Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(6º capítulo)

Das Canárias ao Meio do Mar Oceano

Terça-feira, 21 de novembro (Coordenadas das 12h 30min GMT: 28.07 N e 015.25 W).

Partimos.

Nos últimos tempos, as coisas em terra têm-me parecido muito malucas. Tudo em Las Palmas é estressante, à exceção da aconchegante Marina. A cidade está saturada de veículos. As inúmeras e antes eficientes curvas de nível cavadas no subsolo já não dão conta do recado: os túneis estão atravancados de carros. O simples ato de atravessar a rua, a despeito da irrepreensível educação dos motoristas, é um verdadeiro tormento. Nada mais cabe nesta cidade. É gente demais, carros demais, barulho demais, correria demais. Lembra Majorca.

Não poderia imaginar que uma ilha situada tão longe de tudo, ou nem tanto, fosse apresentar todo aquele “progresso”. Não víamos a hora de cair fora, sair dessa maluquice e demandar o melhor lugar do mundo: o Mar.

Finalmente, aqui estamos. Partimos às 12h 30min (GMT), alternando sol brilhante e uma leve garoa que fingia nos molhar. Já na saída, quando o Graeff e eu estávamos içando o grande, só o Tatu notou que, da valuma da vela, pendiam alguns pequenos cabos de amarração das talas. Poderiam vir a enroscar-se no amantilho da retranca e impedir, depois, que a vela fosse arriada. Imagine-se se isso acontece num vento forte em que haja necessidade de rizar o grande às pressas: a vela simplesmente não arriaria.

O Graeff passou a faca nos tais cabinhos, encurtando-os ao máximo. Coisas de quem vê tudo, nota tudo no barco que comanda. Ao Tatu, ainda que seja um baita dum arriado, nada escapa. Ele sabe muito e é muito responsável. Nasceu realmente para o que faz: velejar. E é muito bom ter um companheiro assim.

Içado novamente o grande, tomamos o rumo inicial para contorno da Gran Canaria. De pé, na frente do mastro, por iniciativa do Tatu, abraçamo-nos os três, apertamo-nos as mãos e, emocionados, nos desejamos mutuamente uma boa travessia. O Mar Oceano nos esperava. O grande jogo tinha começado. Agora era para valer.

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Pouco depois da saída, vou à mesa de navegação, na qual haverei de passar grande parte do tempo a partir de agora, e ploto duas posições na carta do Caribe: Martinica e St. Martin (a grafia, daqui por diante, é a da carta A-2, Puerto Rico to St. Christopher). As posições, inicialmente, são apenas aproximadas em face da enorme distância que de lá estamos. Martinica, na posição arredondada de 14.40 N e 061.45 W, está a 2.650 milhas de distância, se fôssemos em linha reta até lá. St. Martin, sempre em linha reta, a 2.695 X, na posição, sempre aproximada, 18.00 N e 063.00 W.

Inserindo esses dados no GPS, abro oficialmente os trabalhos de navegação. Essas não são, contudo, as distâncias a serem percorridas. Não sabemos sequer se iremos direto para St. Martin ou se faremos escala na Martinica. Ou, até, se não iremos para outro ponto qualquer do Novo Mundo. Somos filhos do Mar e dependentes dos ventos: eles dirão onde e por onde ir.

A propósito do Mar, lembro o que o “Nego” Márcio escreveu para mim, a bordo do Tuchaua III, no dia 26 dezembro de 1991. Naquela data, aquele belíssimo barco entrava pela primeira vez no Mar. E era o dia do meu aniversário. O Tuchaua e eu nascemos na mesma data: somos capricornianos…
Escreveu-me o Márcio: “que o meu respeito pelo Mar seja o dobro do prazer que tenho de nele navegar”. E é assim mesmo que todos nós pensamos. Jamais contrariamos a vontade do Mar. Vamos para onde ele nos levar. Ou quase isso.

Em retribuição, ofereci ao Nego os versos que compus em homenagem ao evento e que ele resolveu emoldurar e pendurar no seu Tuchaua:

 

Enfim, realizou-se um sonho
Tão grande que às vezes me ponho
Quieto a imaginar
O tamanho da emoção
Trazida pelo enorme apego
Que este inconfundível Nego
Tem pelo barco e o Mar.

Naquele 26 de dezembro
Parece agora, bem lembro
Foi-se o Tuchaua ao Mar
Levado pelo seu dono
Bravo, esperto e sem sono
O Márcio quase a chorar.

Seria um mero acaso?
E à imaginação dou azo
Querendo relacionar
A enorme coincidência
De eu nascer no mesmo dia
Em que, suprema alegria,
Tuchaua no útero Mar!

O barco no Oceano entrado
Fez-me raciocínio caótico
Seria também amniótico
O líquido do Mar salgado?
E a obra que o Márcio criou
Usando um montão de madeira
Comendo o mingau pela beira
E eis no que resultou:

Impávido, intrépido, valente,
O Tuchaua não desmente
Aquela enorme atração
Que o Mar desperta no Nego
Jamais lhe dando sossego
Verdadeira obsessão.

O Márcio tem pelo MAR, CIO
O cio que nele roça
Devagar dele se apossa
Avassalador, bravio
Inundando-lhe os porões
Da alma e do sentimento
Verdadeiro linimento
Que faz do Nego isso aí:

Um marujo apaixonado
Que fita o Mar deslumbrado
Num grande porre marítimo
É expoente logaritmo
Aos neófitos indecifrável
Mostrando, porém, viável
Alcançar o almejado.

E agora os vejo lá
O barco, o Nego e a Cláudia
Que ela é a primeira dama
Do Tuchaua que ninguém chama
Barco de um homem só:
O Nego não anda sozinho
A Cláudia está sempre a seu lado
Cuidando do felizardo
Com desvelo e com carinho.

E quando dali me aproximo
Meio assim pedindo arrimo
Torno a neles constatar
A convivência harmoniosa
E a síntese maravilhosa
O barco, a mulher e o Mar.

………………………………….

Em verdade, nosso percurso será bem maior do que qualquer dos dois pontos por mim retirados das cartas náuticas. É que, como disse em relação a Cristóvão Colombo, daqui para o Caribe temos que descrever o arco seguido pelas correntes e pelos ventos. E não há como saber-se, de momento, que distância percorreremos. Daqui a algumas semanas poderemos, quem sabe, avaliar melhor tudo isso. Mesmo assim, com a imprevisibilidade dos ventos. De momento, eles estão nos empurrando no rumo sul e este não é, precisamente, o que deveríamos trilhar.

Como se diz no linguajar náutico, o vento está torcido para leste. Vamos com ele; não queremos andar de popa rasa. Quando voltar para o norte, damos um jaibe e, amurados a boreste, tomamos um rumo mais a sudoeste. Será, então, o início do longo arco que iremos descrever até o lado ocidental do Atlântico Norte. Debruçado na mesa de navegação, vejo a rota que tracei na carta náutica 4012 (North Atlantic Ocean – Southern Sheet, escala 1/6.331.100 at lat. 30 graus). Por isso é que o percurso será muito maior do que aquele que faríamos, se navegássemos diretamente para o Mar do Caribe.

Às 13h, tomo nossa posição e a anoto no log do qual passo então a me encarregar. Daqui para a frente, todas as noites, a roda dos navegantes, pelo SSB, será informada de nossa posição das 22h GMT.

A posição é 27.49 N e 15.21 W. Estamos andando a 08 nós, mas ainda apoiados pelo motor de bombordo. O vento, embora já de direção adequada, ainda não é forte o suficiente para nos impulsionar só com o velame. Iremos motorear por algum tempo. Ainda estamos com Gran Canaria pelo nosso través, na sombra, portanto, da grande Ilha, o que faz com que, ali, os ventos sejam mais fracos.

Mais duas horas e ultrapassamos o sul da Ilha. Ao abrir o balão, o Tatu verifica que o engate rápido da adriça está por se romper. Como bom alemão teimoso, fica uma hora tentando abrir o “nó cego” que algum “marinheiro” fez para amarrar a adriça no gato. Consegue. Só de teimoso. Como ele mesmo indaga e responde, sabe como se põem vinte alemães dentro de um fuca? Diga a eles que não cabem…

Enquanto St. Martin abriga territórios francês e holandês, a Martinica é uma possessão francesa. São duas ilhas, fruto da partilha que os grandes impérios europeus fizeram das Américas, entre os séculos XVI e XVIII. Toda a América do Sul, a Central e grande parte da América do Norte foram divididas entre os poderosos da ocasião: Espanha, Portugal, Gran-Bretanha e França. E até para a Holanda e a Dinamarca sobraram algumas ilhas. Depois, em função do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, ficaram delineados os limites desses impérios nas colônias sul-americanas.

Com as vitórias britânicas sobre a Holanda, no século XVII, e sobre a França, no século seguinte, consolidou-se o poder da Inglaterra na América e na maior parte do mundo. Seguiram-se os anos dourados de conquista do Canadá e da Índia até que, já quase no final do século, os britânicos enfrentaram a fortíssima rebelião das treze colônias. Disso resultou a independência norte-americana, a partir do famoso pacto de Mayflower, e a fundação daquele novo e poderoso Estado independente.

Nessa esteira, seguiram-se os movimentos de independência sul-americanos que resultaram na expulsão de espanhóis e portugueses do continente sulino. Imitavam o movimento independencista do norte.

Todos esses movimentos de independência tiveram exércitos constituídos de indígenas e foram comandados pelo homem branco, em sua maioria europeu. A partir de então, os dirigentes das novas colônias passaram a buscar mão-de-obra barata para substituir a dos patriotas naturais que, bravamente, lutaram a seu lado. Com isso, ainda mais enriqueceriam os europeus aqui chegados. Assim, intensificaram o repugnante tráfico de escravos, trazendo negros da África como mercadoria vendável. Era a substituição do índio pelo negro.

A partir daí, algumas populações indígenas, especialmente no México, recobraram seu anterior poder político. E as potências coloniais foram perdendo seu anterior apogeu até que, nos dias de hoje, algumas delas quase inexistem, se comparadas ao poderio anterior. Nenhuma, por exemplo, chega sequer perto da hodierna Alemanha em matéria de produto interno bruto. E a Alemanha não tem uma colônia sequer.

Assim, Portugal, o mais antigo império europeu; a Espanha, que teve o maior território colonial das Américas; a Inglaterra, que não é nem sombra do que foi; e a França, de vocação igualmente colonialista, perderam quase toda a fonte de riqueza trazida de fora de seus territórios europeus. Ficaram, ainda, na América, algumas raras possessões ultramarinas de que são escassos exemplos algumas ilhas do Caribe.

No Oriente, as coisas se passaram de modo similar. A Malásia e a Índia livraram-se do jugo britânico que, mais recentemente, restituiu Hong Kong à China; as Filipinas deixaram de ser espanholas; a França foi corrida da Indochina. Estive em Macao meses antes de Portugal devolver este enclave à China.

O mesmo ocorreu na África, apesar da assunção, por parte da Inglaterra e da França, do que pertencia à Alemanha até a Primeira Grande Guerra. E mesmo a partilha entre franceses e ingleses, no Oriente Médio, não prosperou. As lutas de independência venceram e os poderosos impérios europeus foram caindo um a um.

É bem verdade que isso não se deu com o império russo, em sua inexorável marcha para o leste. Nesta, anexou territórios e mais territórios que situam a Rússia, hoje, como o maior país do mundo em extensão territorial. Algo parecido ocorreu com a Polinésia e a França, em pleno Pacífico. Mas isso é do lado de lá do mundo. Não vem ao caso enfocar aqui.

Do lado de cá, sobraram algumas ilhas, entre elas as Canárias, no Atlântico oriental, de onde estamos partindo, e algumas outras ainda, no Mar das Caraíbas, no Atlântico ocidental, para onde estamos indo. Logo saberemos o que acontece naquelas colônias, ainda sob o domínio dos seus “descobridores”.

Quarta-feira, 22 de novembro (coordenadas das 22h GMT de terça-feira: 27.15 N e 015.50 W).

Passa da meia-noite. Tirei a diferença: dormi das 16h até às 22h. É o início da adaptação aos turnos de vigília, que já começamos a cumprir. O meu se iniciaria à meia-noite. Assim mesmo, levanto da retardada siesta e encontro o Tatu às voltas com o weather-fax. Procura inteirar-se das condições do tempo em nossa rota. Para tanto, acaba de fazer contato com o Rafael, o rádio-amador residente na Gran Canaria, que presta um inestimável serviço de apoio aos navegantes do Atlântico todo. Ele também, de forma geral, atende a chamadas e consultas do mundo inteiro. Seu trabalho é impressionante.

Outro operário da radiofonia amadora é o Altino, que fala na mesma faixa do Rafael, desde os Açores. O mesmo ocorre com o Alberto, que fala desde Santa Fé, na Argentina. Os três são os anjos da guarda de quem navega por aí, colaborando para a segurança da navegação de forma totalmente desinteressada.

Outro trabalho maravilhoso é o da América. Situada em Curitiba, também rádio-amadora, serve de apoio a todos os navegantes brasileiros que se largam Mar afora. Propicia contatos com familiares, providencia na entrega de encomendas, liga para as pessoas e até dá conselhos. Enfim, o trabalho da América é grande porque tem a inspirá-lo sua qualidade primeira: a solidariedade. Obrigado, América!

Olho o entorno e mal consigo divisar os clarões da Gran Canaria e, mais para o través, os últimos vestígios de luz das ilhas La Gomera e Tenerife. Já distamos mais de 60 milhas da mais próxima delas.

Tenerife! Que diferença da agitada Gran Canaria. Muito embora a dita civilização já esteja avançando também ali, ainda existem lugares encantadores para serem visitados; lugares onde o “turistismo” não chegou com tanta força. Embora já existam shopping centers, com seus modismos, com seus souvenirs e outras frivolidades modernas, em Tenerife ainda se pode viver só calçando chinelos de dedos e vestindo bermudas e camisetas.

Lembro-me da vida dos habitantes dos motus das Illes de la Societé, na Polinésia. Que vontade de tornar a navegar por Morea, Raiatea, Tahaa, Huahine e Bora-Bora! Que maravilhosa natureza fez das bordas dos vulcões afundados os enrocamentos naturais que circundam aquelas ilhas do paraíso. Se o paraíso existe, ele fica na Polinésia, para onde um dia hei de retornar. Quem sabe, para lá ficar até o fim…

Lembro, também, a inesquecível velejada pelo Mar Egeu e suas ilhas de Aedgina, Poros e Hidra, onde fomos apresentados ao vento Mistral... Saídos da grande Marina de Pireus, Atenas, a Magra e eu fizemos uma das nossas melhores navegadas. Conhecemos o interior daquelas ilhas, prenhes de história e cultura, de monumentos e restos da civilização que empolgou, por séculos, o mundo então conhecido. São hoje o silencioso testemunho da grandeza grega.

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Vou ao convés dar uma olhada para fora. Os cascos do Haaviti marcam na água duas luminosas trilhas de luz. É a incandescência dos noctiluca miliaris, o protosoário marinho que se acende, quando atritado. O mesmo ocorre quando os golfinhos, em desabalada carreira, parecem competir com o barco em velocidade. Fazem belíssimas evoluções por baixo e pelos lados da embarcação, marcando sua presença noturna com os incontáveis fachos de luz que marcam seu caminho.

O protosoário lembra meu primeiro barco: o Noctiluca, um trinta pés de madeira. Comprei-o do grande Capitan Ernesto Dreher, já falecido. Foi minha primeira paixão vélica. Navegando sozinho, batendo em pedras, encalhando e rasgando velas como nunca se viu, fui curtindo a dor do aprendizado de velejar em solitário. Em compensação, contava com o apoio de tantos queridos amigos, verdadeiras máquinas de velejar das quais qualquer dia desses eu falo. Eles tornaram menos árduo o duro aprendizado.

O maior problema é que eu tinha pressa: queria recuperar o tempo perdido. Afinal, já era quase cinqüentão e não faltou quem dissesse que eu deveria arrumar uma atividade mais compatível com a minha idade. A vela era só para os jovens e fortes. Além disso, velejador com pressa, velejador nunca será. E o tempo vinga-se das coisas que são feitas sem a sua colaboração. O tempo é implacável, especialmente para quem não sabe esperar.

Mas, eu já me apaixonara pela vela. Estava irremediavelmente contaminado. Talvez minha atávica mistura de vikings, portugueses e espanhóis, povos velejadores, me empurrasse para o Mar. E eu fui lutando para que o tempo refizesse o que desfez. Que botasse no meu corpo uma outra vez. Ainda não era hora de se consumar o tempo:

preciso descobrir num último momento
o tempo que refaz o que desfez
que recolhe todo o sentimento
e bota no corpo uma outra vez.

Depois, veio a turma do Madrugada. Aprendi muito com o velho “Madruga”, levando-o para cima e para baixo, quase sempre em companhia do Joca. Só nas operações de translado do grande barco, o Joca e eu navegamos juntos algo em torno de 5.000 milhas. Do Rio Grande até o Rio de Janeiro, foram navegadas que nunca esquecerei. O Joca era um grande parceiro. Foi embora cedo demais.

Outro que desfalcou a galera do Madrugada e nos deixou antes, muito antes do tempo, foi o grande velejador Jules Lebris. Estive com ele na última vez em que pisou em um barco. Levávamos o Madrugada do Rio de Janeiro para Florianópolis. Do amargo desaparecimento daquele velho lobo do Mar, escrevi e vi publicado o seguinte:

A última velejada

Conheci Jules Lebris no último verão, na subsede do Veleiros da Ilha, em Jurerê. Lá permaneci até o final de fevereiro, em longos papos com o popular Francês. Homem de personalidade forte, afável, brincalhão como poucos, debochado, de fina ironia, seu comportamento não disfarçava, contudo, sua sólida cultura humanística amealhada através de intenso gosto pela leitura. Às vezes contava algumas façanhas, como a de atravessar o Atlântico desde o Marrocos, ir às Malvinas e finalmente aportar em Florianópolis com seu barco que dali nunca mais saiu.

Ao término da temporada, quando de minha volta de Jurerê, estava contando com a invejável experiência do Jules para trazer de volta o Molecão para Porto Alegre. Ele só poderia vir, no entanto, no dia 1º de março, sexta-feira. Como o nordestão entrou no dia 25, segunda-feira, decidimos, o Joca e eu, zarpar no dia seguinte. E o Jules, então, não pode vir.

O Francês empreendeu sua última navegada, a bordo do Madrugada. Juntos saímos de Ilha Bela no dia 16 de julho do corrente ano. Pela primeira vez, senti-o quieto, reservado, taciturno. Quase nada comeu ao longo de todo o traslado. Apenas abrigou-se com muita roupa a fim de evitar o enjôo provocado freqüentemente pelo intenso frio do alto-Mar. Aquele falastrão incorrigível, navegador carismático, amigão afável ficou em terra. No Madrugada, embarcou alguém desconhecido, silencioso, discreto.

Que insondáveis abismos estaria o Francês tangenciando? Que grito teria sufocado em seu peito de homem bom? Lembrei-me de “A Medida do Abismo”, do Vinícius de Morais, que diz:

 

Não é o grito a medida do abismo?
Por isso eu grito sempre que cismo
Sobre a vida tão louca e errada...
Que grito inútil
Que imenso nada.

O Jules se foi sem cumprir a promessa que me fizera: subir no Molecão para Angra dos Reis no fim do ano. Deixou um bilhete onde dizia: decidi zarpar de vez para outros horizontes. Em mim, deixou a sensação acre-doce de tê-lo acompanhado em sua última velejada (de São Sebastião a Florianópolis). No dia 6 último passado, morreu em Florianópolis. Deu-se um tiro na cabeça, abrindo um rombo dolorido no coração de seus inúmeros amigos que tanto o queriam.

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Quando o Madrugada foi campeão brasileiro, em 1991, eu estava na tripulação que ganhou a famosa Regata Santos-Rio. Tudo era uma festa só, após uma das piores navegadas que jamais fiz. Quase todos enjoaram muito. O Manfredinho, com mais de dois metros de saúde, resolveu ter hipotermia; o Jackson “morreu” e ficou grande parte da regata atirado no convés. Quanto a mim, acho que só parei de vomitar na semana passada. O Biriba, sentado na borda a meu lado, dizia: oh, Amora, vomita aqui que é mais fácil. E eu, esprimido entre dois daqueles monstros, não tinha outra saída senão vomitar por entre as pernas do Biriba: a mais não poder, sem cerimônia, até porque velejador não é de cerimônia.

Foi uma loucura geral. O Tatu e o Guile vomitavam antes mesmo da largada em Santos: haviam mergulhado, momentos antes da partida, para examinar o casco do barco e já subiram “chamando o Hugo”. Estavam roxos de frio. A água estava gelada.

Pois no ano seguinte, a convite do Nelson Ilha, lá estava eu, novamente, desta vez a bordo do BCN-Carrefour. Ia participar, outra vez, daquele programaço de índio. E isso que no ano anterior eu decidira: nunca mais vou correr a Santos-Rio. Só se fosse louco. Mas como o Nelson é ainda mais louco do que eu, caiu na asneira de me convidar e, todos sabem, não me convidem porque eu aceito…

Naquele tempo - e nem faz tanto tempo assim -, surgiram grandes oportunidades que agarrei com as duas mãos, como a referida estréia do Tuchaua no Mar, ou o percurso de Parati a Salvador, a bordo do Coral, na companhia do Ernestão Neugebauer e do Joca. Dezenove dias embarcados no Coralzinho serviram-me de grande escola, tendo por professores o velho Capitão “quatro-três-três” e o saudoso “Camarão”. Naquela ocasião, pela primeira vez estive nos temidos Abrolhos, onde afundaram tantos navios dos tempos do descobrimento. O Ernestão confiou a mim as manobras de aproximação e entrada naqueles perigosos recifes. É que, dias antes, eu já dirigira a estreita entrada noturna em Cabo Frio. Acho que ele levou fé no aprendiz de navegador, mas até hoje ele não sabe o quanto me senti honrado.

Lembro, ainda, desses primeiros tempos, o translado do Garimpeiro, de Floripa a Porto Alegre, junto com o Paulinho Parafuso e o Tande. Ali assisti ao primeiro peixe fisgado no corrico, perdido por ser muito grande: rebentou a boca do dourado por causa de seu excessivo peso, combinado com a demasiada velocidade que o barco desenvolvia na ocasião. Estávamos surfando a oito ou nove nós. E não há boca de peixe que resista a tal velocidade. Ficou só a rapala.

Já perdi a conta dos translados que fiz. Foram muitos. Em todas essas ocasiões, eu próprio me escalava de navegador e ia aplicando, na prática, o que aprendera nas inesquecíveis aulas de navegação proferidas pelo Nego Márcio. Era pura diversão. Jamais vi, em minha já longa vida de magistério, alguém ensinar com tanta graça e autoridade. O Nego dava aula com o copo de whisky na mão, eu tocava piano e todos davam grandes risadas. Resultado: no exame de mestre-amador, na Marinha, todos os alunos daquela turma foram aprovados. E com distinção. Jamais vi alguém ensinar com tamanha facilidade. Onde andará o Nego?

Cheguei tarde na vela. Por causa do Rafael, o popular Finha, meu caçula, que tinha oito anos de idade quando começou no Optimist, terminei gostando da coisa. Contaminei-me definitivamente quando, há não mais de quinze anos, entrei pela primeira vez em um veleiro. Foi no Aloha, para assistir, junto com o querido Reneu, a uma regata de que participavam nossos filhos. Achei demais. Para variar, entrei de cabeça... Fiz um breve curso com o Marcelinho Lopes, grande velejador e mestre, grande cara, e me botei a navegar sozinho por aí, dando trombadas a torto e a direito. Foi duro. Mas foi um barato.

Acho que essa coisa de idade não tem mesmo nada a ver. Neste ano de 2.000, já sessentão, estimulado pelos meus filhos Gringo - o Omar, filho do Mar até no nome -, e Rafael, meti-me num curso de mergulho. Adorei. Poucos meses depois, já estava com o log bem respeitável. Além de percorrer Santa Catarina por diversas vezes, mergulhei em junho, com o Rafael, na Barreira de Corais australiana; ele mora lá. Fui também mergulhar com o Omar em Fernando de Noronha, em agosto passado. Ambos são mestres em mergulho.

O Gringo mergulha há uns vinte anos. O Rafael bateu outro recorde: enquanto o pai dele começou aos 60, o filho Canguru mergulha desde os 10. Não sei como o Gringo conseguiu licença para isso.

A Andrea - minha filha querida -, influenciada pelos irmãos e pela minha “coragem”, sentiu-se constrangida e também já fez o curso de mergulho. Obstinada do jeito que é, vai longe. Aliás, em janeiro, iremos todos a Noronha. O Gringo e eu, pela segunda vez.

Agora só falta mesmo a Magra concluir seu curso de mergulho e todos nós levaremos o Aurélio para mergulhar também. Não foi por acaso que ele herdou o nome do meu inesquecível pai. Só espero que não abuse de sua enorme resistência, porque o mergulho envolve riscos. É a segunda atividade física onde mais ocorrem acidentes fatais. E exige perfeita saúde. Não por nada, todos nós - os quatro filhos, a Magra e eu - “rengueamos da mesma perna”: somos corredores de rua, amantes do preparo físico…

……………………………………

Para o segundo turno do dia, o Tatu me acordou às seis horas em ponto. A lua minguante vem pela alheta de bombordo. Está lindíssima. Vários navios estão à volta, com as luzes de navegação indicando seus rumos. A noite é calma; não há vento. Se a calmaria pegou os barcos do Rally da ARC, que saíram 47 horas antes de nós, creio que os alcançaremos até amanhã, no máximo. Devem estar boiando, parados, sem vento. Paradoxalmente, estamos na rota dos grandes ventos e das fortes correntes. Ou será que erramos o caminho das pedras?

A ARC não é, de fato, uma regata propriamente dita. Ao contrário, ela se constitui em uma festiva travessia do Atlântico Norte, unindo o agradável e o útil: ao mesmo tempo em que as tripulações empreendem a travessia, por si só motivo de grande júbilo, fazem-no em companhia de muitos outros barcos o que, convenhamos, é muito bom em termos de segurança. Numa travessia destas, antes mal acompanhado do que só…

Assim, como os barcos da ARC não devem ligar os motores, pois é, evidentemente, uma regata a vela, estamos encurtando em muito a distância que deles nos separa.

Não há vento; seguimos a motor. O Mar está um espelho. A não ser por sua pulsação, nada se mexe. Para muitos, a calmaria é pior do que a tempestade. Não por nada, quando Colombo aproximava-se do Caribe, nos últimos dias da primeira travessia, enfrentou sério motim a bordo. Causa primeira: a exasperante calmaria.

Quanto a mim, prefiro a calmaria. Detesto tempestades!

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São oito horas da manhã. Faz tempo, o dia amanheceu. Já fiz minha ginástica diária. Terminou o meu quarto. Está na hora de chamar o Graeff.

Olho, mais uma vez, a carta. Estamos com a proa diretamente na foz do Amazonas, que fica na linha do equador, paralelo zero, do outro lado do Atlântico. A distância em linha reta ate lá é de, precisamente, 2.515 milhas. St. Martin está na altura do paralelo 18. Saímos da Gran Canaria, no paralelo 28. Nosso rumo é sudoeste - 227 RM.

………………………………..

Acordo-me às 10h e ponho o corrico n’água. Hoje tem que dar certo. Se contados desde as Baleares, faz mais de quarenta dias que estamos no Mar, e nada de peixe. Em compensação, é a primeira vez que me encarrego da tarefa de lançar o corrico. Cansei de recolher a linha d’água sem nada. Estamos loucos por um peixe. Chega de frango e carne de vaca, que só raramente eu como. Hoje tem que dar peixe.

O tempo corre, quase batemos em um enorme carretel de madeira boiando neste alto-Mar. E então, quando menos se esperava, bimba! O Pé-quente embarcara outra vez no Haaviti e nós pegamos um enorme dourado. Como não sou pescador, não vou dizer que ele tinha quase um metro de comprimento e mais de dez quilos. Mas que ele tinha… No momento em que foi fisgado, nossa posição era 26.11.6N e 017.15.7W.

O peixão lutou bravamente; até voltou para a água, embora fisgado e já em cima do barco. O Tatu despejou vodca nas guelras, a fim de acelerar a morte do pobre bicho. Em silêncio e comovidos, assistimos à verdadeira procissão de peixes que se seguiu: era o cardume que acompanhava nossa presa. Íntima e silenciosamente, ficamo-nos perguntando: será que o peixe existe mesmo para ser fisgado? Ou seria ele como as gaivotas, que não servem de alimento ao bicho-homem? Às vezes é bem difícil separar o certo do errado, o bem do mal, o necessário do supérfluo. Melhor seria se fôssemos maniqueístas. Esses não têm dúvidas…

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