O biguá e o dilema do velejador
Entendendo a ave bem conhecida dos navegadores
Nelson Ferreira Fontoura*



Biguás pousados em farolete de sinalização do Rio Guaíba

O biguá ( Phalacrocorax olivaceous ) é uma ave interessante. O gênero Phalacrocorax ocorre por quase todo o mundo, em 35 diferentes espécies, mas com o mesmo projeto básico. Nos documentários, costuma ser chamado de cormorão.

Nós velejadores sabemos muito bem que cada barco é um barco. Não existe solução perfeita: se ganha em conforto, se perde em desempenho, e por aí vai. Todas as soluções de design apresentam aspectos favoráveis e desfavoráveis, dependendo do uso que pretendemos. Com as aves não é diferente.

O biguá se depara com dois mundos diversos: precisa voar e ao mesmo tempo nadar com agilidade para capturar os peixes de que se alimenta. Não é uma solução fácil. Os pingüins, como não se deparam com predadores terrestres na Antártida, deixaram de voar, e as asas são pequenos hidrofólios parapropulsão dentro da água. O biguá das ilhas Galápagos ( Phalacrocorax harrisi ) é similar. Lá também não existem predadores terrestres, e o biguá destas ilhas também não voa, nadando com grande agilidade.

O nosso biguá não poderia se dar este luxo: seria preza fácil dos predadores sul-americanos. Então apresenta asas com uma solução de compromisso: são grandes o suficiente para voar, mas não tão grandes que o impeçam de nadar com agilidade. Vocês já devem ter percebido como o vôo do biguá é nervoso e desajeitado – as asas pequenas o obrigam a batê-las em grande freqüência, para compensar a falta de “área vélica”. Por outro lado, mergulha com maestria, voltando à superfície com um peixe no bico.

O jeito com que flutua também é diferente. Todos lembramos de patos, cisnes e marrecas, que nadam com leveza, deslizando suavemente sobre a água. Nestas aves, a camada de penas é espessa, e impermeabilizada com gordura, forma um colchão de ar que serve como um flutuador, além de isolar o corpo da água fria. Mas patos, cisnes e marrecas não mergulham. Megulham apenas a cabeça e pescoço, para procurar alimento junto ao fundo em águas rasas. Daí a diferença de comprimento de pescoço nas diversas espécies: quanto maior o pescoço, mais fundo o alimento pode ser buscado. Também é por isto que estas aves são encontradas em banhados e não no meio da Laguna dos Patos.

O biguá é diferente. Precisa mergulhar fundo e de forma ágil: não deve ser fácil pegar um peixe no bico à seis metros de profundidade. E para isso o biguá não pode ter muita flutuabilidade, caso contrário não conseguiria vencer o empuxo da água.


Bóia "pintada" pelos biguás

Algumas aves, como os trinta-réis ou os martins-pescadores, resolvem o problema do empuxo através de um mergulho aéreo. No caso do martim-pescador, ele fica empoleirado à beira de um rio, olhando para a superfície. Quando avista um peixe, mergulha rápido e apanha a refeição. Mas ele precisa de poleiros, e não existem muitos poleiros na Laguna dos Patos. Assim, os martins-pescadores são mais abundantes nos arroios do que na lagoa em si. Já os trinta-réis ficam voando sobre a água até enxergarem um peixe, quando mergulham velozmente para capturá-lo. Mas vocês devem concordar comigo: com água turva não é muito fácil enxergar peixe na água. Por outro lado, martins-pescadores e trinta-réis ficam restritos aos peixes de superfície. E os peixes de fundo, como mandis e cascudinhos, tão abundantes na nossa lagoa? Só o biguá consegue capturá-los; mas não sem ônus.

Para poder afundar, o biguá tem uma plumagem rala, não conferindo grande flutuabilidade. É por isso que quando está dentro da água, apenas o pescoço fica para fora. Porém esta plumagem não confere um grande isolamento térmico, e por isso o biguá é preto: para se aquecer mais facilmente ao sol. Reparem: quando o biguá sai da água, frequentemente se volta de asas abertas para o sol, “lagarteando”. A coloração escura ajuda muito nestes casos. Mas sempre existe o outro lado da moeda... Aquele modelito pretinho básico, num calor de trinta e cinco graus ao sol, deve aquecer um pouquinho. Só existem duas soluções: tomar um banho ou arfar como um cão, respirando rapidamente, de bico aberto, para perder calor através da respiração.

Este é o biguá, uma aula para nós velejadores. Afinal, não existe solução perfeita, como não existe barco perfeito ou ave perfeita: depende da finalidade, do uso, e do gosto do freguês.

Me disse o Danilo, que convive por estas águas há mais tempo, que tem a impressão de que os biguás estão aumentando em número. Não tenho elementos para avaliar tecnicamente, mas uma coisa é verdade: sutis alterações em taxas de natalidade ou mortalidade podem redundar, a longo prazo, em modificações profundas nas populações naturais. Segundo me consta, o principal predador do biguá é o jacaré-do-papo-amarelo (Cayman latirostris). Mas não na fase adulta, onde o biguá é suficientemente ágil para evitar qualquer predador. É na fase jovem, ainda no ninho, que o biguá é especialmente vulnerável. Os biguás fazem ninhos em grandes aglomerações, sobre arvoretas localizadas em banhados. Os jacarés adoram esta combinação: é como fast-food sazonal. Sempre tem algum filhote afoito que cai do ninho direto para as mandíbulas do predador. Bem, os jacarés não são mais tão abundantes, e talvez por isso alguns biguás a mais consigam sobreviver a cada ano. Isto já seria suficiente para um aumento gradativo e continuado da população.

Fazendo um paralelo, tenho observado pelos trapiches do Jangadeiros, o aumento de outra população. Uma população de barcos: o Van de Stadt 29 (ou 31/32 de saia nova...). Não é exatamente a minha praia, mas parecer ter uma grande vocação para as águas rasas do Guaíba e Laguna dos Patos. Uma ave bem adaptada para as circunstâncias locais. Quem sabe o biguá de resina de polyester... Falta pintar de preto!
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(*) Nelson Fontoura é biólogo e professor titular da PUC.

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De bico aberto. O calor faz com que os biguás respirem com dificuldade.
Observe um dos biguás nadando. Só o pescoço e a cabeça fora d'água..

Danilo Chagas Ribeiro

 

Bico aberto, mesmo voando

Danilo Chagas Ribeiro

 

Bando de biguás sobre o Rio Guaíba

Danilo Chagas Ribeiro

 

Um bando de biguás pousado na escada para peixe da barragem do Rio Taquari espreita as vítimas (Fev 2004)

Danilo Chagas Ribeiro

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