A lancha e o Papa
É assim que se criam as lendas
Nelson Ferreira Fontoura
Com certeza todos conhecem o Papa-Móvel. O que talvez não saibam é que o Papa-Móvel tem uma versão aquática, o Formol 5, lancha do laboratório de Ecologia Aquática da PUCRS. Como trabalho com ecologia de peixes e crustáceos, o uso de barcos sempre foi uma necessidade. Hoje tenho quase uma frota: quatro barcos em uso. Nosso primeiro barco foi um pequeno bote de alumínio, equipado com um valente motor Johnson 3.3. Quem o batizou foi um antigo orientado de mestrado. Na época, estávamos envolvidos em um grande programa de amostragem, sendo que todo o peixe que chegava ao barco acabava no Formol a 4%, uma substância conservante para que se analisassem os peixes posteriormente em laboratório. Daí saiu o nome do primeiro barco: o bote passou a chamar-se Formol 4. Uns dois anos depois compramos uma lancha Mistral 500, o segundo barco da frota, e para manter-se a tradição, registramos como Formol 5. Os Formóis 6 (já em pedaços) e 7 são pequenos botes infláveis, e nunca chegaram a ser registrados. Já trabalhamos muito com os Formóis, e também já passamos muito trabalho. Quando o dia é bonito, céu claro e temperatura amena, todos invejam a nossa atividade, amostrando água e peixes: "pescando", como todos costumam dizer. Só que nossas amostragens são organizadas com meses de antecedência, 12 meses por ano, em uma agenda apertada: não dá para mudar data. Coleta marcada é coleta feita: só cancelada se não houver condições de segurança. Um detalhe, apenas se cancela a coleta na hora, já no barco e com tudo pronto para sair, pois não haverá possibilidade de outro agendamento no mesmo mês. De qualquer forma, não foram muitas as coletas canceladas, talvez quatro ou cinco em 18 anos de PUC, redundando em 34 artigos científicos publicados neste período. Naqueles dias de frio e chuvisco também estamos na água, gelados até os dentes e tirando peixe da rede. Não sei se foi pela idade já mais avançada, mas depois de tomar muita água no lombo, decidi botar uma cabine no Formol 5. A operação foi realizada no Estaleiro Mahler, e ficou bem feita: mas o barco ficou parecendo um Papa-Móvel, com uma grande cabine envidraçada. A cabine acabou sendo muito útil, e já nos livrou de muita enrascada. Até já dormi nela, certa vez que fiquei preso na Ilha do Furado (Lagoa do Casamento), com a chegada de uma frente fria. O único senão é a perda de estabilidade, com a elevação do centro de gravidade, pois o Formol 5 não tem lá uma grande boca. Se ganha por um lado e perde-se por outro: mas em 11 anos de operação nunca tivemos qualquer acidente. Depois que terminei de construir o Tiza em 2004, o meu veleiro particular, o coitado do Formol 5 acabou ficando meio abandonado. Os projetos em curso estavam utilizando ou o Tiza, ou os botes do laboratório. Estacionado embaixo de uma árvore na PUC, o Formol 5 acabou virando um verdadeiro ecossistema. Como neste ano entrou dinheiro novo de um projeto, decidi fazer uma reforma e o trouxe para o Jangadeiros. O pobre Formol 5 virou atração, com aquele jeito esquisitão e todo encardido. Comentei com alguns marinheiros do clube e o pessoal da manutenção que o barco era um Papa-Móvel aquático. Sempre falei isto em tom de brincadeira, em função da aparência do barco, mas a história acabou tomando rumo próprio. É impressionante, mas descobri que a principal diversão no clube, mais do que a própria navegação, é o ti-ti-ti... Pois bem, um dia estava caminhando no clube quando veio um associado me perguntar se era verdade que o Papa já havia andado na lancha. "Até botaram espuma de poliuretano para ele não afundar", me disse o associado. É em parte verdade: colocamos espuma para nós não afundarmos (e ficou um serviço pra lá de sem-vergonha). De qualquer forma, achei muito curioso circular uma história de que o Papa teria andado em um "monstrengo" daqueles... Mas é assim que se fazem as lendas: para uma brincadeira virar verdade, basta passar por duas ou três bocas. A propósito, estou reformando a lancha para emprestar ao Hugo Chaves. Ele quer subir o Orinoco para negociar com as FARC. |
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