A Felicidade nem sempre está a sotavento
Danilo Chagas Ribeiro
Colaboração Cássio Ostermayer

Mar 2001
"Scarpa cómoda e goto pien, tor el mondo como che el vien", ou "Sapato confortável e barriga cheia, aceitar o mundo como ele vem. Este é o grande segredo da felicidade."*
Será mesmo?...

Tenho observado que os navegadores são, em geral, pessoas interiormente inquietas e de algum modo transgressoras. Conquistadoras por natureza, são também desbravadoras. São algo audaciosas. Corajosas. Teimosas, implicantes, desafiadoras. Do tipo Born to be wild. Jaguaras...
Pelo menos algumas destas características são típicas de quem gosta de navegar - diferente de ser dono de barco!

O navegador sempre desatraca sabendo que tem chances de se incomodar, principalmente por problemas de intempérie. Em 35 anos de navegação já passei por algumas encrencas. Algumas apenas estressantes, outras mais difíceis. Já corri risco de vida por duas vezes. Ajudei desconhecidos a sair de situações complicadas e já fui socorrido por quem eu não conhecia.

Inúmeros são os casos de acidentes contados na literatura e no cinema. O mais dramático talvez (e sem testemunhas) seja o de um veleiro oceânico encontrado sem tripulantes. No casco, externamente, marcas de unhas próximas à linha d'água sugeriam que a tripulação atirou-se ao mar para refrescar-se durante uma calmaria, tendo o último se esquecido de baixar a escada.

Isso não é uma apologia à imprevidência ou à irresponsabilidade, como poderá a alguns parecer. O navegador não sai à procura de problemas. Sai para divertir-se, sai pelo contato com a natureza, pela paisagem. Sai pelo esporte, pela competição, e na maioria das saídas tudo corre perfeitamente bem. Mas sai sempre, literalmente, sujeito a chuvas e trovoadas.

Navegar não é praticar bungy jumping, saltando para o vazio sem controle algum, onde ou não se interage com o meio ou se tenta provocar deliberadamente risco iminente à vida. Aí falamos de uma leve demência. Navegar (velejar, principalmente) exige conhecimento e técnica e implica em controle, criatividade e perícia.

Mas se a receita da felicidade passa por sapatos confortáveis e barriga cheia, por que sair expondo-se a riscos, com o propósito de divertir-se? Por que esta compulsão de conviver com o perigo potencial, de sujeitar-se a dificuldades?

Por que esta, digamos, indiferença com possibilidades de mau tempo, tantas vezes imprevisíveis na hora da partida? Epicuro, filósofo grego, disse que "Os grandes navegadores devem sua reputação aos temporais e tempestades.”. Parece induzir que, sendo a intempérie um evento de risco e muito provável na vida do navegador, deverá ele saber suportá-la para ser considerado experiente. Em outras palavras, navegador que ainda não sobreviveu a uma tempestade não tem reputação.

Terá o navegador uma velada e constante necessidade de provar-se? "Os barcos estão mais seguros nos portos, mas certamente é no mar, correndo riscos, que ele mostra seu valor". Esta frase, cujo autor desconheço, parece parafrasear Epicuro. O valor empírico do barco (e do navegador) não advém da capacidade de enfrentar o risco. É pertinente ao tráfego ou à função do barco, enfim. Mas como o risco é inerente à função, tanto o barco quanto o navegador deverão estar preparados para enfrentá-lo.

Por que esta inquietude do navegador que não lhe permite satisfazer-se com o sapato e a barriga? Por que expor-se a uma situação em que tenha, mesmo que eventualmente, dar o melhor de si para sobreviver? De sujeitar-se a viver No Limite (mesmo) em vez de assistir televisão?

As pessoas buscam na aventura uma forma de romper com o tédio. Afinal, o homem era inicialmente caçador, o que não deixava de ser uma aventura compulsória em prol da sobrevivência. Mas aí veio a sociedade e a caça foi suprimida. Como a maioria acaba fazendo tarefas monótonas no cotidiano, aquela necessidade atávica - de produção de adrenalina - o força a buscar no tempo livre atividades que o façam reconhecer-se como animal (evoluído) que somos. Ele quer, enfim, sentir-se vivo.

Na verdade não é bem isso, porque a maioria prefere mesmo é coçar o esquerdo, quando já esfolou o direito... Seriam então, os aventureiros, na verdade, a reserva de humanidade que restou no rebanho? Será mesmo?...

Aceitar o mundo como ele vem? Sim, mas só se vier em forma de um temporal e, estando embarcado, já tiver feito de tudo para melhorar a situação. E nesse caso, mais do que aceitar, apreciar o espetáculo da tempestade ao invés de temê-la. Enquanto isso não acontecer, vamos apontando a proa para onde der vontade, independentemente de onde o vento queira levar-nos. A felicidade nem sempre está a sotavento**.

O sensato aceita o mundo como ele vem. O insensato tenta mudar o mundo.
Todo o progresso portanto, deve-se aos?...


______________________
(*) Título do livro de Eduardo Festugato, escritor gaúcho.
(**) Sotavento - o lugar para onde vai o vento.


Foto: Danilo Chagas Ribeiro -
Mar/2001