Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(6º capítulo)

Ilhas Canárias

Quarta-Feira, 15 de Novembro.

Retornamos de Tenerife. Agora somos seis barcos amarrados nos quatro postes da entrada da Marina. Três são catamarãs e três são monocascos. O catamarã que ficou a nosso boreste é de bandeira italiana. Pronto: barulho, gritaria, piadas e alegria é o que não falta. Os peninsulares da bota italiana são mesmo do barulho. Botam pra quebrar…

Embarcáramos para Tenerife, pontualmente às 07h de segunda-feira, no jet-foil Princesa de Teguise da companhia Transmediterranea. É uma viagem rápida a bordo dessa moderna embarcação de passageiros, que faz o transporte entre as diversas Ilhas Canárias.

Tenerife é a maior das ilhas do Arquipélago. De formato ligeiramente triangular, possui pouco mais de 2.000 quilômetros quadrados e apresenta um relevo bem irregular, com altíssimas montanhas e profundos abismos. A espinha dorsal desse sistema montanhoso divide a ilha em duas metades bem distintas: a parte norte, úmida e fértil, apresenta abundante e rica vegetação; o sul, como ocorre na Gran Canaria, é árido, disso resultando uma quase inexistência de agricultura. Graças à nítida divisão entre essas duas regiões, Tenerife também é conhecida como a ilha de duas faces.

A despeito de sua latitude e proximidade com o Deserto do Saara, é surpreendente que Tenerife não seja apenas um contínuo deserto. Ao contrário, vêem-se, na parte norte, campos verdejantes com grandes videiras e extensos bananais. Lembram muito os vales do sul do Líbano, próximos a Baalbek. Tal particularidade, no caso de Tenerife, resulta da combinação dos ventos e do Mar. Os primeiros, por virem do norte, são mais frescos do que os do leste, provenientes do Saara. Com isso, fica atenuado o que seria um tórrido verão.

Quanto ao Mar, a corrente norte-sul das Canárias dá prosseguimento à Corrente do Atlântico Norte. Por sua vez, esta é bastante influenciada pela Gulf Stream, que abriga águas mornas. Por isso, o inverno na ilha torna-se mais ameno. Ao longo do ano, é raríssimo que a temperatura ambiente ultrapasse os 25 graus centígrados, ou que fique abaixo dos 18 graus. Agora mesmo, estamos “passando frio”, nada que um simples blusão e as indefectíveis bermudas não resolvam. E assim mesmo, o frio acontece ou cedo, pela manhã, ou à noite.

Uma agradável surpresa foi constatar, em várias oportunidades, a excelência dos vinhos produzidos em Tenerife. É grande sua credibilidade, eis que são totalmente consumidos, e a tal ponto que não se encontram para beber ou comprar vinhos com mais de dois anos de idade.

A parte culminante do território insular mostra em destaque a magnífica montanha vulcânica Las Cañadas del Teide. O tope deste enorme vulcão situa-se a 3.718 metros acima do nível do Mar. Para ter-se uma idéia do que seja, basta dizer que não há ponto mais alto em todo território espanhol, continental ou insular: nem o Aneto, nos Pirineus, com 3.404 metros, nem mesmo o Pico Mulhacen, em Sierra Nevada, com 3.478 metros.

Foi o próprio Teide que inspirou o nome da ilha: na língua dos guanches ancestrais, Tenerife significa montanha nevada. Isso porque o grande monte, durante a maior parte do ano, apresenta seu pico encoberto pela neve, em contraste com as partes mais baixas, de coloração em várias tonalidades, desde o verde até o preto, passando pelos belíssimos ocre e amarelo. Toda essa policromia resultou das torrentes de lava expelidas nas erupções cujos vestígios ainda permanecem visíveis. Não há cor do arco-íris que não exista no Teide.

Para chegar-se ao tope do vulcão, fomos de carro até a base, a 2.356 metros de altura. Dali, tomamos um teleférico que leva até La Rambleta, situada a 3.555 metros acima do nível do Mar. Dali em diante, percorremos a pé duas trilhas recomendadas, enfrentado alguns trechos ainda cobertos de neve e com um estranho tipo de vegetação característica e única. O pico estava a poucos minutos de nós. Só então ficamos sabendo que é preciso licença especial para chegar-se lá. E essa licença só é fornecida em Puerto La Cruz. Restou-nos olhar o tope, a poucos metros acima de nós. Onde estaria o Pé-quente?

Desde tempos remotos, o Teide surpreende os navegadores que demandam àquela região. Visto a dezenas de milhas de distância, causa enorme surpresa por suas dimensões. Não será por nada que o historiador grego Heródoto denominou-o de Atlas, enquanto, para outros, era conhecido como a “coluna do paraíso”. Mesmo que se dê a volta em toda a imensa ilha, o majestoso Monte pode ser visto de quase todos os lugares em que se estiver. É algo inesquecível, indescritível, por mais esforço que se faça.

O que mais vem chamando a atenção dos pesquisadores, ao longo do tempo, é a riqueza da formação geológica do Teide. Além disso, suas escassas e raríssimas flora e fauna despertaram interessados gênios da ciência. Von Humbolt, por exemplo, lá esteve em junho de 1799, descobrindo raros espécimes de plantas. Catalogou-os e hoje várias espécies endêmicas que lá ainda vivem - algumas quase inexplicavelmente - fazem parte do conhecimento científico universal.

A paisagem do Teide é deslumbrante. Há lugares que lembram a estranha grandeza do deserto de Wadi Rum, na Jordânia. É um lugar de beleza inebriante, comparável aos canions hawaianos.

Por sorte, o dia estava bem claro; um céu de brigadeiro ressaltava a brancura do Monte, com extensos trechos de neve. Assim, pudemos avistar, na direção oeste, as Ilhas La Gomera e La Palma. Olhando para o leste, viu-se, nitidamente, a formação de espessas nuvens que resultam da combinação dos ventos de norte-nordeste com a umidade das altas encostas. O resultado é que, entre 1.500 e 1.800 metros de altitude, faz-se presente grosso e constante nevoeiro, o que reduz a marcha do carro a pouquíssimos quilômetros por hora. Havíamos subido a montanha pelo nordeste, por Orotava; baixamos por sul-sudoeste, na direção de Guia de Isora.

No cume, a temperatura ambiente era ao redor de zero grau, ou pouca coisa mais. Ao nível do Mar, pouco depois, voltávamos para algo em torno de 22 graus.

Outra majestosa obra da natureza posta nessa ilha continental, berço do jesuíta e poeta José de Anchieta, é o Acantilado de Los Gigantes. Situado na costa noroeste, constitui-se de enorme penhasco, com 600 metros de altura, de formação basáltica. Ao pé do mesmo, ergue-se um grande condomínio ocupado quase que exclusivamente pelos alemães que ali residem mercê do clima moderado do lugar, com sua praia de areia totalmente negra, fruto da formação vulcânica dominante.

Em Los Gigantes, foi construído o Puerto Santiago, um molhe que se intromete Mar adentro, amortecendo a rebeldia das ondas e servindo de abrigo seguro a muitos barcos. No particular, é impressionante como se constróem marinas nessas paragens. Elas entram com pedras e concreto água adentro, desviam na direção de sotavento, retornam para a praia e ali ficam. Até parece que não há controle ambiental. Ou será que olhes e marinas não fazem mal ao meio ambiente?

Ainda em Tenerife, visitamos a famosa praia artificial Las Teresitas. Distante oito quilômetros de Santa Cruz, a praia foi feita com milhões de toneladas de areia trazida desde o Deserto do Saara. É ornada com palmeiras e defronte foi construído um quebra-mar, resultando que suas águas são mansas e próprias para o banho dos inúmeros turistas que ali aportam em qualquer época do ano. Mais se parece a uma gigantesca piscina.

Para nos despedirmos de Tenerife, fomos jantar no famoso restaurante Casa de Miranda, fundado no Século XVII. Mais uma vez, pudemos comprovar a alta qualidade da culinária da ilha, com seus frutos do Mar e seus vinhos de boa cepa.

Quinta-feira, 16 de novembro.

Fomos todos jantar no veleiro Afrodita, do norueguês Kim Erichsen. É um belíssimo Nauticat 52, espaçoso e muito confortável. O Kim e sua brasileiríssima Regina Baptista Pereira não sabiam o que fazer para nos agradar. Comemos do bom e do melhor e acho que tomamos todo vinho que havia a bordo.

Foi muito bom estar com aquela gente marinheira que decidiu largar tudo para viver a bordo em companhia do filho Thomas. O domicílio deles passou a ser o Mar. E irão correr a ARC para o Caribe. Bons ventos...

Sábado, dia 18 de novembro.

Comprei um GPS. Trata-se do novíssimo Etrex da Garmim, para substituir o meu Garmim 75 que caiu no chão e apagou. O aparelhinho - do tamanho de um telefone celular - é um primor de tecnologia. Possui capacidade para 500 waypoints. O meu inseparável 75 possui - ou possuía - somente 200. O Tatu e o Graeff não resistiram à tentação e também compraram o tal negócio. Agora, estamos bem arranjados; não há desculpa para errar a navegação. Temos cinco GPSs a bordo...

A Magra e eu, incorrigíveis ratos de museus, fomos visitar o Museu Canário para conhecer os usos e costumes dos guanches, o povo que primeiramente povoou estas ilhas. Há, ali, notícias documentadas de expedições a estas paragens no ano de 1.413, ocasião em que o europeu conquistador iniciou o aprisionamento dos nativos, levando-os escravos para a Europa. Na época, os nativos se opuseram ao invasor, combatendo-o em sangrentas guerras. O grande morticínio dos locais quase os levou à extinção.

Os guanches receberam essa denominação inicialmente em Tenerife. Até os dias de hoje, os habitantes da ilha orgulham-se de terem sido seus ancestrais os únicos não escravizados pelo conquistador. Os nativos das demais ilhas quase desapareceram da face da terra, mortos ou levados para o cativeiro na Europa.

Fundado em 1.879, o Museu Canário impressiona pelo que mostra da arqueologia e da pré-história dos guanches. Ali podem ser vistos trabalhos artesanais em peles e fibras vegetais, peças em cerâmica habilidosamente elaboradas e utensílios de pedra que, embora sem conhecer o metal, eles já eram capazes de fazer.

Do mesmo modo, curiosas eram as suas moradias. Os guanches viviam em cavernas muitíssimo semelhantes às encontradas na Capadócia. Naturais ou artificiais, como as da Anatólia, possuíam também vários andares, terra adentro, com poços de ventilação cavados verticalmente, propiciando a entrada de ar nas partes mais profundas. Na abertura de cavernas artificiais, deixavam, de espaço a espaço, colunas de sustentação do teto. Eram verdadeiros mestres na arte de construir. Eram engenheiros.

É certo que não viviam em condições de salubridade inferior às dos conquistadores na Europa de então. Mesmo com o advento, séculos depois, da revolução industrial - e por vezes até em função dela própria -, os europeus estavam bem longe de serem um exemplo de vida saudável. Não superavam os guanches.
Na Europa do final do século XVIII, as primeiras fábricas eram erguidas dentro das cidades, nos pontos mais nobres, próximas à água, de que tanto necessitavam, e às moradias onde habitavam os futuros operários. Nessas correntes d’água, jogavam-se os dejetos industriais, causando a morte dos peixes. As pessoas lançavam seus excrementos na via pública, quando não faziam suas necessidades fisiológicas ali mesmo.

Para que se tenha uma pálida idéia do caos sanitário imperante no início dessa era, em Manchester, cidade inglesa da nova fase industrial, havia trinta e três lavatórios para cada grupo de mil trabalhadores. Os operários, recém-trazidos do campo, saudosos por certo da vida rural, criavam porcos nos porões das próprias casas. Os quartos dessas moradias, em sua maior parte, não possuíam qualquer abertura para a rua. Jamais recebiam diretamente luz solar. Os índices da tuberculose avançavam em virtude de tais condições de higiene que fariam corar aos babilônios; estes já dispunham, milhares de anos antes, de prodigiosos inventos para o uso da água.

O mesmo não ocorria, entretanto, em cidades que não entraram intensamente na fase industrial. Em Viena, por exemplo, os trabalhadores moravam fora dos muros da cidade, ainda hoje preservados em grande parte. E a cidade poderia, se assim o quisessem seus administradores, expandir-se para os arredores. Paris, ao contrário, tinha de crescer para cima, em virtude dos intensos cercos que sofria. O mesmo ocorria com Londres embora esta, podendo expandir-se no sentido horizontal, como Viena, apinhava-se de gente em horrendos agrupamentos sub-humanos.

Se Paris teve que crescer para cima, Londres a tanto não foi forçada. Ao contrário de Viena, porém, não poupou esforços para, durante o século XVIII, concentrar sua massa operária próxima das fábricas. Era a sinistra insalubridade. A peste tornou-se presença constante; a tuberculose era tão comum quanto, hoje, é a gripe. Os índices de mortalidade eram assustadores. Era o preço a pagar pelo progresso…

Já na primeira metade do século XIX, como visto, o mundo conheceria os primeiros arranha-céus, construídos um pouco depois do surgimento do cimento Portland e do elevador hidráulico inventado pelo genial Elisha Otis. Londres foi salva do novo caos por um erro histórico: acreditava-se, sem razão, que o solo londrino não se prestava para edificações de maior altura. E a capital britânica ficou como é hoje: uma imensa e, agora, bela cidade de prédios baixos. Proporcionalmente, lá são escassas as altas edificações.

Ainda com relação aos guanches, o que mais chama a atenção dos pesquisadores é a existência de múmias em perfeito estado de conservação. Os cientistas flagram nisso uma inquietante semelhança com a forma de mumificação usada no distante Egito. Estou certo, porém, de que o leigo não conseguirá identificar diferenças entre as múmias expostas no Museu Canário e no Museu do Cairo.

Há, também, uma grande coleção de crâneos humanos que servem aos estudos dos antropólogos quando buscam desvendar a origem daquele povo. Tudo isso compõe o motor da curiosidade dos cientistas e pesquisadores do mundo inteiro, que procuram desvendar os escaninhos dessa misteriosa terra.

Assim, embora inexistam datas precisas, os estudiosos afirmam que os guanches teriam chegado às Canárias há vários milhares de anos. Para o leigo, seus objetos são tão impressionantes quanto os produzidos há dez mil anos e que se encontram expostos no Museu de Aman, na Jordânia. E o mais inquietante, nessa linha de semelhanças, é que, enquanto o clima das Canárias é tépido o ano todo, na Jordânia, a temperatura varia, durante o ano, entre 05 graus centígrados, em janeiro, e 40 graus, em agosto. E isso deveria influir no estado de conservação de tais objetos. Mas como o deserto de Wadi Rum é um dos lugares mais secos do planeta...

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Algo muito grande está por acontecer. O movimento nos trapiches é diuturno. Homens e mulheres, pendurados em mastros, apressam-se em fazer os últimos reparos para o grande dia. Víveres, ferramentas e peças de reposição vão sendo embarcados nos veleiros aportados. Montanhas de caixas de papelão e de madeira vão sendo acumuladas próximo às saídas dos pantalanes, como aqui se chamam os trapiches. São o resultado dos carregamentos levados para bordo. Ainda assim, a limpeza é muito atenta. Infelizmente, porém, vazamentos de óleo dos motores terminam no Mar. Vai-se enegrecendo a pequena praia situada aqui ao lado.

Chegam mais e mais barcos das mais diferentes nacionalidades que se vão amontoando como podem, lançando âncora em qualquer espaço. Alguns amarram-se nas pedras dos molhes da Marina. As autoridades navais, de início tão presentes, parecem fazer vista grossa porque um verdadeiro caos, embora organizado, começa a instalar-se.

A ARC é um grande acontecimento. Movimenta a cidade e, sobretudo, traz dinheiro, contribuindo para desenvolver a febril atividade turística da ilha. Tudo é festa, uma alegre e nervosa festa. Os velejadores que correm regatas sabem bem do que estou falando...

Na véspera da largada, ao longo da enorme Marina, bandas musicais alegram os visitantes e as tripulações das centenas de barcos participantes. Belíssimos fogos de artifício são lançados aos céus. Domingo, parte a grande regata ARC 2.000 – Canárias a Santa Lúcia. Repete-se, assim, o mesmo percurso feito 508 anos antes por Cristóvão Colombo.
A propósito, em Las Palmas de Gran Canária, visitamos também a Casa de Colombo onde se encontra uma réplica do interior da Niña. Esta caravela e mais a Santa Maria e a Pinta levaram a esquadra de Colombo ao “descobrimento” da América. Estive dentro da réplica e fiquei pensando naqueles destemidos marujos que faziam do Mar a sua morada. Quantas privações, quantos sacrifícios, quanta dor sofriam. Lembrei-me do grande Fernando Pessoa, dizendo:

 


Oh, mar salgado,
quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos,
quantas mães choraram
quantos filhos em vão rezaram
quantas noivas ficaram sem casar
para que fosses nosso oh mar!

É inacreditável terem aqueles homens cruzado o Atlântico em tais condições. Não tinham cartas náuticas de espécie alguma, até porque iam para terras desconhecidas. Não tinham medidores de profundidade, nem barômetros. Dispunham somente do sextante e da bússola. Enfim, toda a moderna tecnologia náutica inexistia, ao contrário dos dias de hoje em que o nosso comuníssimo GPS, aliado às ótimas cartas náuticas existentes, tornaram-nos a todos praticantes de um ofício quase sem erros.

Na Casa de Colombo, acham-se as cartas náuticas que resultaram das quatro viagens que ele fez à América. Sempre pensando que aportara na Índia, o grande marinheiro deu às cartas uma curiosa feição: nelas, a parte da Ásia situa-se imediatamente a oeste da hoje América Central. Ele estava convencido de que, finalmente, chegara ao oriente navegando para o ocidente…

Nas quatro viagens que fez, o grande comandante aportou por três vezes nas Ilhas Canárias. Usou estas ilhas do mesmo modo como as usam hoje os navegantes do mundo inteiro, ao cruzarem o Atlântico Norte: ponto de reabastecimento e descanso.

De outro lado, aqui escalando, logrou cortar a grande travessia, reduzindo-a para menos de 3.000 milhas náuticas, o que corresponde a cerca de 5.500 quilômetros. Mais ainda, e talvez para sua sorte, ao continuar a travessia a partir daqui, descreveu o arco que contorna quase completamente, pelo sul, a área atlântica de furacões. Se navegasse para oeste, desde o início, atingiria em cheio o núcleo da temida região. E além disso tudo, percorrendo o arco, alcançou a zona de ventos e correntes mais favoráveis.

Mas um grande velejador também precisa de sorte. O certo é que Colombo escolheu o mês de agosto, um período do ano altamente perigoso. No entanto, ao passar primeiramente pelas Canárias, evitou a zona da mais devastadora manifestação do Mar, o furacão do Atlântico Norte. Freqüente entre os meses de maio a novembro, rarissimamente ocorre fora deste período dentro do qual deu-se a epopéia do descobrimento da América. Rarissimamente...

Essa questão é tão séria que, no edital da Regata Arc 2.000, constam cerca de quarenta freqüências de rádio SSB que podem ser acessadas por qualquer embarcação, participante ou não. Mas, em uma dessas freqüências (8017 KHZ - Caribbean Weather Net), está a observação, com todas as letras maiúsculas: ONLY BROADCAST IF THERE IS A HURRICANE. Ou seja, é um canal exclusivo que somente funciona se houver furacão. Para não deixar dúvidas…

Na primeira viagem, Colombo ficou por quase um mês nestas paragens, aguardando, sem querer, o fim da temporada de furacões. Nessa ocasião, trocou as velas triangulares da Niña por velas quadradas que chamavam, por incrível que pareça, de velas redondas… Também consertou o leme da embarcação. E como ignorava a existência dos furacões, daqui partiu a 31 de agosto.

Na segunda travessia, aqui esteve outra vez, mas seu curso foi bem mais para o sul. Buscava melhores ventos e também procurava fugir das zonas de furacões, situadas mais ao norte, na parte central do Atlântico Norte. Foi o verdadeiro precursor dessa rota usada, como disse, por todos que demandam à costa ocidental do Atlântico, cujo destino seja qualquer das Américas. É o caminho que pretendemos seguir, o mesmo que atentamente examinei nas cartas dessas quatro grandes epopéias.

Domingo, 19 de novembro.

O dia amanheceu lindo. Com a festança da véspera que, em sua melhor parte, foi feita mesmo no Haaviti, com um jantar dos deuses preparado pela Magra, fomos dormir depois das quatro da madrugada. Pela manhã, todos estávamos de “cabeça grande”. Ainda assim, acordamos cedo e fomos para o cockpit assistir à passagem das centenas de barcos que demandavam à linha de largada, fora do imenso porto. Antes de chegarem lá, porém, tinham de passar, um a um, pela estreita boca da Marina, à nossa frente, ou melhor, bem na nossa popa. Disso resultava sermos privilegiados assistentes daquela linda e interminável procissão das embarcações inscritas na ARC 2.000, as quais já não mais exibiam as bandeirolas festivas que as ornavam até a véspera.

Muitas despedidas, adeuses que partiam tanto das embarcações quanto da multidão espremida sobre os molhes, de ambos os lados da Marina. A atmosfera festiva, porém, não lograva esconder o aperto da saudade no peito de quem ia e de quem ficava. Até o ano que vem, era o que pareciam todos dizer. Pensei em como teria sido a despedida da flotilha de Colombo, naquele mesmo lugar, quinhentos anos antes...

Após assistirmos, fora da Marina, o empolgante episódio da largada das centenas de barcos, acompanhei a Magra ao aeroporto. Voltava para casa com a alma em festa, alegre por termos convivido, mais uma vez, com um grande e velho amigo, o Tatu, e um novo companheiro, o Graeff. Foi bom demais a Magra ter vindo. Deixou saudade e voltou tão apreensiva como jamais a vira antes. Não lhe ocorrera um bom presságio. Era palpável que sentia algo de ruim no ar...

Amanhã, finalmente - ou em outro dia qualquer, nunca se sabe -, deixaremos o que até agora foi, de certa forma, uma navegada costeira, distante não mais do que dois ou três dias de terra firme. Demandaremos, finalmente, a América.

Segunda-feira, 20 de novembro.

Ao contrário do planejado, não zarpamos ainda. Ficamos enrolados nos preparativos da travessia.

As providências para a partida parecem muito simples. Não são. A imigração burocratiza tudo. O Tatu fica horas na fila para ser atendido, com nossos passaportes na mão. É o Graeff e eu batendo com a cara na porta para trocar nossas pesetas por dólares. É o interminável supermercado para o abastecimento que dure quarenta dias, calculando-se vinte de duração aproximada da travessia e mais vinte para o caso de a gente “ficar por lá”, à deriva. A previsão de água mineral é para noventa dias. É a limpeza geral do barco, que havia passado cerca de duas semanas sendo abastecido exclusivamente com baldes d’água trazidos no dingue. Recorde-se que estivéramos atracados nos postes interiores da Marina, sem água direta do trapiche, embora quase encostados nele.

Quando, enfim, chegou a noite, não havíamos concluído toda a faina. Estávamos cansados e resolvemos dormir a última noite ainda atracados. Menos mal que pude, logo cedo, dar a minha última corridinha antes da América. E que bom que amanhã não é sexta-feira…

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