Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique

 


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(3º capítulo)

A COSTA AFRICANA: DE GIBRALTAR AO ARQUIPÉLAGO DAS CANÁRIAS

Sábado, 28 de outubro.

Rumo às Canárias, zarpamos às 10h da manhã, deixando para trás o Velho Mundo. Já não era sem tempo. Como são aborrecidos os últimos momentos da espera em terra. Quer-se entrar logo no templo do Mar salgado.

Aqui estou, já preparando um suculento arroz com galinha, que os três comeremos até raspar a panela. Só para exagerar, foram consumidos cinco tomates, dois pimentões, doze coxas de galinha e todos os temperos que encontrei a bordo. Um manjar dos deuses. Mas estou achando que essa alemoada não gostou muito: não tinha batata…

Às 16 horas já não há terra por boreste. Já não se vislumbra mais a Europa. O continente africano, no qual avistamos a cidade de Tanger, vai-nos acompanhar por bombordo até perder-se de vista, já no Mar alto. Durante a noite, um belo velejaço, com vento bem favorável. Finalmente, estamos num veleiro!

Domingo, 29 de Outubro.

Amanhece, não vemos terra alguma. Até a noite estaremos no través aproximado de Casablanca, na costa marroquina. Para garantir o afastamento da costa, sempre desejado, marco na carta um novo way-point em 33.15 N e 010.11 W que é atingido à 01h de segunda-feira, dia 30. Estou nessa ocasião de quarto, o rumo é 230 graus, a velocidade real é de 7,5 nós (não temos log de hélice; marcamos tudo por GPS). O vento é norte, 20 nós. O Mar está mexido. A maior rajada até agora é de 28 nós o que, para vento de popa, é ainda suportável. A pressão atmosférica é de 1033 milibares. O tempo pemanecerá estável. Não há previsão de temporais.

Com menos de dois dias de navegada, estamos, agora, a 321 milhas de Lanzarote, Arquipélago das Canárias.

Quarta-Feira, 1º de Novembro.

Até aqui, tudo corre praticamente igual: comer, dormir, acordar, entrar de quarto, ler, quando se agüenta, dormir outra vez, verificar o vento, que sopra sempre da mesmíssima direção. As velas raramente são trimadas. O ambiente a bordo é ótimo. Nenhum de nós faz contas de quanto dormiu, de quanto trabalhou, do que o outro fez ou deixou de fazer. Somos um time coeso, unido. Numa palavra, somos três marinheiros com um só objetivo: a grande travessia que se iniciará propriamente nas Ilhas Canárias. Cumpriremos, assim, a missão de entregar o barco no Caribe até o dia 20 de dezembro. Sem estresse de qualquer ordem, não temos pressa em nos livrarmos um do outro. Nem do barco.

Cai a noite e nos aproximamos de Lanzarote, a mítica ilha mais setentrional do Arquipélago das Canárias. Ou seja: deixamos, dias atrás, as ilhas espanholas do Mediterrâneo e agora estamos quase aportando nas ilhas atlânticas da Espanha.

O Arquipélago das Ilhas Canárias situa-se a oeste do Marrocos, recebendo do continente africano o bafejo árido do deserto saárico. A terra é seca, não só pela influência do clima, mas sobretudo pela enorme atividade vulcânica que dissipou, como em Lanzarote, por exemplo, toda a vegetação ali existente. Assim, a policromia das cores estende-se desde a alvura da areia de praias paradisíacas até o fortíssimo negro dos restos vulcânicos que, aqui e ali, nem são tão restos assim: naquelas paragens, ainda há vulcões em atividade.

Até seu descobrimento pelos europeus, as ilhas eram habitadas pelos guanches, povo pacífico, politicamente organizado, com atividade agrícola bem desenvolvida. Por praticarem a mumificação de seus mortos, há teorias que os ligam aos egípcios. Outras teorias situam sua origem nos vikings, passando pelos gregos, romanos, fenícios e cartagineses. Mais recentemente, passou-se a considerá-los oriundos da África. Teriam chegado às ilhas ao redor do século I AC*.

As Canárias eram visitadas pelos fenícios e Plínio, o Velho, ao redor de 60 AD, noticia uma expedição mandada às então denominadas Ilhas da Fortuna. Durante séculos, a Ilha de Hierro, a mais ocidental do Arquipélago, foi considerada o fim do mundo, ou seja, o extremo oeste do mundo conhecido. Isto ocorreu depois, portanto, da época em que este limite era Gibraltar. Assim, quanto mais vamos para o oeste, mais parece que estamos navegando para o fim do mundo...

Após o descobrimento, os guanches foram escravizados e, depois, quase exterminados pelo colonizador civilizado. Mais ou menos o que fez Cortez no México e outros tantos descobridores ao redor do mundo. Aliás, não consigo atinar com essa mania dos historiadores chamarem “descobrimento” a chegada do homem europeu a terras que, embora por este desconhecidas, já eram habitadas.
O Arquipélago é uma região autônoma, pertencente à Espanha, tendo seu próprio parlamento. Divide-se em duas províncias, a de Gran Canaria e a de Tenerife. A primeira compreende as ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e Gran Canaria; a outra, as ilhas de Tenerife, La Gomera, La Palma e El Hierro. Todos por lá denominam a pátria mãe continental simplesmente como “a Península”. Muito embora a língua oficial seja o espanhol, fala-se também o inglês e, não raro, o alemão, principalmente, e o francês.

Possuindo no total cerca de 1.500 quilômetros de costa de clima eternamente primaveril, o Arquipélago passou a ser visitado por expedições científicas, a partir dos séculos XVIII e XIX. Buscavam conhecer sua flora, exótica e abundante, e, ao mesmo tempo, desvendar sua peculiar paisagem vulcânica. Com o passar do tempo, tornou-se destino permanente dos europeus em busca da saudável amenidade de seu clima. Lá, não ocorre muito calor nem frio intenso. Jamais.

Quinta-Feira, 02 De Novembro

Ainda transcorreria toda a noite e parte do dia para chegarmos à Ilha Lanzarote. Decidimos, então, arribar e tentar Isla Graciosa, onde um bem abrigado ancoradouro - La Sociedad - poderia ser boa pedida. Ali chegando, ultrapassamos a completa escuridão do aparente desfiladeiro, o Estrecho del Rio, situado entre Graciosa e Lanzarote, e fundeamos. O ferro garrou. Manobramos mais para o fundo da Marina. Saímos. Mais uma tentativa. Desistimos. E já estávamos ensopados até os ossos.

Rumamos para o sul e conseguimos muito bom ancoradouro na Bahia de Salado, não sem antes, com o máximo cuidado, contornar o perigo submerso ali existente: rochas logo abaixo da superfície d’água que se estendem para o leste da baía. Com a ajuda do radar, que eu ditava para o Tatu de dentro do barco, fundeamos bem próximos da praia na posição 29.13.45 N e 013.30.77 W.

São 5 horas da madrugada de quinta-feira, 02 de novembro. Ainda não dormi esta noite. Isso em nada me preocupa porque haverá sempre tempo de fazê-lo depois. Agora, o que eu quero mesmo é tomar uma chuveirada quente e trocar esta roupa molhada...

Decididamente, estamo-nos especializando em entradas noturnas em portos e baías. Ao que parece, só para contrariar. Na verdade, tudo isso é pura coincidência que nos tem feito chegar aos ancoradouros durante a noite. Ainda assim, não aconselho tal situação para ninguém; é algo que deve ser evitado.

A Isla Graciosa tem cerca de 6,5 quilômetros de comprimento e três quilômetros de largura. De formação vulcânica, apresenta quatro cones, o mais alto dos quais com 265 metros de altura. Lá se abrigam dois pequeníssimos vilarejos de pescadores: La Sociedad (onde tentamos o primeiro fundeio) e Pedro Barba. Ainda bem primitiva, não possui estradas. É, no dizer dos habitantes da vizinha Lanzarote, uma ilha de sueños.

Pela manhã, saímos para Lanzarote onde, para variar, e uma vez mais confirmar a presença do Pé-quente** , conseguimos não o único lugar no Puerto de Naos, mas uma vaga inexistente porque nenhuma havia! A Marina estava lotada. Jamais vira algo assim: saltei do barco no trapiche, dirigi-me ao Señor Juan, um velhinho simpático responsável pela Marina, perguntei por vaga para o barco e ele foi logo me dizendo que ia dar um jeito. Convocou dois ou três tripulantes de outros barcos e saiu desfazendo amarras, empurrando barcos para um lado e outro até abrir uma vaguinha, até então invisível, que nos permitiu, a muito custo, ficar espremidos entre dois pequenos barcos.

Quando nos amarramos, foi uma festa: logo ficáramos sabendo que os inúmeros barcos ancorados ao largo, em verdade, aguardavam vaga para aportar…no trapiche!

Nossas coordenadas eram 28.28 N e 013.32 W. Que milagre foi esse, não me perguntem: é claro que o Pé-quente está a bordo, escondido em algum porão por aí. Quando menos se espera, ele vem nos ajudar.

Permaneceríamos em Lanzarote até a semana seguinte, tempo durante o qual conheceríamos a inesquecível Isla de los Cien Vulcanes, com algumas das paisagens mais intrigantes de que me lembro. Não é por nada que, em uma de suas praças, encontramos, de autor desconhecido, a inscrição insculpida na pedra: “pensaba agotada mi capacidad de asombro hasta que visite Lanzarote”. Pois eu igualmente pensava esgotada a minha.

Guardadas as proporções, seria, pelo inusitado, algo comparável à Capadócia, na Turquia, com suas incríveis cidades subterrâneas. Pelo exótico, lembrei Petra, na Jordânia. Quem sabe, pela tremenda força da natureza, os canions do Hawai e seu vulcão Kilauea, em atividade há milênios. Também pode ser que, pela sua imponência, recordasse os fiordes próximos a Bergen, na Noruega, ou ainda, pelo vivo que se mostra, a incrível cidade de Rotorua, na Nova Zelândia, com seus gases que escapam do ventre da terra e se projetam para o alto em enormes esguichos. Além disso, pela beleza selvagem, as ilhas da Polinésia Francesa, especialmente Bora-Bora, o verdadeiro paraíso terreno. Ou o Valle de la Tranquilidad, de Timanfaya, lembraria o profundo silêncio da Geleira San Rafael, na Patagônia chilena, ou o do deserto do Saara? Ou, pelo mistério em que parece envolvido, lembraria as pirâmides do Egito ou a Esfinge? Ou lembraria, pela magnitude, a Muralha da China?

Podem parecer, todas estas, comparações exageradas, desproporcionais, fruto da imaginação. De qualquer forma, elas espelham a grandiosidade de tudo que ali se vê. E para quem está no Mar, a imaginação não tem limites. A semana seria de grandes surpresas: mostraria que nossa capacidade de assombro é mesmo inesgotável.

Sexta-Feira, 03 De Novembro.

Recebo telefonema da Magra. Ela chegará às 19h, procedente de Madri, via Gran Canária. Já não há mais vôos Madri-Lanzarote. O remédio era ir para Palma de Gran Canaria, a capital, e ver o que aconteceria por lá. Aconteceu: ela acabou chegando em Puerto Naos no mesmo dia em que desembarcou em Madri. Agora somos quatro no barco. Chegou, portanto, mais um cozinheiro, ou melhor, aquela insuperável cozinheira e inigualável cara-metade.

A recepção à Magra não poderia ter sido melhor. O Graef preparara um soberbo jantar em homenagem ao aniversário dela, ocorrido quando estávamos aportados em Dênia. Brindamos à data com algumas garrafas de champagne; é a melhor maneira de se comemorar qualquer acontecimento festivo. No dia seguinte, iniciaríamos a série de passeios que faríamos pela paradisíaca Lanzarote.

Lanzarote é uma ilha realmente encantadora; faz jus à fama que tem. Medindo cerca de 50 quilômetros de comprimento por aproximadamente 16 quilômetros de largura, ela possui mais ou menos a área da Ilha de Santa Catarina. Sua população permanente é de cerca de 60.000 habitantes que se espalham por muitas vilas erguidas por entre vulcões adormecidos e vales calcinados. A população flutuante deve ser muitíssimo maior, pelo que se vê do movimento de trânsito nas ótimas estradas que a cortam por todos os lados.

Aqui o ponto: o melhor modo de percorrer-se a ilha é alugar um carro e sair pelo meio dos profundos vales e enormes montanhas vulcânicas que dominam o ambiente. Foi o que fizemos. E pudemos constatar que Lanzarote é a mais bela das Islas Canarias, com uma intrigante paisagem lunar de terra revolvida pelas imensas erupções vulcânicas que sofreu e que, de certa forma, ainda sofre.

A preocupação em preservar Lanzarote é um dos mais fortes aspectos dessa ilha espanhola que o português José Saramago escolheu para viver e sobre a qual ele tem escrito. Graças ao renomado arquiteto Cesar Manrique, falecido em 1992, a ilha é um primor. Em suas ótimas e bem sinalizadas estradas, não existe um só out-door. Isso as deixa meio estranhas ao viajante, acostumado à horrenda poluição visual das estradas no mundo inteiro. Ocorreu-me pensar que na China, por exemplo, também não existe propaganda de espécie alguma nas estradas; na Síria, por sua vez, elas existem, e bastantes, mas são arremedos de out-doors com fotos dos membros da família “imperial”. Exclusivamente…

Em Lanzarote, a belíssima arquitetura impõe a todos os prédios a cor branca. Isso sobremodo os harmoniza com o entorno cinza e negro do ambiente. Edificações de mais de três pisos são proibidas. Estranhamente, embora a obra esteja embargada há vários anos, em Arrecife, capital da ilha, há um edifício à beira-mar com cerca de dez andares. Deve ter sido fruto de algum “jeitinho” casuístico, depois revogado… Imagino que o prédio será implodido. Ninguém soube informar como nem quando.

Os inesquecíveis passeios na ilha foram o Parque Nacional Timan Faya, a Cueva de los Verdes e o Jameo del Agua. A natureza é impressionante. Dominada, até 1730, por densas matas e povoada de campos verdes, de terras férteis, a ilha experimentou a fúria apocalíptica da natureza pela via infernal da erupção vulcânica, que dizimou prédios e lavouras. Tudo foi soterrado, tudo derreteu nos caudalosos rios de lava que correram sobre a terra e debaixo dela. Marcas desses caudais vulcânicos são vistas aqui e ali no território insular. São uma pálida amostra do que deve ter sido o devastador episódio.

O Parque Timan Faya (ou Timanfaya) situa-se na região oeste-sudoeste da ilha, nas denominadas Montanas de Fuego, que ocupam uma área de cerca de duzentos quilômetros quadrados de materiais eruptivos. Os cones ali existentes, cerca de trinta, são testemunhos de um dos mais conhecidos registros do vulcanismo mundial, seja pela quantidade de material lançado às alturas, seja pela grande duração com que o fenômeno operou. Em verdade, segundo a Curia de Yaiza, a hecatombe iniciou-se em setembro de 1730 e terminou somente no dia 16 de abril de 1736. Foram, portanto, seis anos de ininterrupta erupção.

Do alto da Montana Rajada, a 350 metros de altura, tem-se uma das visões mais aterradoras que se possa imaginar; algo que realmente ultrapassa qualquer capacidade de assombro. É o resultado do ocorrido entre 9 e 10 horas da noite no dia 1º de setembro de 1730. Contam que a terra se abriu e de seu ventre brotou, instantaneamente, uma enorme e incandescente montanha de cujo ápice, qual boca horrenda, fogo e lava eram vomitados. Em seguida, a terra tomou a forma de um grande caldeirão e enormes bolhas explodiram com o calor, expelindo lava fervente para o ar. A lava escorreu para os campos mais baixos, até encontrar o Mar. Aí, derramando-se para dentro deste, aumentou o território da ilha, a ela acrescendo novas terras.

Anos antes, eu havia presenciado, ao vivo, o mesmo fenômeno em uma das ilhas do Hawai: o vulcão Kelauea lá estava, como ainda hoje, vertendo fogo e lava, com isso acrescendo dejetos vulcânicos ao território da Big Island e, portanto, também aumentando sua superficie.

Em Lanzarote, o inferno continuou ininterruptamente por mais dezenove dias e, após, com freqüência cada vez menor, ainda assim devastadora, por mais seis inesquecíveis anos. Todos os campos restaram calcinados. Com eles, sucumbiram os animais e toda a vegetação, cultivada ou natural. Os arredores transformaram-se em dezenas de grandes elevações cercadas de vales. Alguns poucos, hoje, apresentam-se verdejantes, fruto do trabalho insano daquela gente corajosa que ainda se dá ao luxo de produzir… vinhos!

Ali, até os dias de hoje, a atividade vulcânica se faz presente. Em fendas no chão, os locais jogam galhos secos da vegetação rasteira que, teimosamente, ainda viceja e estes, em contato com o caldeirão da terra, imediatamente se incendeiam. Assiste-se a pessoas fazendo churrasco em bocas de terra das quais o calor vulcânico se desprende. Na ocasião, por sinal, assavam coxinhas de galinha… Em orifícios feitos no chão, baldes d’água são jogados e em poucos segundos a terra devolve o líquido em forma de esguichos ferventes que se elevam a vários metros de altura. Lembram Rotorua, na Nova Zelândia. O vulcão está vivo.

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Isso tudo me recorda que o último e devastador terremoto ocorrido na Turquia não nos alcançou, à Magra e a mim, por muito pouco: saíramos de Smyrna - epicentro daquele terrível desastre - apenas vinte e oito horas antes dele ocorrer. E nossos parentes e amigos entraram em pânico. Por ignorarmos o terremoto, não havia porque darmos notícias. Morreram dezenas de milhares de pessoas naquela tragédia. E assim, pelo menos, ficamos sabendo que existe um monte de gente que gosta de nós…

Realmente, estamo-nos especializando nesses quase-quase: certa vez, em Luxor, no Egito, terroristas protagonizaram um banho de sangue no templo de Hatsepsuy, trucidando um grupo de turistas. Havíamos visitado o templo dias antes. Em Haifa, Israel, anos depois, foi a mesma coisa: passamos por lá num dia e, no seguinte, houve um sangrento atentado terrorista. E nós aqui e agora, outra vez, dando chance para o azar…

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Um dos aspectos mais curiosos do Parque Timanfaya é a existência de juncos, plantas características de climas úmidos. Igualmente, surpreende o fato de que, no Islote de Hilario, a energia geotérmica ainda se faz presente. A cerca de dez metros de profundidade, a temperatura alcança nada menos do que 600 graus centígrados.

Um outro lugar merecedor de ser conhecido é a Cueva de los Verdes. Fica do lado oposto da ilha; na região norte-nordeste, portanto. Na parte já explorada, alonga-se por seis quilômetros e é ali considerada a mais extensa gruta do mundo. Em virtude de que possui a parte final conhecida já sob o Mar, liga-se, segundo a lenda, ao continente submerso de Atlântida. De acordo com os defensores dessa crença, o Continente Submerso estaria situado no lado oriental das Islas Canarias, precisamente na costa leste de Lanzarote. Falso ou verdadeiro, a longa caminhada de cerca de dois quilômetros que fizemos caverna adentro dá mesmo o que pensar…

Finalmente, para encerrar nossa visita a Lanzarote, fomos visitar Jameos del Agua, belíssimo conjunto arquitetônico que bem combina natureza e intervenção humana. O ponto alto é a ocorrência, em um lago dentro da montanha, de um raríssimo caranguejo branco e cego que só existe ali. É outra surpresa dessa fantástica ilha.

Como viveriam os trogloditas pré-históricos naquelas enormes cavernas, sem quase comunicação direta com o exterior? Não recebiam internamente luz solar. Fico imaginando os problemas de higiene e saúde que enfrentavam com a quase ausência de água. Não que o homem “moderno”, que os conquistou e os fez escravos, tivesse condição de vida mais saudável. São conhecidas as condições européias de saúde e higiene daqueles tempos.

Terça-Feira, 07 de Novembro.

Passamos todo o dia de ontem abastecendo o barco para mais uma etapa. As informações são de que não mais encontraremos vaga em marinas. Portanto, compramos o que era mais pesado ou volumoso, tal como água, refrigerantes, leite, gás e outros quejandos.

Saímos na terça-feira, ao meio-dia, e fomos fundear ao sul da Isla de los Lobos, nas coordenadas 28.44.22 N e 013.49.43 S. Esta é separada da Isla de Fuerteventura pelo estreito canal de El Rio. A ilha deve seu nome não aos lobos terrestres, mas aos marinhos que existiam por aqui até serem provavelmente dizimados por caçadores. No entanto, constatei alguma divergência sobre o fato: enquanto o Guia Visual Espanha, editado pela Folha da Manhã, em sua terceira edição (2000), informa a existência abundante dos animais ainda nos dias de hoje, a carta do piloto Atlantic Islands, editada pelo Royal Cruising Club Pilotage Fundation, em sua terceira edição (1999), afirma o contrário, isto é, que os lobos marinhos na região encontram-se extintos. O único dado que pude pessoalmente obter foi com o pescador Juan Carballo que nos informou da inexistência da espécie.

A propósito, é muito séria, em certas ocasiões, a necessidade de se buscar confirmação para o que está escrito. Às vezes, os erros são grosseiros e não raro perigosos. É o caso, por exemplo, do que se lê à página 141 do Atlantic Islands antes referido: somente pela mania de tudo conferir e reconferir, especialmente com relação a entradas noturnas em portos, abrigos e barras, pude verificar que as longitudes informadas na carta sobre La Sociedad, em que tentamos o fundeio pela madrugada, contém um erro de três graus! Em outras palavras: quem plotar a entrada naquele porto pela referida carta do piloto vai errar por “apenas” 180 milhas. E o que é pior, pois muito mais perigoso: seguirá para um ponto situado a oeste da ilha, porque o erro é de três graus a mais; na longitude, portanto. E o porto fica no lado leste da ilha. Corre-se, pois, o risco de encalhar na costa ou colidir com os ameaçadores rochedos ali existentes. Ou, no mínimo, perder-se, Mar afora, buscando um ponto a 180 milhas dali…

Há que se fazer, sempre, a própria navegação. Para isso existe esta maravilha tecnológica que é o GPS. Ainda mais com três malucos soltos navegando por aí...

A ancoragem na Ilha foi muito fácil, pois o fundo é de areia. Deu-se bem próxima da costa, toda constituída de pontiagudas e perigosas pedras. Mas foi extremamente incômoda: como sempre, ao sul destas ilhas, o Mar de fundo é pronunciado e o balanço das embarcações é muito forte. Não por nada, além de nós, apenas mais um catamarã americano e um veleiro alemão estavam ali ancorados. Este, especialmente por ser monocasco, corcoveava como poucas vezes vi ocorrer com barcos fundeados em baías. Chego a pensar se estarei descobrindo algumas vantagens dos catamarãs sobre os monocascos. Ou se estarei começando a vencer a inicial restrição que todos nós temos ao que não conhecemos...

Quarta-Feira, 08 de Novembro.

A Magra, o Graef e eu fomos à terra, remando o dingue até um pequeno pier ali existente. Encontramos o pescador Juan Carballo, antes referido, o único ali presente. Além de sua própria casa, mostrou-nos boa parte da ilha, especialmente as denominadas lagunitas, formações rochosas baixas que se enchem d’água por ocasião da maré cheia. Naquele momento, elas começavam a devolver ao Mar a água com que a maré alta as enchera. Beleza única.

Sempre conduzidos pelo atencioso Juan, estivemos também na pequena e aprazível vila de pescadores, onde dezenas de gaivotas faziam a festa com os restos dos peixes que, na ocasião, eram estripados por moradores locais.

Às 15h, após termos conduzido o Juan de volta à terra e dele nos despedido com um aperto no peito (ele havia ido a bordo para uma amistosa cervejinha), partimos para o sul, no rumo 165 graus, costeando o lado oriental da ilha de Fuerteventura. O vento era favorabilíssimo e o dia estava bonito. Andávamos a mais de oito nós de velocidade. Ficamos calados, pensando em pessoas como o Juan, simples, comum, bom, solidário. Provavelmente, jamais possamos revê-lo. Provavelmente...

É assim para quem viaja e está aberto para o mundo. Encontram-se pessoas maravilhosas e, quando se vai embora, parece que falta um pedaço de mim, como diz a canção. No caso do Juan, não haverá a alegria do retorno. Mas nunca se sabe…

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Noite fechada. Para variar, estamos entrando em outro porto sem luz do dia, às 10 horas da noite. Êta gentinha teimosa essa. Mas o que vou fazer? Os alemães, agora, são três contra este intrépido pelo-duro: o Tatu, o Graeff e a Magra. Como posso evitar essa tremenda imprudência? Só ajudando...

O lugar chama-se Puerto de Castillo, na Caleta de Fustes, na Isla de Fuerteventura. Depois da rotina de sempre - saltar no trapiche e batalhar uma vaga para o barco, sempre obtida -, atracamos de lado num finger porque a Marina não tem lugar para catamarãs. Conseguimos uma beira para apenas um pernoite.

Amarramos o barco por bombordo, com a popa para o vento que vem do norte, nas coordenadas 28.23.5 N e 013.51.4W. Noite clara, com a lua crescente nos sorrindo. No dia seguinte, teríamos que zarpar, às 10h da manhã, o mais tardar.

Saímos para jantar no enorme e acentuadamente germânico condomínio ali existente. Constitui-se de casas, todas brancas, muito bem ajardinadas e sem muros. Muitas lojas, já fechadas, em sua maioria, pelo adiantado da hora, e restaurantes com boa freqüência, tendo-se em conta o relativo frio que fazia à noite. Mas não diziam que nas Canárias há calor o ano todo?

Na volta para casa, fomos dormir o sono dos justos. Passara-se mais um dia e uma vez mais o Pé-quente esteve conosco. Seria ele o guia turístico travestido de pescador, na Ilha de los Lobos? Ou algo a ver com a vaga na Marina lotada, num lance de sorte?
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(*) Para um bom estudo acerca dos guanches, recomendo The Guanches, Survivors and their Descendants, de Jose Luis Concepcios, Ediciones Graficolor S. L., 13ª edição, 1999.
(**) O Pé-quente é um ser etéreo que sempre me acompanha nas navegadas que faço. Ele viaja escondido em algum lugar dos barcos que tripulo. Quando menos se espera – especialmente quando a coisa está osca -, ele aparece para resolver o problema. E resolve...

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