Açores: revendo as Descobertas
Antes das velas latinas
Daniel de Sá

Num livro a publicar brevemente, da responsabilidade de dois doutorados em História pela Universidade dos Açores, consta o seguinte: “as primeiras ilhas dos Açores descobertas foram as que correspondem aos actuais grupos oriental e central (a primeira ilha descoberta foi Santa Maria), em 1427.”

Para além daquele inconsequente “actuais grupos oriental e central” (naquele tempo as ilhas já eram orientais e centrais...) a data única para o descobrimento das sete afigura-se-me um erro grave. E o pior é que isso parece fazer parte das “correcções” previstas para emendar Gaspar Frutuoso. Ora, se nada muda de essencial caso se acredite nas malvas tão grandes que nelas se penduravam bois para esquartejar, ou no homem que, quando a mulher dava à luz, ficava ele de seios inchados e cheios de leite com que alimentava os filhos, continuando a mãe seca como virgem impúbere, o mesmo não se pode dizer de ter sido uma apenas, ou sete, a ilha ou ilhas descobertas em 1427.

Esta versão nova e extravagante resulta com certeza da leitura restrita do mapa de Gabriel de Valseca (que então se escrevia Valsequa, que vem a dar no mesmo quanto à leitura da palavra, ao contrário do que por vezes se ouve), que diz que as tais sete ilhas foram encontradas em 1427. (Há quem entenda que deve ler-se 1432.) Mas esse era o costume da época e que sempre respeitámos.

A data oficial da descoberta da América continua a ser 1492, e no entanto Colombo não passou de umas quantas ilhas, e só na quarta viagem poria os pés em “terra firme”, na América do Sul.

Para perceber os descobrimentos é essencial saber algo da náutica do tempo. Ainda não fora criada a vela latina*, pelo que os barcos (barcas) estavam sujeitos aos ventos favoráveis sem poderem defender-se dos contrários. O descobrimento de Santa Maria pode ter-se dado de duas maneiras. Ou como resultado de uma procura intencional ou como consequência de ventos vindos de África, daqueles que ainda hoje trazem até nós gafanhotos da espécie Locusta migratoria ou areias do Saara. Não acredito muito nesta hipótese, porque os navegadores, apanhados por ventos desfavoráveis, provavelmente passariam a navegar em árvore seca, evitando desviar-se muito da rota.

Qualquer que seja o caso, havendo alcançado Santa Maria teriam aproveitado a primeira oportunidade para retornar ao Reino. O máximo que poderia ter acontecido seria S. Miguel aparecer no horizonte, se a visibilidade o permitisse, o que não consta.

Essas viagens marítimas eram feitas por etapas, quer no “mar oceano” quer ao longo da costa africana. Se, a cada ponto mais distante alcançado em uma fossem acrescentadas umas cinquenta léguas na seguinte, a nova viagem já seria tida por muito útil. É que havia que cartografar as costas, os recifes, as correntes marítimas, os ventos dominantes... Por isso até à chegada ao rio Zaire foram dados apenas pequenos passos de cada vez, se bem que grandes desafios para a época.

Nas viagens de descoberta pelo “mar oceano” não se ia em linha recta, obviamente, por não se saber onde se encontraria novas terras, mas em varrimento de quadrantes previamente estabelecidos. E, logo que alcançada uma ilha, sendo o caso que outra não estivesse à vista e muito perto, os descobridores voltavam para o Reino. Então a viagem seguinte tinha como ponto intermédio de referência essa nova ilha, tal como no reconhecimento da costa africana seria a latitude máxima atingida antes. Aí já poderia ser feita aguada e a expedição avançava um pouco mais.

No mesmo livro se diz que o nome da Horta deriva do de Josse van Hurtere. Ora Gaspar Frutuoso dá-o como resultante das muitas hortas que lá havia. E van Hurtere assina as suas cartas como sendo escritas na Villa d’Orta, que era a grafia corrente para “Horta”. (Tenha-se em conta o nome de Garcia d’Orta, por exemplo.)

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(*) Velas latinas são as velas triangulares que utilizamos hoje. Até então usava-se velas retangulares, chamadas de redondas.