Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(13º capítulo)


Segunda-feira, 04 de dezembro (coordenadas das 22 h-GMTde domingo: 18.14 N e 048.15 W).
À 01h-GMT, estamos a 822 milhas do porto de destino. Depois que o balão desceu, quase noite, nosso rumo manteve-se em 303 graus, embora tivéssemos passado o dia todo em 315. Mesmo prolongando um pouco mais a travessia, nossa idéia é continuar subindo de latitude. Os ventos predominantes em nosso destino final têm sido, nos últimos dias, de sudeste. Subindo-se um pouco, quando estivermos próximos à latitude de Cuba, daremos o jaibe e então entraremos no Mar do Caribe com um bordo mais favorável - quem sabe quase de través, amurados a bombordo. Quem sabe. Seriam os derradeiros dias de travessia do Mar Oceano, mas o vento é que dirá. Coisas de velejador.

A singradura foi a mesma dos últimos dias: em torno de 170 milhas. É incrível como os fortes ventos têm descontado as quase calmarias que vez ou outra encontramos. Disso resulta essa instigante uniformidade. Às vezes, andamos de 10 a 12 nós; outras, a quatro ou cinco. A média, porém, tem sido os 7 nós que colocam a singradura nesse padrão. Ela é o ideal para o nosso barco. Cada barco tem seu próprio humor, sua própria personalidade; há que respeitá-los. Eles são assim, como gente.

Ontem, a Magra ligou para a América e tentou falar comigo via SSB. Escutei sua voz por breves instantes; ela não me escutou. Sei que notícias ruins ela jamais me passará. Sabe que não há remédio: não tenho como sair daqui nem para ir a enterro. E não precisamos combinar nada acerca dessas coisas: ela é uma velejadora.

De outro lado, para os de terra, é bom saberem que estamos bem. Eles têm por que se preocupar conosco, embora jamais lhes fôssemos falar em baleias ou em conteiners. De qualquer sorte, foi muito bom ouvir a voz suave e segura da Magra. Ela é uma grande mulher, uma grande parceira.

O Molecão foi o primeiro veleiro na vida da Magra. Antes, ela jamais entrara em um barco a vela. Foi amor à primeira vista. Como o nosso. Com poucos meses de prática, ela já estava navegando comigo pela Lagoa dos Patos. Achava lindo o feitiço dos vendavais de verão, lá tão freqüentes. Eles levantam trombas d’água da própria Lagoa e as arremessam sobre os barcos que se aventuram a singrá-la em épocas de temporais. Ela acha aquilo tudo muito lindo. Ela não tem medo de nada. É uma velejadora...

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Quando me levantei para cumprir meu turno, fui direto para o recanto contemplativo da alheta de boreste, encostei-me na bóia salva-vida e fiquei olhando para a lua. Cada noite que passa, ela cresce um pouquinho mais e vai retardando seu ocaso. Em breve, será lua crescente, coincidindo o seu desaparecimento, lá para o oeste, à meia-noite; e completará, também, sua metade então visível, ficando com meio disco para nossos olhos contemplarem. Milimetricamente, a lua vai retardando seu desaparecimento no horizonte a cada dia que passa. O dia dela é maior que o dia do sol. Sua noite é maior que a noite de ausência do astro-rei. Diversos destinos.

Para o ser humano, a diversidade de destinos está na adversidade. Por que alguns destinos são tão cruéis, tão sofridos, e outros não? Por que há pessoas marcadas para sofrer e outras para serem felizes? Por que, muitas vezes fruto de idênticas circunstâncias, para uns tudo é bom e para outros não?

Na maior parte das vezes, é a própria pessoa que atrai para si os espinhos e não a flor. Vezes sem conta, é a própria pessoa que, com sua atitude em face da vida, atrai o que há de bom e o seu avesso. A mesma chuva que é benfaseja para quem plantou, é nociva para quem quer colher. O mistério da vida é estar na chuva no momento de plantar e só colher no estio.

Para tanto, a primeira arma é a atitude. As histórias do otimista e do pessimista bastam por si sós. Não são anedotas; são a verdadeira comédia da vida. Não são histórias inventadas só para fazer graça; são a pura e dura realidade do dia-a-dia. O homem atrai o que há de bom. E o que há de mau também.

O primeiro caminho a trilhar para trazer a si o mal é queixar-se da vida. A vida não é indiferente ao queixume, ao lamúrio, à reclamação. Se as pessoas se limitassem a registrar o reclamo, ainda seria tolerável. Mas elas curtem o sofrimento no sentido de que passam a viver em função dele. Só pensam nele; dele se alimentam. São fiéis seguidoras dos perversos desígnios da adversidade. Entregam-se e fazem o jogo do mal. Assim, terminam por carregar o mal consigo mesmas.

Se observarmos detidamente os queixosos, os raivosos, veremos que eles realmente têm motivos para queixa, para raiva. Eles vivem mal consigo mesmos, embebidos do mal. Eles atraem o mal e o multiplicam. O limão, para eles, só serve para arder e fazer chorar. É sempre amargo.

O otimista, todavia, aquele que toma o limão para sorver seu amargor em forma de doce limonada, este é feliz. Por menos que tenha. Para este, o pouco é muita coisa; para o outro, nada satisfaz. Para este, a lua é bela todas as noites; para o outro, a lua é um fenômeno natural, invariável - é sempre a mesma coisa. Para aquele, a chuva é alegria porque, para alguém ao menos, é necessária; para o outro, a chuva é sempre fria e triste. Aquele aprecia o que é belo; este reclama do feio.

Eis o mistério da diversidade: a questão é, simplesmente, a postura frente aos fatos. Nada mais.

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O relógio do barco marca duas horas. O Mar está voltando a rugir. Parece que vem outra madrugada de muito vento. Será como a de ontem? O Mar crescerá e o conforto presente acabará. A navegada voltará a ser muito dura. As monstruosas ondas de ontem vão erguer outra vez paredões ameaçadores aqui por trás de nós. Se estivéssemos em contravento, seria, então, muito pior. Vou até lá fora, diminuir os panos. E a lua estará no céu, olhando para mim. Contemplo-a e a vejo cada vez mais bela...

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Faz dias que ultrapassamos o meridiano de um novo fuso horário. Por isso, nossa alvorada aqui está incrivelmente tardia. Mas não a da hora oficial, a GMT. Essa é sempre a mesma.

São quatro horas. Decididamente, não sou feito como esses computadores humanos de bordo que andam por aí. Acordei-me há poucos momentos, liguei a luz do meu camarote, olhei meu relógio e fiquei feliz: estava acordando bem na hora do meu quarto. Desta vez, o Tatu não precisou me chamar. Estava redondamente enganado. Faltavam ainda duas horas para o meu turno porque apenas duas horas antes eu acordara o Graeff e fora deitar. É a tal história de trabalhar com dois horários: o administrativo, do barco, para a nossa rotina diuturna, que acompanha o dia solar; e o GMT, para as anotações de navegação, sempre o mesmo no mundo todo.

Olhando o relógio, ainda sonolento, descontei uma hora para adaptá-lo ao horário do barco. Errei: deveria, isso sim, ter calculado ao contrário. Menos mal que o erro redundou em apenas duas horas. O pior seria se acontecesse amanhã porque, hoje à tarde, os relógios do barco serão atrasados em mais uma hora. Coisas de quem navega. E se engana.

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Quando entro de hora outra vez, encontro o Tatu prevendo o que vem pela frente. Ele acompanha, na telinha do mesmo laptop em que escrevo, a última carta-boletim do weather-fax. Por ela, vê-se uma frente entrando no Caribe, na direção sudoeste, com ventos fortes. Vai deixando para trás de si ventos mais fortes ainda, que passam a soprar de norte. Mais para oeste, já em águas do Oceano Pacífico, na costa ocidental da América Central, aparecem ventos fortes de 35 nós, com ondas de até quatro metros de altura. São os temidos gales. Que fiquem por lá.

Em nossa rota, os ventos são os mesmos de antes, devendo alterar-se com o avanço da frente. Ela já alcançou a extremidade sudeste de Cuba. Até chegarmos lá, porém, tudo outra vez pode estar mudado. A natureza é assim: mutante.

Vou para o recanto contemplativo e sento de frente para o sul, olhando pelo través. Busco Sirius ali no boreste, traço uma linha imaginária passando por Canopus, prossigo até o horizonte e lá está ele: lindo e altaneiro, pela primeira vez o vejo desde que saí do hemisfério sul, quase dois meses atrás. O Cruzeiro do Sul é o íntimo parceiro que me orienta em tantas e tantas velejadas. Lá está ele cravado, no plano lençol do horizonte. Ergue seu pênis de sombra e mistério e, apontando para o sul, despeja seu sêmen luminoso no útero-Mar. Sombra e mistério. A sombra que já se vai com o nascer do novo dia; o mistério que fica nas coisas que ninguém explica. Quem terá feito tudo isso?

Contemplativo e absorto, lembro os egípcios e me pergunto como puderam eles, milhares de anos atrás, conhecer este mesmo firmamento que, em plena era da eletrônica, não conheço tão bem? Como puderam, 5.000 anos passados, erguer a grande pirâmide, com sua base orientada exatamente nas direções norte-sul e leste-oeste? Como puderam erguer aqueles gigantescos paredões de pedra, inclinados 50 graus em relação ao solo? Como puderam, ao cabo de 91 degraus em cada face, fazê-las abraçarem-se lá no alto, formando mais um degrau comum a todas, com isso completando o mesmo número de dias que a terra leva para dar a volta ao redor do sol? E como puderam, desde a tumba do faraó onde um dia me deitei para ver se era mesmo real, perscrutar o céu através de um estreito túnel inclinado que, do ventre da grande pirâmide, brota até sua parte exterior? O faraó, sepultado no centro daquela imensa montanha de pedra, poderia, eternamente, olhar o céu...

Quantos séculos foram necessários antes disso para os egípcios chegarem a esta intrigante precisão astronômica? Quem terá feito tudo isso?

E o que dizer do mistério da esfinge, do decifra-me ou te devoro? Impossibilitado de decifrá-la, fui por ela devorado porque nunca mais a esqueci. Ainda estou prostrado a seus pés, procurando saber quem a fez, quando, para que. E jamais saberei.

O mundo é belo, instigante. Ele está aí para ser contemplado. Ele deve ser compreendido pela aceitação de que está acima de nós compreendê-lo. Devemos vê-lo como um bem. Mesmo que a vida nos traga terríveis e naturais vendavais, que estão além de nossas forças evitar; mesmo que nos sejam jogadas as mais dolorosas injustiças engendradas pelos aleijumes morais que andam por aí, pensemos que a própria chuva, conquanto fria, há de servir para alguém. Ainda que ela seja como a mensagem do náufrago: ninguém sabe quem fez.

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São 09h 35min-GMT. O disco de fogo, lá no leste, pela alheta de bombordo, acaba de retirar d’água o último pedaço de sua incandescente circunferência. Já não consigo fitá-lo. Agora ele está inteiro, trazendo um novo dia.

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Agora, são 13h-GMT. Vamos, vagarosamente, no rumo 308, faltando 739 milhas para a indesejada despedida. Quisera reunir todos os meus amores e, com eles, viver no Mar...

Há pouco, levantamos o balão. O dia está maravilhoso, brilhante. O Mar, manso e acolhedor. Há dias, nem sei quantos, navegamos sozinhos neste mundo sem fim. Nossos únicos companheiros são o vento, o céu e o Mar. Nada e ninguém mais. O vento, da mesma direção, compartilha conosco este dia preguiçoso, lânguido.

Neste momento, estamos ouvindo músicas da incomparável Enya. Quero um dia conhecê-la. Vale a pena conhecer pessoas com alma assim. Escuto a faixa On your shore. Transcrevo as duas primeiras estrofes, que dizem

Strange how
My heart beats to find myself upon your shore
Strange how
I still feel
My loss of confort gone before

Cool waves wash now
And drift away with dreams of youth
So time is stolen
I cannot hold you long enough.

Fico perplexo. Parece que o mundo todo conspira no sentido de orientar meu pensamento: penso e sinto profundamente o meu entorno. Atento para ler as mensagens que o mundo me oferece. Creio que não haveria letra melhor que a desta faixa para refletir o que sinto agora. É estranho como meu coração bate porque estou em tua praia; é estranho como ainda sinto a perda do bem que já se foi. Frias ondas lavam agora e levam meus sonhos de juventude. O tempo foi roubado e eu já não posso segurar você comigo.

Oh maravilhosa e terna coincidência! Como poderia alguém cantar esse lamento? Nascemos todos com a doença terminal da morte. A vida é só um sopro, já vai acabar. Por que então não nos abrimos para o que é belo, é puro, inteiro?

Espero que meu porto do abrigo final não sepulte meus sonhos de juventude. Ao contrário da canção ouvida, quero, até o fim, no porto do abrigo final, pensar e sentir como sinto, e ser capaz de retratar o sentimento do jeito que sei, e no anonimato, talvez, serei como a mensagem do náufrago, que ninguém sabe quem fez.

O anonimato, eis o que nossa cultura, ou incultura, abomina, não suporta. Se não fomos convidados para a primeira fila, o espetáculo não presta. Se não somos os homenageados, as outras pessoas não souberam valorizar o mérito. Se não obtivemos o destaque, os outros escolheram mal. Mas, como na mensagem do náufrago, o anonimato restabelece o tempo perdido no supérfluo, no fútil, no banal. Quero viver para dentro de mim e olhar para o espetáculo da vida. Que está aí mesmo, esperando por nós.

…………………………………

Quase todo dia não saí da telinha. Preciso confirmar datas que lancei, horários, rumos, coordenadas, velocidades, singraduras, enfim. Tenho que conferir os apontamentos, às vezes, mais de uma vez. Para que tudo seja real, especialmente as coordenadas náuticas. Há pessoas que acompanham a leitura desses diários, tendo às mãos régua, compasso e GPS. Querem simular uma travessia virtual a partir da verdadeira. É um ótimo passatempo e ensina a fazer navegação nas cartas náuticas.

Bem por isso, hoje não fui ao recanto contemplativo. Espero fazê-lo no próximo quarto, o das seis da manhã. É o turno em que o dia nasce.

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Agora, quando é mais de meia-noite e já estou de quarto - os relógios do barco foram atrasados em mais uma hora -, vamo-nos arrastando no rumo 287, a 662 milhas da chegada. Quando o Tatu me passou o turno, pediu que eu tentasse velejar ainda dentro do mesmo percurso, economizando combustível. E assim é. Temos variado entre calmarias e ventos fortes. Nessa época do ano, a coisa é assim mesmo.

Terça-feira, 05 de dezembro (coordenadas das 22 h GMT de segunda-feira: 18.21 N e 050.56 W)
Passava das sete da manhã, ocorreu um barulhão tremendo lá fora. Uma ventania entrou súbito de bombordo, surpeendendo-me. Mesmo estando dentro, a todo instante vou até à frente da pia olhar, pela gaiúta da coberta, o tope do mastro, para conferir a direção do vento e a normalidade da posição do velame. O corpo está aqui, mas a atenção, sempre lá fora. O estrondo foi algo inesperado porque o barco singrava suavemente. Íamos amurados a boreste. Era o sempre temido jaibe involuntário que traz risco para o estaiamento do barco, eis que pode explodir algum dos estais. E o catamarã só possui três: o de proa e os dois brandais, que são os sustentáculos laterais do mastro.

Corro para fora, desligo o piloto, agarro o leme e tento orçar o mais que posso, a fim de folgar o grande. Com o jaibe, ficamos com amuras a bombordo. O barco, corcoveando muito e de frente para a onda, move-se a baixa velocidade. Não tem potência suficiente para cambar e colocar-se com a vela outra vez no bombordo, como vinha. Ele simplesmente não orça. Os catamarãs não orçam.

Penso que, quando voltar, falarei com o Nelson Piccolo, para saber desse negócio de catamarãs. Quem sabe de catamarãs é o Nelson. Que o diga seu Simbad. Imagino que o Piccolo seja outra dessas máquinas de velejar. Afinal, como o Bóris, ele também foi campeão mundial de Snipe. Infelizmente, nunca velejei com ele.

Decido trocar de procedimento e vou em roda, seguindo para a posição de jaibe, a fim de sair pelo outro bordo. Já vou caçando o grande como posso. Com essa batedeira toda, o Graeff e o Tatu acordaram, mas só o Graeff corre para o convés. O outro fica nos olhando, com cara de sono, pondo apenas a cabeça para fora da gaiúta do seu camarote. Sua gaiúta é bem próxima ao timão de bombordo, onde estou manobrando. É ali que ficam os repetidores externos de navegação: bússola, piloto automático, chaves de partida dos motores, index e profundímetro.

Dou a volta em roda, opero novo jaibe e já saio pelo outro bordo, velejando em três quartos de popa outra vez. À nossa frente e por boreste, vários charutos de tormenta nos espreitam. Essas enormes e negras formações costumam conter tempestades elétricas, ventos fortíssimos e muita chuva. Com elas, o Mar fica gigantesco. O Tatu vem para o convés, dá uma olhada geral e…vai deitar de novo. Fico pensando: mas só porque o turno é meu, esse sujeito não vai dizer nada? Ele é mudo? Vai dormir de novo, como se o temporal fosse daqueles comuns aos verões de Tapes, que passam logo.

E lá se foi o Tatu para a toca, deixando-me manobrar o barco para entrar no que parecia ser muita chuva, muito vento e muito raio.

…………………………………

Agora são nove horas e eu já estou aqui de novo. Dormi cerca de duas horas. O resto, debito à eternidade. Lá, espero, também poderei velejar.

Vamos aqui, com 8 nós de velocidade e no rumo 302. Estamos a 589 milhas de St. Martin. Há coisa de uma hora atrás, o Graeff ficou meio assustado: estávamos voando baixo, a 15 nós, o recorde da travessia até agora. E eu lá embaixo, dormindo, sem saber de nada.

É impressionante como nossa singradura melhora após calmarias. O vento vem forte, parecendo querer-nos compensar de sua ausência. Estamos cercados de charutões de temporal. Cai uma chuva fortíssima, o que é muito bom porque esvazia as nuvens feias que aí estão - existem nuvens feias? Além disso, livra o convés, cabos e velame do sal já tão profundamente impregnado em tudo que se toca. O sal se entranha em tudo, inclusive em nós.

Nosso ambiente, como sempre, não pode ser melhor. Essa turma é mesmo sensacional. Em mais três ou quatro dias, estaremos findando esta convivência fraterna que tornou possível enfrentar as dificuldades da dura velejada. Já estou sentindo falta desses alemãezinhos, muito antes de nos separarmos. Para eles improviso, já saudoso, perguntando o que deles devo dizer,

se não que são mucho loucos
com eles estoy quase rouco
de tanto dizer bobagem
e que esta camaradagem
deixe bem mais do que pouco.

Comendo franco ou peixinho
tenho que falar bem baixinho
pro Graeff não me escutar
ele é um grande cozinheiro
e também bom companheiro
mas a carne fica crua
mais feia que gorda nua
mas outra chance vou dar.

Vou dar-lhe uma nova chance
espero que não desmanche
o conceito já firmado
de um cabra acostumado
a enfrentar desafio
e é bem curto o seu pavio
por isso vive enrolado.

E tu, oh Tatu, sai da toca
larga logo essa minhoca
porque não vai adiantar
o Haaviti tá maneiro
ele não é caborteiro
na mão não vai nos deixar.

E assim vamos indo, cheios de amor febril, com muita brincadeira, muito respeito um pelo outro, num ambiente tão bom que melhor seria que não acabasse jamais. Mas a vida é assim mesmo/ com chegadas e partidas/ com vindas e despedidas/ que nos partem o coração/. Essa turma é do barulho/ por ela eu também mergulho/ e até cozinho feijão.

Pronto, bateu fortíssima a veia metida a poética. A todo momento me vêm rimas na cabeça e aquela vontade louca de escrever versos. Ainda que anárquicos, de pouca métrica e nenhuma regra. Aliás, faz dois meses que não obedeço a regras terráqueas dos urbanóides. Apenas aquelas a que me obrigam o Mar e o vento. E como os dois são volúveis, mudam a toda hora de opinião e de humor…

Já perdi a conta dos versos que escrevi e joguei no Mar, com emoção. Sentado ali no recanto contemplativo, só ele e eu sabemos o que continham. São testemunhas de nossa cumplicidade. Quem sabe, um outro dia, já no tempo da delicadeza, oculto e anônimo no porto do abrigo final, me venham à mente outra vez.

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