Do Mediterrâneo ao Caribe
Quatro mil milhas, além
de muitas histórias
Danilo Chagas Ribeiro

1º Ago 2007
"Q
uatro Mil Milhas Além". O relato da travessia do Atlântico em um veleiro, desde o Mediterrâneo até o Caribe.

O Comandante Aderbal Torres Amorim, do Veleiros do Sul, de Porto Alegre, conta a viagem ora de forma divertida, ora bem descritiva, sem prejuízo de seu talento poético.

Ao narrar a travessia, Amorim intercala passagens marcantes de sua vida embarcada. É uma fórmula muito bem dosada que prende o leitor.

O Comandante Molecão descreve o que foi encontrando nas escalas da viagem com um ponto de vista muito interessante, fruto das associações que sua ampla cultura e significativa experiência de vida permitem estabelecer.

A obra, cuja edição está esgotada e os direitos doados a uma instituição de caridade, será apresentada em capítulos pelo Popa, a partir de Setembro próximo.

 

Trechos de "Quatro Mil Milhas Além"

No imenso Mar, é impossível não mostrarmos às escâncaras tudo o que nos vai por dentro, não revelarmos nossos segredos. No misterioso Mar, somos carne viva. O Templo oculto é revelador de nós mesmos; ele faz com que, finalmente, alcancemos a grande realização do “conhece-te a ti mesmo”. O Mar mostra-nos o que somos, quem somos, de que tamanho somos: somos nada. Nele, encontramos respostas para questões irrespondidas e ainda para tantas outras indagações que nem sabíamos existir.

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Muito embora a travessia propriamente dita se iniciasse em Gibraltar, o trecho do Mediterrâneo, que se prenunciava o mais fácil, inesperadamente, foi bem desconfortável. O que pensávamos deveria ser uma só perna Majorca-Gibraltar, em verdade envolveu stops ao largo de Ibiza e em Denia. Ocorre que o vento era oeste - bem de proa, pois - e decididamente catamarã não anda no contravento. Bate muito, joga tudo o que pode e não vai em frente.

Penso como os franceses: barco a vela não foi feito para andar em contravento; se os navegantes da velha Gália encontram vento de proa, simplesmente arribam, viram de popa e nem estão aí para a perda de tempo que isto vai impor. Mas os franceses é que são assim…

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Em Lanzarote, o inferno continuou ininterruptamente por mais dezenove dias e, após, com freqüência cada vez menor, ainda assim devastadora, por mais seis inesquecíveis anos. Todos os campos restaram calcinados. Com eles, sucumbiram os animais e toda a vegetação, cultivada ou natural. Os arredores transformaram-se em dezenas de grandes elevações cercadas de vales. Alguns poucos, hoje, apresentam-se verdejantes, fruto do trabalho insano daquela gente corajosa que ainda se dá ao luxo de produzir… vinhos!

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A propósito, em Las Palmas de Gran Canária, visitamos também a Casa de Colombo onde se encontra uma réplica do interior da Niña. Esta caravela e mais a Santa Maria e a Pinta levaram a esquadra de Colombo ao “descobrimento” da América. Estive dentro da réplica e fiquei pensando naqueles destemidos marujos que faziam do Mar a sua morada. Quantas privações, quantos sacrifícios, quanta dor sofriam. Lembrei-me do grande Fernando Pessoa, dizendo:

Oh, mar salgado,
quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos,
quantas mães choraram
quantos filhos em vão rezaram
quantas noivas ficaram sem casar
para que fosses nosso oh mar!

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Nosso ambiente, como sempre, não pode ser melhor. Essa turma é mesmo sensacional. Em mais três ou quatro dias, estaremos findando esta convivência fraterna que tornou possível enfrentar as dificuldades da dura velejada. Já estou sentindo falta desses alemãezinhos, muito antes de nos separarmos. Para eles improviso, já saudoso, perguntando o que deles devo dizer,

se não que são mucho loucos
com eles estoy quase rouco
de tanto dizer bobagem
e que esta camaradagem
deixe bem mais do que pouco.

Comendo franco ou peixinho
tenho que falar bem baixinho
pro Graeff não me escutar
ele é um grande cozinheiro
e também bom companheiro
mas a carne fica crua
mais feia que gorda nua
mas outra chance vou dar.

Vou dar-lhe uma nova chance
espero que não desmanche
o conceito já firmado
de um cabra acostumado
a enfrentar desafio
e é bem curto o seu pavio
por isso vive enrolado.

E tu, oh Tatu, sai da toca
larga logo essa minhoca
porque não vai adiantar
o Haaviti tá maneiro
ele não é caborteiro
na mão não vai nos deixar.

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Não há música mais harmoniosa do que o som do Mar. É por isso que, no Molecão, quando estamos velejando, a Magra e eu não ouvimos habitualmente música. Ou melhor, só escutamos a música das águas. E apesar de tagarelas, falamos mais com os ouvidos. Só escutamos o harmonioso idioma que os pilotos de jet-ski nem sabem que existe...