A Navegada do Lobisomem


     Navegar à noite, a partir do por do sol, com luar e um bom cenário, é uma das coisas mais bonitas de se fazer. Além do visual, sempre pinta alguma adrenalina – a chance de imprevistos é maior.
     Falou-se muito entre a rapazeada que veleja lá na Pinguela em se fazer uma dessas navegadas, mas foi sempre ficando na conversa. Até nome já tinha: A Navegada do Lobisomem. Só faltava acontecer.
     O Capitão do Malibu, Lidson Cancela, marcou uma navegada bem despretensiosa, para desatracar às 14:30h de 6/01/01 da Lagoa da Pinguela, em Osório. O Malibu é um veleiro Scorpio de 26', com banheiro, cozinha e acomodação para 6 pessoas. A bolina totalmente retrátil ajuda muito nos baixos calados da região.
    Me preparei bem cedo porque esse capitão serve na Marinha de Guerra há vários anos e é tripulante do veleiro-escola "Cisne Branco" - veja mais sobre o Lidson e o Cisne Branco em www.pinguela.com.br. O homem é cheio da disciplina, pontualidade, não bebe a bordo e é todo dos esquemas de segurança.
    Depois de quase uma hora de preparação no bar, bem na ponta do trapiche, fui obrigado a embarcar porque chegava o Vinícius, paleteando solito aquela enorme bateria elétrica parque afora. Pontualmente às 15:30h soltamos as amarras do Malibu, já quase à meia-guampa.
    O Edilson Cerveja embarcou na dúvida, tal a reputação da tripulação. Preferiria acompanhar o Hagar, o horrível, mas embarcou sem jeito de negar o convite. A esposa e a filha abanando do trapiche para o pai que só ia fazer um “passeiozinho” e já voltava. "Bota o colete, pai!". Pobres... Um outro bom parceiro, o Beto Tauret, não pode ir porque foi rebocado para uma festinha de aniversário de um ano – arghhh!

    Tomamos o rumo do Pontal dos Diehl, com vento NE moderado, mas firme. Era um dia de muito sol. O reflexo na água, pela popa, parecia pior. Três dúzias de guaraná e mais o Q-Suco especial de bordo foi ajudando a calibrar o clima de gozação e aumentando a profundidade dos detalhes de casos, causos, histórias e estórias que os graxains contavam. Esse, para mim, é o ponto mais importante de navegar à vela: a confraternização, a conversa, a parceria, a alegria. Rola piada, filosofia, gozação, confidências. Cada história... Acaba aumentando a cumplicidade. Todos a bordo já eram amigos e com experiência em navegação à vela.

    Na tranqüilidade do veleiro, com a imensa lagoa em volta, alguns jet skis passavam em alta velocidade, bem junto ao barco, fazendo marola e muito barulho. Por vezes os pilotos até abanavam simpaticamente (alguns deles são nossos amigos), talvez sem se dar conta do inconveniente que estavam causando. Que convívio mais difícil este... O jet ski é um esporte social: a maioria dos praticantes, precisa de platéia - só andar, parece, não chega. Entretanto, os usuários destas máquinas precisam conscientizar-se de que jet ski é como flatulência e filhos - só se agüenta os da gente.

    Dos Diehl, seguimos em direção ao Canal do João Pedro. Atravessamos as Malvas, chegando diretaço na foz do canal, sem cartas nem nada (esse é um prazer que o GPS tira). O acesso pela foz é complicado, mas estava balizado com bandeirolas amarelas. Fizemos a aproximação padrão mas assim mesmo encalhamos. Aproveitamos para tomar um banho de lagoa. Aquele é o melhor ponto da região para banho. Na verdade, o encalhe não foi coisa séria – assim que o Edilson caiu n’água (por mera coincidência, claro) o Malibu voltou a flutuar frouxo. Diz ele que o desencalhe somente ocorreu após a retirada do excesso de guaraná light servido à tripulação em terra.

    Com todo mundo a bordo de novo (por pouco, não!) tentei convencer o capitão a entrarmos no canal mais uma vez. Mas não houve santo que ajudasse. O cara tava duro pras balas, uma barbaridade – acho que tinha interesses velados no bar d’A Bruxa, em Osório. Tentamos um motim, mas sem êxito. Tentei pessoalmente subornar o comandante com o dinheiro que eu, por acaso, tinha a bordo mas nem assim obtive sucesso. O homem queria voltar, e era isso.
    Já cruzando o trapiche dos Diehl, na volta, comecei a dar pilha de novo. Mas mudei a prosa. Propus o Tramandaí que eu já conhecia e cuja nascente está a dois pontais adiante dos Diehl. Mas a 'logística' estava muito difícil: um precisava voltar porque tinha que assar carne para uma visita. Outro tinha que pegar a namorada na rodoviária, outro tinha que ir não sei onde... Depois de alguns argumentos o capitão acabou arriando, apesar dos receios da largura do rio, e todos decidiram abortar os compromissos anteriores e encarar a Navegada do Lobisomem, que acabou acontecendo assim, totalmente de improviso.

    Fizemos 180º na lagoa Palmital e cruzamos a baliza com o pneu, bem na divisa Palmital-Malvas, pela 3ª vez naquele dia (Se V. quer ver os mapas da região, clique aqui). Eram mais de 6 horas (o por do sol seria às 8:30). A lua, quase cheia, magnífica, estava lá estampada no céu azul, chamando por nós para o início do show que logo iríamos assistir.

   No caminho para o Tramandaí encontramos o Régis Feldmann no veleiro Respingo. Conversamos um pouco na orça e trocamos fotos. Disse que  navega há 20 anos pela região – é um dos poucos veteranos de navegação da região que conheço (meu pai, meus irmãos e eu navegamos por lá há mais de 30 anos).
   
 
    Finalmente entramos no Tramandaí. A caixa do rio tinha apenas uns 50cm. Havia correnteza moderada. À medida em que entrávamos no rio o vento ia diminuindo e a paisagem melhorando. Nosso plano era ir com os panos até onde conseguíssemos. Lidson conseguiu fazer umas 3 curvas em um bordo só, esmerando-se no comando. As viradas de bordo tinham que ser rápidas e precisas em algumas curvas mais fechadas. As manobras com os 4 tripulantes em sincronismo perfeito eram bonitas de se ver.

   Em seguida começamos a ouvir o som dos pássaros e desligamos o CD. A bicharada toda já nos ninhos para dormir, alçava vôo a cada curva que fazíamos e saía em revoada, gritando. Tarrãs, quero-queros, marrequinhas e outros tantos. O crepúsculo estava magnífico. O desenho e as cores no céu, a lua cheia, os pássaros, a noite chegando, a brisa leve e a temperatura ainda quente. Foram muitos inputs em pouquíssimo tempo. Impagável. Ficamos navegando em silêncio, todos quietos, de pé no convés, assistindo àquele espetáculo único, como se estivéssemos em um cinema. A cada curva o cenário ia mudando lentamente. Por algum tempo junto ao estai de proa, eu escutava ainda o barulho suave da água cortada pela proa do Malibu. Imperdível.

    Chegou um momento em que alguém "se acordou" e indagou se não era hora de voltar. Vontade ninguém tinha, mas o cinema estava fechando e, de noite, mesmo com faróis, seria uma encrenca achar o caminho de volta, rio acima (há muitas bifurcações). Assim, embora contrariados, decidimos voltar. E além do rio, tínhamos ainda uma parte da Lagoa das Malvas, a Lagoa Palmital e a Lagoa da Pinguela pela frente – estávamos a mais de 2 horas de casa com aquele vento. Aproveitamos um trecho mais largo do rio e fizemos meia volta. Tudo só com os panos. Nada de motor. A festa continuava, mas a correnteza agora era contra.

    A navegada vinha ocorrendo sem imprevisto algum até que, ainda à vela e com o vento fraco, a correnteza nos fez encostar na barranca direita do rio. O motor foi ligado mas não resolvia porque a vela grande ainda estava enfunada com través, pressionando o barco contra a barranca. A correnteza na curva complicava.
De duas uma: ou baixávamos os panos ou tentávamos empurrar o Malibu, ajudando o motor. Baixar os panos com o vento já fraco não ia resolver muito. E já no lusco fusco, perderíamos tempo precioso com a já pouca luz que tanto precisávamos para sair do rio. O Lidson então, empostou a voz, e falou alto e grosso:
    - “Vamos cair n’água e empurrar!”. Ô Loco, pensei. À essa hora? Nesse brejo? Um momentinho... Mas fiquei quieto porque ele estava com toda a razão. Tínhamos que encarar a bronca. E não dava pra ficar pensando em alternativas. Se ficássemos discutindo o sexo dos anjos naquela situação, a bela navegada poderia virar em uma bela encrenca. Era pra já e não tinha conversa!
    Só que “Vamos”, era pra nós. Não pra ele. Falou lindo uma barbaridade, mas pras #&$@$ dele. Com todo mundo ainda anestesiado por aquele cenário, aquilo foi um choque de alta tensão. Eu só queria saber onde era o posto da FUNAI mais próximo pra carimbar meu Arrais.
    Era uma cena perfeita para gravar comercial de cerveja: Não dá pra tomar uma Kaiser antes?

  Não dava! Enfiamos os coletes e em seguida caímos os três na barranca e depois n’água, já praticamente noite, enquanto o capitão mandava bala no motor lá em cima. Agarrados no friso da borda do convés íamos correndo e empurrando o barco.
    Más que indiada de categoria!... Me senti um guaipeca.
    Na hora de voltar pro barco, já a pleno, com água pelo pescoço, tínhamos que usar a escada da popa, e estávamos meio esgualepados por causa do esforço. O Edilson e eu, em plena forma física, logo subimos. O Vinícius, ruim de engorde e magro feito uma bicicleta, ficou se amarrando e quase teve que ser rebocado pra dentro. Pelo menos eu acho que foi ele. Más que fiasquera... Comecei a rir e não parava mais. Depois daquele banho noturno forçado bem nos ninhos dos jacarés, não tinha outro jeito: “Que dê o Q-Suco?...”. E dele risada. Que fogaréu...
    No final das contas até que o preço foi bem barato pelo esplêndido cenário que presenciamos no rio. E além do mais, se tudo corre 100% bem numa navegada assim, parece que fica faltando alguma coisa (adrenalina?).

    Mas não demorou muito e já saiu um boletim de emergência da ponte de comando. Em alto e bom tom, o capitão anunciava:
    - “O fusível do leme se rompeu! Provavelmente ao encalhar!”. A “vingança” já tinha chegado.
    - “E daí?” (só pra judiar ;-)
    - “Daí que o leme fica todo em cima e pesa muito”
    - “Ah é, é?... Pois tu vê que azar, né?...”. Aí a gozação não parou mais:
    - “Por que não comprou um fuzil de maior amperagem?”. “Desce ali e troca. É moleza...”.
    E assim fomos nos divertindo rio acima. O rio tem muitas bifurcações:
    - “E agora?... Pra que lado é?”, perguntava o Lidson, lá do cockpit.  “Bombordo”, gritava um
agarrado a um estai. “Não! Boreste!!!”, gritava logo outro, do estai de proa. Estava ruim mesmo de identificar. Apesar da bagunça, já em clima de fim de festa, não erramos uma bifurcação sequer, mas o capitão sofreu um bocado conosco daí em diante.

   Chegamos às Malvas com tão pouca luz que não se via mais os juncos. A lua foi para trás das nuvens. As luzes de navegação estavam ligadas. Alguém acendeu também a luz da cabine e botou  um CD da Marisa Monte ("Segue o Seco", bem lembro). Agora o negócio era pauleira para chegar em casa. Pegamos um três-quartos bom, quase popa, com alguns carneirinhos. Todo mundo preocupado em achar a baliza com pneu, lá nos Diehl. Com receio de não achá-la e encarar um baixio, levantamos a bolina um pouco (era quase popa, mesmo). Até hoje tem cara procurando pela baliza com o pneu. Depois devem ter sonhado que acharam...

    Foi neste trajeto que o lobisomem apareceu. Com as pernas para fora do convés, alguém sentiu as unhas do bicho. E foram várias vezes, seguidas. O bicho é tão retovado que não se pode vê-lo. Mas foi sentido.
    Agora... Se não foi o danado do bicho que queria se atracar na tripulação, então foram os juncos raspando nas pernas. Mas que tinha lobisomem, isso tinha. Ah! Eu já ia esquecendo: na ida, conseguiram avistar um OVNI lá pras bandas da praia. Os caras tomam Q-Suco demais... Até jacaré viram. É mole agüentar uma tripulação dessas? Lobisomem, OVNI, jacaré... Viram até uma sereia, sósia da Gisele Peitchen, em pleno Rio Tramandaí, bem na proa do barco. Que visão mais privilegiada. Como é que eu perdi essa?...

  A volta ocorreu tranqüïla, com muito som. Eram já umas 10 da noite quando desci à cabine pra checar o correio de voz. Tinha mulher apavorada na marina. Tínhamos gás para encarar muito mais água pela frente. Mas já se enxergava as luzes da marina. A inesquecível Navegada do Lobisomem estava terminando, às 22:40h, depois de 7h inesquecíveis. O bar na ponta do trapiche estava com bom público, saudado por nós com um buzinaço.
 
    Foi uma navegada de primeira. Destas que não se faz quando se quer, mas quando dá para fazer. A boa parceria, o clima de alegria, o cenário, tudo enfim, fez esta navegada ser daquelas de botar placa no barco.


    A foto abaixo foi feita aí pelas 2h da madrugada, após a Navegada do Lobisomem. A cor avermelhada na palmeira é da luz da casa. O resto é exclusivamente luar. Ao fundo vê-se as luzes de Osório.
Obs.: a foto sofreu sobre-exposição: não estava tão claro como parece.

 



Texto: Danilo Chagas Ribeiro.
Fotos: Danilo Chagas Ribeiro, Vinícius Cancela (segunda foto) e Ruy Engelmann (nós no Malibu)

Jan/2001