deixou de ser nômade, porque a caça nos campos rareou, o homem fixou-se na terra para plantá-la e dali tirar seu sustento. O Mar era cerca de duzentos metros mais baixo do que é hoje. Ásia e América eram ligadas pelo estreito de Bering. Os desertos não eram secos como agora; a Inglaterra era continenal. Havia, pois, enormes extensões de terra contínua que hoje já não existem mais. E havia caça abundante, tornada rara pela insuficiência de reprodução.

O homem, então, foi cultivar a terra, primeiramente em lugares baixos e úmidos e, por isso mesmo, mais férteis, como os vales dos rios Amarelo, Eufrates, Nilo, Tigre e Mecong. Com isso, foi-se tornando definitivamente sedentário. E a tal ponto que a população nômade de hoje é, aproximadamente, a mesma de quando isso ocorreu. Pouco depois, com a evolução agrícola, teria início, na história da humanidade, a era do arado.

Então o homem agrupou-se, criou as primeiras regras escritas de convivência, para organizar, com alguma harmonia, suas relações dentro de seus grupos e entre estes. A partir de então, pensou haver adquirido estabilidade. Na verdade, acabava de perdê-la.

A vida grupal exige renúncia. Somos educados para que nosso direito vá até onde começa o direito do outro. Essa é a primeira regra de conduta, a primeira regra jurídica que o homem estabeleceu. E nem é bem uma regra de conduta, mas sim uma regra de conduta sobre regras de conduta, tanto que os juristas chamam-na regra de sobredireito. E a partir daí foram sendo criados os direitos do novo homem sedentário. Tinham como balizamento aquela regra primeira. De qualquer forma, porém, ela nasceu antes dos demais direitos. E criou a instabilidade no homem, ou seja, o direito dos outros...

Com a perda de seu estado nômade, o homem teve de renunciar à sua liberdade. Os raros povos nômades que ainda existem, como os esquimós, os penans malásios, os beduínos e os habitantes do sul do Chile, quase não têm regras. E nenhuma delas é escrita. Até são analfabetos. São como os velejadores solitários que, vez por outra, são vistos por aí. Escondem-se das cidades, fogem das convenções, não querem submeter-se a esse establishment devorador da liberdade. E por isso andam e trajam do jeito que os urbanóides chamam, ironicamente, de não-convencional. Em verdade, os ditos desajustados são pessoas que jamais renunciaram a sua liberdade. Cidadãos do mundo, sua pátria é o Mar. Como se diz por aí, eles chutaram o pau da barraca.

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São, precisamente, 09h 33min-GMT. Pela popa, ligeiramente por bombordo, a partir do recanto contemplativo, vejo surgir enorme bola de fogo na linha em que o céu encontra o Mar. O astro-rei ergue-se lento no horizonte e não há poeta capaz de descrever essa extraordinária beleza. Ainda faltam 931 milhas para chegar. Como poderia eu, agora, dormir?…

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O sol acabou de ir-se. É a vez da noite neste show. Passamos o domingo como se fosse um domingo qualquer. Velejaço, balão em cima o dia todo, grande almoço preparado pelo Graeff, com feijão e tudo. Foi um dia realmente maravilhoso, com a navegada de que estávamos precisando. Merecíamos. O Mar não andava amistoso conosco. Só o vento, à exceção desta madrugada, quando exagerou um pouco, ao menos para o meu gosto. Mas agora vai tudo bem. Acabamos de arriar o balão. Decidimos que ele não navegará mais à noite. Pensando bem, a hora de arte faz milagres…

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Hoje, me apercebi da causa da extrema irritação nos meus olhos desde Gran Canaria, ou pouco depois. Por estranho que pareça, foi a partir da grade do chão do box do banheiro que descobri o que provoca a irritação. Sempre, depois que tomo banho, quando isso é possível, coloco a grade encostada na pia para secar melhor. Ela é de madeira. Em poucos minutos, está completamente seca. Só hoje, alertado pelo Graeff, dei-me conta de que o problema com os olhos, nessas latitudes, é a secura. Aqui inexiste umidade. Custa a crer que nesta imensa planície líquida, o clima seja seco como é.

Outra causa, ou concausa, da irritação é o sal. No Mar alto, até o ar é salgado. Sente-se coceira nos olhos e o gesto de passar as mãos é quase inevitável. A conseqüência: como as mãos estão permanentemente congestionadas pelo manuseio dos cabos salgados, os olhos recebem os resíduos de sal nelas existentes.

Mas segue o barco porque isso, afinal, é nada. Como digo aos parceiros, isso é reclamação de quem não tem do que reclamar…A não ser dos conteiners que andam por aí, fala, agourento, o Tatu. Pego o mote, vou para o laptop e prometo vingança do -quente, com outra noitada de asneirol, a fim de ridicularizar outra possilibidade de acidente. Preparo o script e já começo o show naval da tarde-noite de domingo…

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