Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(7º capítulo)

Com o Caribe na proa

Quinta-feira, 23 de novembro (coordenadas das 22 h GMT de quarta-feira: 25:37 N e 017.54 W)

O Tatu me acorda à zero hora para o meu quarto. O tempo é bom, o céu é maravilhoso e a constelação de Orion está aqui sobre nossas cabeças, ligeiramente voltada para o nordeste. O vento começa a se manifestar vagarosamente. Estamo-nos aproximando da zona em que há bons ventos.

Pelas informações de SSB, há ventos de nordeste, com 10 a 15 nós de velocidade, nas coordenadas 24 N e 023.5 W; ventos de leste-nordeste, com 20 nós de velocidade, em 20 N e 020 W, e, estranhamente embora, ventos de 20 nós na posição 25 N e 32 W, mais acima, pois, do que era de se esperar.

Como se vê, esta última posição não está dentro da faixa da grande curva em que normalmente coincidem ventos e correntes. Ainda que a latitude não fuja do normal, 25 N, a longitude em 32 W - na altura da fronteira entre o Marrocos e a Mauritânia, mas a 900 milhas da costa -, de certa forma não é muito tranqüilizadora. Por que este vento relativamente forte, a meio caminho entre a costa africana e a cadeia montanhosa do meio do Atlântico, a Mid Atlantic Ridge, onde normalmente formam-se os furacões? Se não chega a ser muito forte, também não é uma simples brisa. Mas é mui sospechoso.

De qualquer forma, dentro de mais dois dias estaremos entrando na região onde se situam os bons ventos noticiados. Possivelmente, ao apanhá-los, desligaremos os motores. Afinal, não dispomos de combustível nem para a quinta parte da travessia. E nenhum de nós pretende ficar boiando numa calmaria que não se sabe quanto pode durar. Se a coisa continuar assim, arribaremos para o Arquipélago do Cabo Verde, a fim de reabastecermos.

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Levanto-me às 6 horas. Antes, pelas trës e alguma coisa, entrou o que parecia ser vento suficiente para ir só a pano. Não era. Ficamos só no querer.

A lua está, outra vez, pela alheta de bombordo. Nosso rumo é o mesmo de 230 graus. Nossa proa ainda é a foz do Amazonas, 2.371 milhas distante. Agora, estamos a 7-7,5 nós de velocidade - uma brisa de norte-nordeste está ajudando. Ainda assim, ela não consegue armar o grande, que deve permanecer cassado. Talvez seja o comecinho do vento que, espero, teremos amanhã. A genoa continua enrolada. Foi aberta pelas trës horas, mas não deu pé. Ademais, estamos adentrando a corrente. Tudo vai melhorar.

Surgem os primeiros sinais da aurora boreal, eis que estamos no hemisfério norte. O sol vai-se levantar no horizonte daqui a pouco, às 07h 36min. Em ponto. Logo mais, à tardinha, ele vai-se pôr às 18h 25min, menos de onze horas após haver nascido. Os dias são bem mais curtos que as noites. É quase inverno. Daqui do alto-Mar, pode-se conferir, em minutos, a precisão dos horários previstos. Como nas marés, não há erro. A mecânica celeste é perfeita. Imperfeito é o homem…

Estamos começando a alcançar algum barco da ARC. Pelo nosso bombordo, já pelo través, há uma longínqua luzinha que aos poucos vai ficando para trás. Pode ser um dos competidores do Rally, andando lentamente, se comparado a nós, que estamos sendo ajudados pelos motores. Está muito distante para perceber-se a cor da luz, provavelmente verde, de boreste, portanto. Seu rumo deve ser paralelo ao nosso. Daqui a pouco, quando amanhecer, já não o veremos mais por causa da luz do dia. É por isso que prefiro velejar à noite.

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Como é linda a alvorada! É vida. É o prenúncio de um novo e bom dia. É o começo, outra vez; é o recomeço. É o avesso do avesso, como diria o Caetano. O avesso é o que não é bom; o avesso do avesso é o que há de bom. Estes dias têm sido - como tudo deve ser - o avesso do avesso. A vida é boa; é maravilhosa. Há que se curtir a vida, porque é peça de um ato só. Não tem ensaio, nem intervalo. Em seguida, vai-se embora.

Então, por que não podemos aproveitar, em sua inteireza, o milagre da natureza que nos deu inteligência para pensar? Será que não podemos concluir como a filosofia chinesa, que pergunta: teu problema tem solução? Então, por que te preocupas? Teu problema não tem solução? Por que te preocupas?

Vejo gente de pé-no-chão, ou andando com um dockside aos pedaços nos pés, com uma bermuda que melhor estaria na lata do lixo, envergando uma camiseta já transparente de tão batida, a barba por fazer, ou usando um vestidinho gasto; muitos com os cabelos desgrenhados, alguns com as unhas encardidas de graxa e o andar um pouco mais lento que o da tartaruga. Mas todos com a cara mais feliz do mundo! São os velejadores; os desajustados. São os rebeldes que dizem não ao que o sistema lhes quer impor.

Essa raça nunca será extinta. Ao contrário do que se pensa, é cada vez mais numerosa. Andam pelos quadrantes do mundo, muitos deles trabalhando em biscates, fazendo reparos aqui e ali. Todos eles, com dinheiro ou não, levando a doce vidinha do Mar salgado. Têm tudo o que precisam: teto, natureza, peixe abundante, boa leitura e carinho, talvez. Até para os navegadores em solitário, que recebem sempre a atenção de seus circunstantes, os outros velejadores.

O velejador do mundo nunca está só. Ou ele está consigo mesmo, convivendo bem com seu espelho, ou em companhia de outros velejadores, nos portos, baías e abrigos a que todos chegam. Ou, até mesmo, durante as navegadas, trocando idéias, via rádio SSB. Formam todos uma comunidade solidária, amiga, sem mistérios, simples, despojada. Feliz.

Assim é a vida do Mar. Não é refinada, não tem roupa da moda, os souvenirs ficam onde estão, na própria natureza. Não se vai ao cabeleireiro, raramente se lê jornal. Televisão? Só se for como caixa para depósito das frutas. Mas, nessa vidinha, tem-se felicidade garantida. E tempo a se perder de vista.

A propósito, é marcante, entre os velejadores, o gosto pela leitura. Afinal, tempo é o que não lhes falta. Disso resulta um generalizado e ótimo nível cultural. Em muitas marinas, encontram-se prateleiras e mais prateleiras de livros à disposição dos navegadores, para serem trocados por outros livros. Não se trata, veja-se bem, de retirar um livro para, depois, trazê-lo de volta. Nada disso: leva-se o livro e, em um outro porto qualquer, ele é deixado para outro leitor. É um rodízio sem parar. É a difusão da cultura em geral que transcende a leitura náutica, como se poderia supor. Inclui-se aí o que, para certas pessoas, denomina-se cultura inútil. Como se isso existisse...

Os atenienses, como os romanos, preocupavam-se grandemente com a educação do povo em geral. Regidos por leis escritas, o povo deveria saber ler para conhecê-las. Não é por nada que tantos e tantos institutos jurídicos do direito privado, no mundo contemporâneo, são idênticos aos adotados pelos romanos. Mas, a par do enfraquecimento geral do Império, o estudo das leis foi sendo deixado de lado. E a tal ponto que Cícero, o grande tribuno, proferiu a célebre sentença segundo a qual Nós aprendemos a lei em nossa adolescência, mas os jovens de hoje já não a aprendem mais. E sabe-se o que ocorreu: o grande Império desmoronou…

No século XVIII, a Alemanha era o único país do mundo que possuía uma política educacional. Aos cinco anos de idade, as criancas deveriam ir, obrigatoriamente, à escola. Frederico, o Grande, obrigou as crianças da Prússia a freqüentarem a escola dos cinco aos treze anos, pelo período de seis horas por dia. Assim, todos os germânicos eram alfabetizados. E veja-se até onde chegou a Alemanha, a despeito de duas vezes ter sido completamente devastada pelas guerras mundiais. Não me dou por suspeito para falar: eu não sou alemão nem de longe. Apenas gosto de ler…

Mais adiante, não muito depois, surgiram os rígidos regimes educacionais da Escócia, da Holanda e da Suíça. O estudo principal era - e em certa medida ainda é - o das ciências humanísticas, com especial preeminência para a filosofia, muito embora, para alguns espíritos práticos, a filosofia seja a ciência tal sem a qual o mundo seria tal e qual…

Muitos povos foram e continuaram sendo dominados por sua falta de conhecimento. Não foi por nada que, na Corte de Luis XVI, pouco antes da Revolução Francesa aniquilar o regime vigente, dizia-se que todo homem que olha um pouco adiante de sua terrível rotina diária não cumpre seu trabalho com dedicação e paciência. O conhecimento desperta. E contraria certos interesses...

Na Inglaterra, nos primeiros anos do século XIX, pensava-se, na intimidade da realeza, que dar educação ao povo hindu seria ensiná-lo a exigir seu próprio quinhão. A educação da plebe não interessava aos dominadores. Até hoje, aqui e ali, tanto na própria Corte, quanto na ex-Colônia, ouvem-se discretos lamentos de que a Inglaterra perdeu a Índia porque educou seu povo…

As Cortes espanholas entendiam ser muito perigoso ensinar os mexicanos a ler. Mais cedo ou mais tarde, estes despertariam para sua independência. Era preciso mantê-los ignorantes. E na própria Corte, poucos eram os que sabiam ler e escrever. Por paradoxo, em que pese seu mais recente crescimento, a Espanha de hoje ainda tem de se esforçar para atingir os índices exigidos pelo desenvolvimento. Não é mais nem sombra da potência que foi no passado, inquestionavelmente.

Dessa superficial e breve reflexão, verifica-se que os países que adotaram o ensino como política de Estado desenvolveram-se, logrando posição de destaque no concerto geral. A maioria deles não possui colônias, de há muito. Os que as possuíam, renderam-se às suas independências e autodeterminação. De certa forma, em alguns casos, contrariaram o velho princípio bélico segundo o qual, terra conquistada pela força, somente pela força será reconquistada.

Os mais resistentes ainda estão, aqui e ali, tentando sem sucesso manter o pretérito apogeu. Sua prosperidade vinha das colônias. O exemplo de Portugal, em relação ao Brasil, é emblemático. Antônio Ribeiro Sanches dizia, na Corte, que manter escolas nas remotas províncias redundaria em escassez de trabalhadores no campo. Não era, apenas, um escravagista. Era, como os de seu tempo, profundamente retrógrado. Certamente, para ele, as letras constituíam-se em cultura inútil…

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São 07h 38min. Um fiapo de luz entra na cabina onde estou escrevendo: o sol nasceu há 2 minutos atrás! Já está sendo um belo dia. Gosto de mim, posso ficar sozinho, porque isso não pesa. Amo os meus amores e sei que eles me amam.

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O vento, bem devagar, vai dando mostras de estar presente. Já se formam os primeiros carneirinhos na superfície do Mar. O dia está claríssimo e cada vez mais quente. Na marcha para o sudoeste, vamos alcançando latitudes mais próximas da região equatorial, embora ainda situados no paralelo 24.21 norte. A proa continua apontada para o outro lado do Oceano, na foz do Amazonas, 2.316 milhas distante.

O almoço está na mesa, na coberta externa, para comemorar o lindo dia. Foi para a panela, devidamente ensopado, o restante do dourado que fisgamos. Junto com um pirão dos deuses. Não deixamos nem vestígios para o Tatu limpar. Ele foi o voluntário da vez para lavar a louça.

São 16 horas. O vento começa a aumentar. O Mar fica mais encrespado. O melhor era dar o jaibe, porque encurtaríamos o percurso, subindo a proa para as latitudes do Caribe. No entanto, isso nos afastaria da rota dos melhores ventos. O caminho seria mais curto, mas andaríamos mais devagar.

O motor de bombordo é desligado. Ao invés do jaibe, orçamos mais vinte graus a fim de melhorar o vento aparente. Catamarãs, não esqueçamos, não andam bem de popa rasa. Aliás, nenhum barco anda bem de popa. Com a orça, encompridamos ainda mais a nossa rota. Estamos agora com a proa lá pelo Rio de Janeiro. Nem sei bem para onde, precisamente, porque, desligado também o outro motor, estamos somente a pano!

A vida mudou. O vento mudou. O barco mudou. Tudo mudou. Estamos fazendo o que mais gostamos: velejar, somente velejar, sem o barulho de máquinas. Assim, podemos ouvir o Mar!

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O jaibe teve que ser dado. O barco irá melhor se amurado a bombordo. Vamos bem de cara para o sol. A proa subiu: St. Martin está, a 2.445 milhas, bem na nossa frente. Nossa velocidade é de 6 nós. Estamos a 1.044 milhas de Gibraltar. De Arcipres Grande, na costa da Mauritânia, estamos a pouco mais de duzentas milhas. Tudo isso em linhas retas. O rumo mudou para 260 graus. Mas esse certamente não será, como antes dito, o rumo até nosso destino.

Daqui a pouco, o sol vai-se pôr. Às 18h 31min. Seria a hora em que Cristóvão Colombo tomaria sua posição no planeta, utilizando-se do sextante. E nós aqui, com toda esta facilidade do GPS, que fornece nossas posições na hora que bem entendermos. Instantaneamente. Precisamente.

O vento parece que firmou de vez. Vamos, paulatinamente, aumentando a velocidade. Os alísios não costumam enfraquecer durante a noite, como ocorre em outras latitudes. São constantes, dia e noite. Ou devem ser. São um dos mais desejados fenômenos que o velejador ansia por encontrar. São os tais trade-winds, ventos que os mercadores aproveitavam para levarem suas mercadorias a remotas plagas. Daí seu nome. Como os árabes, por exemplo, que usavam as monsões em seus deslocamentos até a Índia. São ventos encontrados em vários outros lugares deste planeta água.

Sexta-feira, 24 de novembro (coordenadas das 22h GMT de quinta-feira: 25.58 N e 020.17 W).

Sinais da alvorada. Outro dia raiando em nossas vidas. A lua minguante já nasceu. Hoje, ela é mais branca do que ontem. Aliás, é um misto de branco e cinza. O estreito anel inferior é branco; o resto dela é cinza. Amanhã, ela nascerá junto com o sol. Será a lua nova que vai, inteira como uma bola, acompanhar ao longo do dia o astro-rei em sua viagem pelo céu. Até ficar lua crescente. A partir de então, começará a nascer ao meio-dia, e assim sucessivamente.

O lusco-fusco do alvorecer dá à lua minguante, quase nova, menos contraste do que em noite fechada. Mas torna-a ainda mais bonita: ela domina o entorno das constantes nuvens destas latitudes. Aliás, a presença das nuvens confirma que estamos na rota certa, embora andando ainda muito para o norte em relação a St. Martin. Quando atingirmos o paralelo 20 N, negociaremos com o vento a fim de apontarmos para o oeste puro. O que até aqui foi uma progressão para o sudoeste, será um caminho para o oeste, embora, ainda, acima de St. Martin. Depois, buscaremos tirar essa diferença de dois graus na latitude, rumando para o poente até o destino final. Então, teremos percorrido o famoso arco dos ventos e correntes do Atlântico norte-equatorial.

A velocidade não baixa mais de sete nós. Trata-se, agora sim, de um barco a vela.

No quarto passado, o da meia-noite, não consegui escrever. Havia ficado quatro horas na frente do laptop e isso me provocou um certo mareio. Não foi bem um enjôo, mas algo semelhante. Nesses casos, pára-se imediatamente o que se está fazendo e busca-se o ar puro do Mar. Bem de frente para o vento. E troca-se a atividade. Foi o que fiz: fui brincar de velejar, timoneando, a pensar no que estariam fazendo, naquele momento, os meus amores. E o que fazer com a minha saudade.

Dizem que a saudade aumenta na proporção da distância que se está do bem querido. Quanto mais longe, mais falta do bem amado se sente. A minha tem aumentado, mas não por isso. Na verdade, quanto mais nos afastamos da África, mais nos aproximamos do Novo Mundo. E se considerarmos o atual rumo do barco, para sudoeste, estaremos indo diretamente para o Brasil, embora muito longe de casa. Nossa proa está, agora outra vez, na foz do Amazonas. De qualquer forma, ela aponta para casa.

Mas, logo ali, virá outra troca de bordo, e a proa vai subir para as Antilhas. Não tem remédio. Vai demorar muitas semanas para eu rever os meus amores. Ah a saudade! Sobre ela, diz o grande Chico:

 

Oh pedaço de mim
oh metade afastada de mim
leva o teu olhar
que a saudade é o pior tormento
é pior do que o esquecimento
é pior do que se entrevar.

Oh pedaço de mim
oh metade exilada de mim
leva os teus sinais
que a saudade dói como um barco
que aos poucos descreve um arco
e evita atracar no cais.

Oh pedaço de mim
oh metade arrancada de mim
leva o vulto teu
que a saudade é o revés do parto
a saudade é arrumar o quarto
do filho que já morreu.

Oh pedaço de mim
oh metade amputada de mim
leva o que há de ti
que a saudade dói latejada
é assim como uma fisgada
num membro que já perdi...

Desligo a luz de navegação e vou tentar dormir. Será que consigo?…

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São dez da manhã. A noite toda passamos dialogando com o vento. Ele torce de um lado, a gente vai junto; ele volta, a gente retifica. Vamos regulando o rumo para que o vento entre sempre no mesmo ângulo em relação às velas. Do contrário, a vela que estiver armada por avante desarma, paneja e perde-se velocidade. Durante a noite, ali está a genoa, em asa-de-pombo; de dia, vamos com o balão assimétrico. Decididamente, não se veleja à noite com ele porque, além de outras complicações, o balão é muito mais exigente do que a genoa, quanto ao ângulo de recepção do vento. Desarma pela mínima variação e arrisca-se a enrolar-se no estai. O balão é um temperamental. Mas ajuda muito.

O céu vai ficando nublado. O Mar está barbudo. Ao menos, assim parece: crespo, com a barba à mostra. Até ontem, quando o vento o arrepiou, estava bem escanhoado. Era muito bonito, estava espelhado. Refletia o azul do céu. À noite, ele e o céu pareciam uma coisa só; tudo era um único céu. Não se divisava o horizonte. Eram estrelas por cima e por baixo, refletidas na água. Parecia que, como os astronautas, navegava-se no espaço, por entre as estrelas.

Ainda assim, prefiro o Mar como está agora, com a barba por fazer, toda eriçada, embranquecida em virtude da alvura das cristas das ondas, quando estas quebram com o vento forte na parte de cima. A barba branca denuncia que é bem velho. E, cada vez, em situações como esta, fica mais carrancudo, menos amistoso. Mas mais velejável. Os ingleses dizem que o Mar está de mau humor; moody, dizem eles. Não acho que seja para tanto. Ao menos, agora, não é. Ele apenas dança com o vento que tanto almejávamos. Ele ainda não está muito violento.

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É interessante o efeito dos ventos no Mar. Quando são permanentes, persistentes como os trade-winds, provocam as conhecidas e sempre desejadas correntes oceânicas, verdadeiros rios que correm dentro dos mares. Essas correntes formam-se em qualquer região onde a superfície da água seja constantemente varrida por ventos que rumem sempre na mesma direção.

Essas enormes massas d’água, que se deslocam dentro dos oceanos, derramam-se em direção às margens continentais e, daí, são necessariamente refletidas para uma outra direção. Não podem, obviamente, entrar terra adentro. E o novo rumo será o dos ventos prevalentes na nova região atingida.

É isso o que ocorre com a Corrente Norte-equatorial, que se move de leste para oeste, atravessando o Atlântico em direção à América Central. Segue o curso dos ventos alísios que sopram nesse sentido, entre os paralelos 10 N e 25 N, conforme a época do ano. Assim, esse corredor de vento, que tem mais ou menos a largura de 15 graus, ou novecentas milhas marítimas, cria uma cabeça d’água do outro lado do Atlântico, no Golfo do México e no Mar do Caribe.

Essa cabeça emerge na área do Estreito da Flórida, ao norte de Cuba, escapa para o nordeste e, com a denominação de Corrente do Golfo, a Gulf Stream, vai colidir, na região da Nova Escócia, com a Corrente do Labrador, que vem do norte.

A Gulf Stream é das mais velozes correntes do planeta. Recebe toda a água da larguíssima Norte-equatorial e mais um pouco da Corrente do Labrador. Ainda assim, porém, mantém-se ao longo de seu curso com a largura de cerca de sessenta milhas. Desse encontro das duas correntes, resulta que a do Labrador divide-se em duas: uma continua para o sul, esprimida entre a Gulf Stream, que sobe, e a costa norte-americana; a outra é envolvida pela própria Corrente do Golfo, seguindo com esta na direção leste.

Essa junção de correntes, combinada com a nova direção para o leste e a força dos ventos predominantes da região, determina a nova designação do trecho norte do grande anel: Corrente do Atlântico Norte. E com tal volume líquido escorrendo velozmente por um rio tão estreito, suas águas ainda chegam quentes à costa da África. Daí o clima constantemente ameno dos Açores e das Canárias. Mesmo no inverno.

A Corrente do Atlântico Norte, por sua vez, vai ter o mesmo destino da Norte-equatorial, mas no sentido inverso, isto é, de oeste para leste: vai chocar-se do mesmo modo contra um continente, a Europa. Por isso, quando lá chegar, após atravessar o Atlântico, seguirá necessariamente um outro curso.

Correndo para leste, impulsionada pelos ventos dominantes naquela região, ao encontrar a massa continental européia, a Corrente do Atlântico Norte irá, também, dividir-se: uma parte correrá para o norte, em direção à Escócia, e a outra se desviará para o sudeste e depois para o sul, formando a Corrente dos Açores, mais para fora a Corrente Portuguesa e, finalmente, a Corrente das Canárias.

Daí em diante, começa tudo outra vez: a Corrente das Canárias seguirá para o sudoeste, alimentando novamente a Corrente Norte-equatorial, que correrá para o oeste. E com isso, completa-se o ciclo que faz com que se navegue da Europa à América, e vice-versa, sempre com ventos e correntes favoráveis. O problema é a escolha da época do ano para tal empreitada.

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O vento vai ficando mais forte, o Templo bravio está mais encrispado e o barco dá sinais de que pretende chegar logo. O Tatu gritou lá de fora que estamos fazendo dez-onze nós. Credo! Hoje nem vamos levantar o balão assimétrico. Nem devemos. Como se diz no meio vélico, vai que é um dodge. Vai como um tanque …

Já passa das 15 horas. O almoço está servido. O vento continua muito bom. Andamos 94 milhas entre as 21h de ontem e as 10h da manhã de hoje. A média é muito boa, boníssima. E vai melhorar. Damos mais um jaibe, viramos de bordo e agora nosso rumo é 275, bem oeste. Estamos com o Caribe na proa. Não vamos mais para o Brasil…

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