Nasci
como todos nascem, assim, por acidente. A cidade foi Budapeste na longínqua
Hungria. Por um incidente complexo, a 2ª Grande Guerra, com a qual
nada tenho a ver, rodopiei na enxurrada do destino qual folha em torrente
de temporal e, após três anos, encalhei na margem do Guaíba,
junto com os meus pais, Viktor e Róza Erzsébet, e o meu
irmão György. Foi aí e então que começou
uma grande paixão entre eu e o rio que deu vida à Porto
Alegre. Era dezembro de 1947 e tinha 14 anos de idade, lembro-me bem.
Na capital gaúcha
arribei das fadigas da guerra. Freqüentei o Colégio Anchieta
e nadei no clube União; fui escoteiro e acampei muitas vezes
nas serras que guardam Caxias e nas praias que bordam a Lagoa dos Patos;
entrei na Universidade Federal e formei-me engenheiro civil. Mais e
melhor que tudo, entrei como sócio nos clubes Jangadeiros e,
depois, Veleiros do Sul. Acreditem ou não, este clube, que tem
a mais linda vista do mundo, foi a minha querência. "O que?
Tu achas que exagero e não é o lugar mais formoso da Terra?"
É sim, com toda certeza, pelo simples fato de que é meu,
meu pelo direito de amá-lo e este sentimento não divido
com ninguém!
Não
raro as cidades entranham nas pessoas e Porto Alegre fez parte das minhas
vísceras, foi minha amiga, amante e, por vezes, até puta.
Suas ruas, becos e arrabaldes ficaram impressos na m inha memória
e meus sentidos. Mais que ninguém, tinha familiaridade com suas
águas e seus esgotos, pois dividi meu tempo entre a Cadeira de
Geometria Analítica da Escola de Engenharia e os serviços
da Prefeitura responsáveis pelo saneamento das águas e
dos esgotos municipais. Dei tudo de mim nesta faina de responsabilidade,
mesmo porque a causa era boa: manter limpo as águas que saíam
e entravam no Guaíba. Meu trabalho agradou e foi reconhecido
pelos próceres de Porto Alegre que me conferiram a distinção
de cidadão honorário. Aqui, nesta cidade, deitei raízes;
fiz um montão de amigos e casei duas vezes: a primeira, com Ingeborg
Becker com quem tive dois filhos, o Atila e a Ilona, e a segunda vez,
com Athene Normann quem deixo viúva. Minha vida foi a família,
as amizades e o Guaíba.
Guaíba,
quanto te quero! Ainda colegial, cantava no s acampamentos, totalmente
dissonante porque nasci privado de musicalidade, esta toada: "Minha
mãe, minha mãe, quando eu morrer, me enterra no Guaíba
com um prato cheio de comida". Os amigos me imitavam: "Meu
mãe, meu mãe, quando eu morrer"... Que os pariu!
Pois fiquem sabendo que eu nunca troquei a pronome da minha mãe.
Singrar tuas águas,
Guaíba, foi a minha vida. Como amava velejar solto, livre, acariciando
as ondas do teu corpo. Mesmo quando me oferecias uma calmaria podre
te admirava; não há neste vasto mundo um espelho, um só,
que reflita mais cores do que tu, Guaíba. Teu mágico pôr-do-sol
é sem par. Há arrebóis mais sanguinolentos, há
mais dourados, porém não existem mais ricos e variados
do que os teus, Guaíba. Não existem. Brigamos
algumas vezes: ainda jovem, me tomaste tudo e me mandaste para casa
de calção. Tive que nadar do canal até o refúgio
da Varig, em Ponta Grossa. Outras vezes me causaste grandes estragos
no barco; a mim! que ganhava a vida limpando a merda que a cidade pretendia
despejar nas tuas águas. Não te preocupes, não
guardo mágoas e devo reconhecer que encapelado pelo vendaval,
tumultuado com ondas encrespadas e mal-humoradas, cinzento e sombrio,
eras uma visão formidável! Quanto me orgulhava voltar
vencedor da liça e que prazer não me dava contar vantagens
aos amigos dos Veleiros!
Nos
últimos anos, as doenças deixaram-me aperreado. Contudo,
sobrou a alegria de ver-te quando vinha ao clube jogar prosa fora com
o pessoal, principalmente às quartas-feiras, no clubinho dos
Cruzeiristas. Para a nova geração nada significo e é
bom que assim seja; que vivam as suas aventuras como eu vivi as minhas.
Aos que me conhecem, despeço-me sem rodeios: até e que
sejam felizes. Aos amigos devo uma explicação: não
gosto das liturgias que oferecem na hora da morte. Pedi, sim, que não
houvesse nenhum rito religioso e nada de rotina social, pois não
me agradam as formalidades dos velórios, dos necrológicos
e das coroas de flores. Solicitei que fosse cremado e as cinzas jogadas
no rio, aqui no farol do clube. À Athene, Átila, Ilona
e minhas netinhas, Silvie, Érica e Julia, já dei tudo
que podia dar e, agora, só falta o beijo da despedida que dou
com gosto de saudade.
Finalizando,
tranqüilo e alegre junto-me às tuas águas, Guaíba,
que se encarregarão do resto: uma lenta viagem ao Mar onde mais
cedo ou mais tarde todos seguiremos. Assim como não tive medo
d e viver, não tive medo de morrer e nem temo o Mar. Cada qual
interprete isto a sua maneira e julgue como queira. Não fiquem
tristes, porque não há motivos para isto, tudo é
muito natural. Se quiserem, lembrem-se de mim como eu era: alegre e
rabugento, amistoso e irado, tantas vezes extremado, nunca cinza, morno,
ou mais ou menos; talvez com as únicas virtudes de ser espontâneo
e sincero.
Adeus a todos, sigo
minha grande viagem ao Mar e não esqueçam testemunhar
o cumprimento da minha promessa: 250 litros de chope estão a
vossa espera.
Mensagem levada
por György Böhm, irmão do László.
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