Conta todas, vovô
Jorge Vidal

Ushuaia, na Terra do Fogo

Em fins de novembro de 2001, na companhia dos amigos Paulo Augusto Monte Lopes (Merê) e Daielo Moreira, viajei para a cidade mais austral do planeta: Ushuaia, na Terra do Fogo, Argentina.

Os dois amigos desembargadores iam a um congresso naquela Província argentina, e eu fui junto. Sempre tivera vontade de conhecer a Terra do Fogo, em especial o Canal de Beagle, palco de uma ferrenha disputa entre Chile e Argentina e que só foi resolvida mediante a intervenção do Vaticano, que foi o mediador.

Na ida para Buenos Aires, viajamos num Boeing da Varig. Quando pousamos na capital argentina, fomos informados pelo comandante do avião de que havia uma suspeita de Antraz, ou Antrax, como dizem alguns, a bordo da aeronave, pois havia sido encontrado um pó branco estranho num banheiro da classe turista. O leitor poderá imaginar o que representou essa suspeita para os passageiros, diante da parca aparelhagem dos países latinos para esse tipo de investigação, com revista no aparelho e o possível contágio de tripulantes e passageiros. Isso nos levou a 4 horas de retenção no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, num local isolado no fim do estacionamento do aeroporto, mas dentro da aeronave, mais oito horas numa sala, na estação de passageiros, sendo submetidos a rigorosa revista, coleta de material (mucosa nasal), etc., tudo sob uma atrapalhada medonha das autoridades argentinas, sanitárias e policiais. Todos os canais de TV da capital estavam presentes, sendo essa a notícia da noite. Finalmente, por volta da meia-noite, fomos liberados, sob o compromisso de ficar à disposição, para qualquer outro exame complementar, para tanto colhendo os endereços de todos. Nossas autoridades, positivamente, não estão acostumadas com esse tipo de suspeita e, conseqüentemente, despreparadas para qualquer ação. O avião ficou retido por três dias em Buenos Aires.

No outro dia, ainda com o compromisso de atender a qualquer solicitação das autoridades sanitárias argentinas, com a informação do nosso destino, seguimos num avião da Aerolineas Argentinas para Ushuaia, Terra do Fogo.

Uma viagem de três horas e meia. Acompanhávamos, de bordo da aeronave, a costa argentina, com seu contorno geográfico muito semelhante ao da costa do Rio Grande do Sul e do Uruguai. Só lá pela Patagônia é que surgem algumas ilhas e baías com algumas enseadas, principalmente próximo a Puerto Madryn, na Península de Valdéz, Comodoro Rivadávia, Puerto Deseado, Rio Galego e Estreito de Magalhães.

Chegamos à tarde em Ushuaia e já avistávamos as montanhas da Terra do Fogo com as suas eternas geleiras. Apesar de estarmos no verão, a temperatura local era de apenas quatro graus positivos.

Um lindo e novo aeroporto, numa planície à beira do canal de Beagle. Ushuaia parece uma cidade escandinava, dessas encrustadas entre montanhas com geleiras e o mar, sempre frio e ventoso. Suas construções são tipicamente européias, todas com calefação, alimentadas a gás natural. O gás naquela região brota a céu aberto. E dê-lhe gás. É gás para tudo, aquecimento, iluminação, cozinha, veículos, e tudo pela metade do preço de Buenos Aires, pois a Província da Terra do Fogo é considerada porto livre. Portanto, livre totalmente de impostos. Os carros custam 50% menos do que na capital e existem em grande quantidade. Creio que cada habitante tenha o seu. Sua população total é em torno de quarenta mil pessoas. Tem três hotéis cinco estrelas e inúmeras pousadas. É ponto de atração turística o ano todo, recebendo visistantes de todas as partes do mundo. No verão, a luz do dia vai das quatro da manhã até onze horas da noite e no inverno clareia às dez da manhã, escurecendo às três da tarde. No inverno, a temperatura cai para menos quinze graus, em média.

O porto da cidade é sua principal atração. Está atracado nas darsenas quase sempre algum navio polar argentino ou de outros países que demandam à Antártica e que fazem seu abastecimento final em Ushuaia. Navios de passageiros são comuns. Um a cada dez dias. Levam, principalmente, turistas europeus.

Seu Yate Clube é muito acolhedor. Aliás, há dois, um pequeno, doméstico, e outro maior, com excelente trapiche, para barcos maiores. Encontramos muitos veleiros estrangeiros por lá, especialmente franceses. Isso faz lembrar um ditado: “Em qualquer porto do mundo sempre há um barco francês”.

É caminho para quem vai ao Oceano Pacífico via Cabo Horn, a esquina do mundo, que fica a apenas trezentas milhas, e para quem vem do Pacífico, principalmente da Austrália e da Nova Zelândia, procurando a costa brasileira, a caminho do Caribe.

Num daqueles dias chegara no Yate Clube um veleiro da Austrália com quatro tripulantes. O mais moço tinha 62 anos. Imaginem a idade dos outros!

Navegamos no Canal de Beagle num catamarã enorme, construído no Chile. Fomos até o farol Les Eclaireurs, na divisa com a Ilha Navarino, no Chile. Passamos também pela cidade chilena de Porto Williams, na Ilha Navarino, que os chilenos afirmam, e tem razão, é a cidade mais austral, e não Ushuaia. Mas, como é ainda pequena, quem leva a fama mundial é Ushuaia. No entanto, Porto Williams está crescendo muito, se modernizando, construindo hotéis e já conta com novo aeroporto.

O frio fora da cabine do barco era de zero grau, com sensação térmica de menos cinco, por força do forte vento, mas era um belo dia de sol. Retornamos no fim da tarde, ainda com muito vento, muita onda e mar picado. A temperatura da água nunca passa de cinco graus positivos. Quem cai na água e fica dez minutos está morto!

Andamos também pelos lagos interiores e viajamos numa linha férrea do século XIX, que iniciou transportando presidiários, pois Ushuaia começou sendo uma cidade destinada a abrigar presidiários. Os lagos são lindos e a água geladíssima e cristalina. A quem vai até lá, recomendo comer um cordeiro assado (chivito), que é a coisa mais deliciosa do lugar, ainda mais se acompanhado de vinho Cabernet argentino, que também é primoroso. É excelente lugar para se comprar artigos náuticos, como abrigos para chuva e frio e outras vestimentas para velejar, pois as há de todas as marcas mundiais famosas, e, como é porto livre de impostos, são bem mais baratos e de ótima qualidade e variedade.

E o antraz ou antrax? Deu em nada. As autoridades argentinas chegaram à conclusão de que alguém deve ter derramado algum talco no banheiro...

O comandante comentou com os passageiros, no aeroporto em Buenos Aires, que ele não imaginava que ia acontecer tudo isso, toda essa barafunda, mas que não poderia ter evitado. Tinha que dar o alerta. É o tal negócio: “O pior inimigo do bom é o ótimo”. Deveria ter ficado quieto. Da próxima vez...