Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(17º e último capítulo)

O PORTO DO ABRIGO FINAL

Gustavia, St. Barthelemy, Mar do Caribe, 09 de dezembro de 2.000.
Eram quatro horas de uma madrugada escura e chuvosa quando chegamos aqui. Pelo nome do pequeno porto, lembrei-me do Gustavo, querido sobrinho. Nossa posição, desde a ancoragem, é 17.53.969 N e 062.51.373 W. O sol surgiria às 08h 30min-GMT, mas já não o poderíamos ver. A montanha se interpõe entre ele e nós. Estamos ancorados, presos outra vez em terra pelo ferro que se enfiou chão adentro lá nas entranhas desta baía onde cedo aportamos. Já não temos mais o alto-Mar.

Fundeamos a apenas 10 milhas de St. Martin. Até aqui, navegamos sem parar, dia e noite, 2.884 milhas náuticas (5.341 quilômetros), desde Las Palmas de Gran Canaria, de onde partimos no dia 21 do mês passado. De Oceano Atlântico, desde que cruzamos o Estreito de Gibraltar, foram 3.586 milhas (6.641 km). Se adicionadas às 459 milhas do Mediterrâneo (850 km), terão sido 4.085 milhas (7.565 km) .

Para variar, entramos aqui na escuridão da noite. Depois, pela manhã, saímos para dar uma caminhada por St. Barthelemy. Em virtude de haver passado tanto tempo balançando, pensei que sairia cambaleando quando pisasse em terra. Seria a readaptação do labirinto ao piso firme. Nada senti. Vezes há em que o fenômeno demora algumas horas para ocorrer; outras, nem ocorre.

Caminhamos ao longo das estreitas ruas apinhadas de turistas. Não gostei. Assisti ao movimento de gente, de carros, de motos, de lojas; tudo o que não via há tanto tempo. Estranhei. No Mar, não existe isso; não existem esses cheiros. No Mar, não há ruídos. Só os barulhos do Mar e do vento; e nem são barulhos. São arrulhos, estranhos sons noturnos que às vezes pareciam vir diretamente debaixo do barco. Murmúrios, gemidos, às vezes, e outras, longínquos sons de cordas. Vezes outras, pareciam uivos; ou sussurros. Não sei o que poderiam ser, mas sei que eram os seres do misterioso Mar. Lamentos estranhos, uivos estranhos. Não sei o que eram, mas eram. E ali estavam.

É curiosa e tocante a constatação de que já não estamos mais velejando rumo ao oeste. Nossa marcha terminou. Sinto um certo amargor em ver concluída a travessia, mas ao mesmo tempo um doce sabor de vitória por tê-la cumprido. Concluí-la e cumpri-la, dois sentimentos, duas constatações. Conclui-se a travessia com dor e nostalgia; cumpre-se o percurso com vitoriosa alegria. São, de qualquer sorte, duas sensações, dois conceitos temporais. Duas diferentes formas de se ver o mesmo fato: a experiência de viajar por dentro.

O tempo foi nosso grande aliado; não tivemos pressa e nem perdemos tempo. Não tivemos contratempo. Não adiamos decisões, nem precipitamos acontecimentos. O tempo foi nosso grande aliado; tudo foi feito com sua colaboração. Haverá uma outra vez? O próprio tempo é quem dirá. Não vivo o futuro, vivo agora.

Vou sem pressa, sem temor, sem apreensões. Não há o que temer, nem mesmo a inexorabilidade do tempo. Ela é imutável e, por isso, vivo-a assim. Vivo a aceitação que só a perfeita compreensão dá. É algo que eu não posso mudar. Como alguém já disse, se é verdade que preciso de forças para mudar as coisas que devem ser mudadas, preciso igualmente de serenidade para aceitar as que são e estão. E sobretudo, sabedoria para perceber a diferença. Há coisas que eu não posso mudar e o tempo da razão me trouxe serenidade para sabê-lo. Estou sereno, estou feliz. Cruzando o Mar Oceano, acabei de fazer o que eu sempre quis.

Por isso, reescrevo, aqui ancorado, o que o Mar me segredou, enquanto nele navegava:

Quando o amanhã vier
E eu já então não puder
Fazer o que agora faço
Espero que a têmpera de aço
Do meu coração marinheiro
Me indique o rumo certeiro
Do porto do abrigo final
Onde nenhum vendaval
Jamais terá sua vez
E no anonimato talvez
Serei como a mensagem do náufrago
Que ninguém sabe quem fez...

Em seguida, sairemos com o Haaviti para o curto trajeto até o porto do abrigo final. Ao aportar, anotarei 18.02.036 N e 063.05.353 W. Será o último fundeio. E nada mais restará para ser dito.

Glossário

Índice

 O Popa.com.br agradece ao Comandante Aderbal Torres de Amorim pela gentileza da publicação de sua bela obra.