Conta todas, vovô
Jorge Vidal

A importação do Arpège


Largada da regata Troféu Seival, cais do porto de Porto Alegre, em 1972, em que o Arpège se acidentou, vendo-se ainda o Orion II e o Coral.

No dia 4 de junho de 1969, o então Presidente da República, Arthur da Costa e Silva, assinou o Decreto-Lei 608, que isentava de taxas de importação os esportistas de comprovado currículo de competição interessados na importação de materiais destinados a competições esportivas. As condições impostas pelo decreto seriam obrigatoriamente cumpridas através de seus respectivos clubes. Assim, juntamente com outros companheiros do Veleiros do Sul e do Jangadeiros, começamos a pensar na idéia de importar alguns veleiros de oceano, beneficiando-nos da lei e assumindo o compromisso de participar de todas as competições do calendário da Federação. Assim foi feito por todos pelo período de cinco anos, sendo que no meu caso o estendi por 28 anos.

Da minha parte, pensava trocar o Martha por outro barco maior e mais competitivo.
Atendidas todas as obrigações de ordem legal, fomos pessoalmente ao Yate Clube do Rio de Janeiro e ao Yate Clube de Santos, que já tinham feito tais importações, e à Confederação Brasileira de Vela e Motor, para obter a devida documentação. Após a aprovação dos Conselhos Deliberativos de cada clube, chegara o momento da escolha dos barcos, seu tamanho, performance, preço, equipamentos, etc.
Depois de tudo examinado detalhadamente, acabamos importando, pelo Veleiros do Sul e pelo Jangadeiros, onze barcos:

Barco
Proprietário
País de origem
Arpége Jorge Vidal França
Plâncton Geraldo Linck Finlândia
Água Viva Frederico Linck Grécia
Inca Alfredo Bercht Inglaterra
Macanudo Ery Bernardes USA
Rajá Gastão Altmayer França
Don Alberto Jorge Ardrizzo Argentina
Coral Ernesto Neugebauer Argentina
Minuano Cláudio Aydos USA
Esfinge José Pires Reis Inglaterra
Charlie Bravo Paulo Hening França

Havia no Veleiros do Sul mais dois barcos importados, mas que não foram beneficiados por essa Lei: o Alcyon, de Darci Bastos, e o Gigi, antigo Inca, que tinha sido importado pelo Alfredo Bercht e vendido para o José Carlos Bohrer.


O Arpège na regata Troféu Seival, em 1973

Inicialmente fui a Buenos Aires para conversar com Germann Frers, famoso desenhista e projetista de barcos, que nos recebeu maravilhosamente bem, junto com seu filho Pepe, sua nora e sua esposa. Não havia na ocasião possibilidade de fornecer um de seus barcos, pois os estaleiros já estavam comprometidos por bom tempo. Era o início da construção dos barcos de fibra de vidro, e os estaleiros estavam lotados de encomendas.
O caminho então era o Rio de Janeiro. Fui visitar Jacques Mille e Mário Béssi, representantes, no Brasil, do estaleiro francês Michel Dufour, que já tinham vendido e entregue doze veleiros. Nessa oportunidade velejei com eles num modelo Arpège de 30 pés e participamos de uma regata da Escola de Marinha Mercante do Brasil, realizada pelo Yate Clube do Rio de Janeiro. Conseguimos o primeiro lugar na classe B-IOR com o veleiro Plein Solleil, modelo idêntico. Era o que faltava para minha aprovação.
Esse tipo de barco é muito indicado para ventos fortes, predominantes no Rio Grande do Sul, portanto entendi que a escolha estava acertada, sem contar que o interior do barco era muito confortável e os equipamentos – vela e instrumentos –, os de melhor qualidade fabricados na França. E o mais importante: o preço estava dentro do orçamento. Naquela ocasião, fui assessorado no Rio de Janeiro por Boris e Nills Ostergren, que participavam de um Campeonato Brasileiro de Snipe naquela cidade.
Solicitei licença a Michel Dufour para colocar no barco o mesmo nome do modelo, pois era marca registrada. Licença concedida, foi batizado como Arpège, que em francês significa arpejo musical, ou seja, um conjunto de notas musicais.
Em 22 de março de 1972 o Arpège chegou no cais do porto de Porto Alegre, vindo da França a bordo do navio de bandeira suíça Alpina. O comodoro na época, Frederico Cattivelli, o vice-comodoro esportivo, Bruno Richter, e o vice-comodoro, Haine de La Rue, foram com o Robertão recepcionar o novo veleiro da flotilha do Veleiros do Sul e designaram um box no clube para sua guarda, onde o Arpège ficou por longos e maravilhosos 28 anos.
Quando chegamos ao box do Arpège, a profundidade naquele local, na bacia interna do molhe do clube, era de seis metros. Hoje o ecobatímetro marca três metros de profundidade. Isso quer dizer que no período açoriou três metros; conseqüentemente, se nada for feito, daqui a mais trinta anos...
O Arpège foi campeão de duas taças-eficiência, ou seja, campeonatos estaduais, venceu diversas regatas, inclusive o Troféu Seival, uma Rio Grande / Pelotas / Rio Grande, uma Porto Alegre / São Lourenço, uma regata Triângulo do Encontro da Vela, também em São Lourenço, e outras diversas competições. Enfim, por cerca de dez anos foi um barco muito competitivo, principalmente nos ventos fortes. Tinha um rating na IOR muito baixo e media muito bem.
Fizemos inúmeros cruzeiros, aproveitando o conforto e a segurança do barco. Possuíamos um rádio VHF, o primeiro a ser instalado com o registro no Dentel, sendo o de número 0001, de outubro de 1980.
E o Martha? Vendido para o velho e querido comandante Nei Amaral, passou a chamar-se Eneida, em homenagem a sua esposa. Hoje encontra-se em Ubatuba, São Paulo. Após longa reforma, pelo seu novo proprietário, voltou a chamar-se Martha.
Curiosidade: quando o vendi para meu amigo Nei, ele estava em São Lourenço. Começara lá, e lá terminaria meu namoro com o Martha. O comandante Nei Amaral, seu filho Vinícius, meu filho Jorginho e o Carlos Teixeira trouxeram o Martha para Porto Alegre, numa bela navegada pela Lagoa dos Patos, o que encantou mais ainda o Nei pela magnífica compra que havia feito.
Numa outra ocasião, junto com os meus filhos Jorginho e Alfredo, fomos com o Arpège até São Jerônimo, pelo rio Jacuí. No retorno, Alfredo, que tinha doze anos, sentiu uma forte dor de dente; como não tínhamos remédio eficaz a bordo, paramos numa ilha do rio Jacuí, onde fomos recebidos por um homem de idade avançada e que havia muitos anos não saía da ilha. Sua mulher tinha um remédio para dor de dente chamado Um Minuto, um medicamento muito antigo, mas de grande eficácia. Passados alguns minutos, o Alfredo já não sentia mais dor. Fizemos um pequeno rancho para o velho casal, incluídas algumas latinhas de cerveja, que ele não conhecia. Jamais imaginava que pudesse existir cerveja em lata.
Em setembro de 1972, disputando pela primeira vez a Regata Troféu Seival, prova máxima do iatismo gaúcho, na noite do dia 23, às vinte e uma horas, retornando a Porto Alegre, pois já havíamos completado 90% do percurso, estávamos em primeiro lugar quando sofremos sérias avarias ao bater nas Pedras da Vovó, na ilha Chico Manuel. Bóris no leme, Léo Penter e Jorginho no controle das escotas, enquanto Jorge Scheiddeger e Carlos Teixeira acompanhavam todos os movimentos do barco. Estávamos com a regata praticamente ganha. Eu me encontrava no interior da cabine preparando uma sopa quente para os rapazes. Escutava Pedro Carneiro Pereira, então locutor esportivo da Rádio Guaíba, transmitindo do Rio de Janeiro o jogo Grêmio e Vasco, exclamando: “No estádio São Januário são exatamente vinte e uma horas...”, e bummmmm..., uma enorme batida na quilha, atingindo em cheio também o leme, que quebrou e entortou totalmente. Felizmente ninguém se machucou e também não havia nenhuma entrada de água, mas leme não tinha mais. Após a recuperação do susto e a avaliação dos estragos, regulando com dificuldade as velas, abandonamos a regata e lentamente retornamos ao clube. Na entrega dos prêmios, fomos considerados os vencedores morais da prova, recebendo das mãos da artista plástica Inge Böhm uma linda lembrança de sua autoria, que guardamos em nosso acervo como um dos mais apreciados e significativos, pois trata-se, inclusive, de uma belíssima obra de arte, representando em cerâmica diversos barcos com seus balões enfunados numa regata. No ano seguinte, 1973, confirmamos como os campeões do Troféu Seival.
Passei diversas temporadas de verão no Rio Grande com o Arpège, pois tinha casa de veraneio na Praia do Cassino. Nessas oportunidades íamos seguido a Pelotas, em visita ao Clube Veleiros Saldanha da Gama. Excursionávamos pelos rios São Gonçalo e Piratini. O pessoal de Pelotas, a exemplo de Rio Grande, São Lourenço e Tapes, é também de extraordinária simpatia, recebendo os visitantes com especial carinho.
Fernando Brauner Vianna, Francisco Caruccio, Gilberto Ferreira, Henrique Yurgel, Hiran Laranjeira, Rui Pinto Ferreira, Luis Carlos Pepe, Rui Vasquez, Genuíno Ferreira, Nelson Rassier, Renato Xavier, Eduardo Acosta, Luis Achyles Bardou, João Luis Guedes, José Freitas (Zezinho), o marinheiro Zé Pedro, enfim todos são de uma atenção ímpar, além de excelentes velejadores e conhecedores das coisas do mar. A turma de Pelotas é realmente ótima.
Enfim, tenho grandes recordações do Arpège. Basta dizer que foi a bordo desse maravilhoso barco que criei meus três filhos.

 

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