Quando o deus das águas e a rainha não se entendem
Planos frustados no Ano Novo
Daniela P Bernauer

Depois de um típico fim de ano de lojista, trabalhando freneticamente até à noite de Natal de 2004, decidimos passar um ano novo bem calmo, familiar e tranqüilo. Afinal, toda a família precisava de um bom e sereno descanso por este ano não ter sido um ano fácil.

Os planos

O local escolhido? O Canibal. O destino? Farol de Cristóvão Pereira, com suas águas limpas e transparentes, esperando-nos para passar uns dias isolados da civilização. Lembramos até de Iemanjá, a Rainha das águas, e por que não prestar a ela também a nossa homenagem fazendo algo que nunca tínhamos feito, agradecer a dádiva de estarmos juntos e com saúde! Nossos planos? Na noite de fim de ano, ficar na beira da Lagoa, lavar os pés com uma taça de champanhe na mão, muitos beijos abraços, risos... Uma visão maravilhosa...

Dia 27 de dezembro de 2004

Nosso querido Canibal estava nos aguardando ansioso. Seus 36 pés clamavam por nós e nossa bagagem para outra aventura...
Saímos de Santa Cruz do Sul, onde moramos, rumo a Porto Alegre, com o carro bem carregado com roupas de verão mais o “Kit” completo para um fim de ano sensacional: máquina fotográfica, filmadora, roupas brancas, roupas novas, lentilhas, uvas, panetone fresquinho (na lata), velas aromáticas, copos de cristal e logicamente vinhos espumantes e a champanhe! Ao chegarmos no Veleiros do Sul, a nossa base em Porto Alegre, descarregamos o carro, equipamos o barco e fomos jantar. Os ânimos da turma estavam “ZEN”, cheios de alegria e espírito de aventura.

Dia 28 de dezembro

Logo de manhã, com vento sudoeste suave, desatracamos do trapiche e fomos Guaíba adentro, rumando ao sul, para a ilha de Chico Manuel, um lugar encantador para uma noite de descanso e para planejar nossa saída para a Lagoa dos Patos, no dia seguinte. Como de costume, fizemos nossa paradinha na Ponta Grossa, para abrir o restaurante de bordo!. A brisa da manhã nos empurrava doce e preguiçosamente para nosso primeiro destino. Ao Passar no canal de entrada da ilha e após raspar levemente a quilha no fundo, atracamos no trapiche. Não havia ninguém por lá, só nós. O Canibal “reinava” majestosamente no trapiche. Poucos saíram com seus barcos, porque, era uma data muito especial e todos iriam passar o ano novo com familiares e amigos.

Dia 29 de dezembro

Bem cedinho, banho tomado, café da manhã em grande estilo, com frutas, frios, cereais... Tudo planejado para não ter que ancorar mais até o destino plotado na carta. Camarotes limpos e arrumados, tudo fixado e alojado para poder adernar à vontade, sem esparramar nada pelo piso.
Soltaaaaar.........amaaaarras!............ Lá vamos nós!....... vamos nós!............vamos?????...... VAMOSSSS!!!!!!!.........
Nem dava para acreditar o que estava acontecendo, não era possível! Estávamos literalmente ENCALHADOS! Mas não é possível.... Como pode?.

Havia uma seca muito grande e o Rio Guaíba estava mais baixo que o normal. Durante a noite o vento mudou para nordeste e rio baixou mais uns 20cm. É uma característica daqui. As nossas “marés” são de acordo com os ventos. O vento norte empurra a água pela lagoa abaixo até o mar fazendo o nível baixar ao passo que e o vento sul segura a água mais tempo dentro do sistema e o nível sobe. Comprovamos isso na prática: ficamos presos na paradisíaca ilha de Chico Manuel, e sem a liberdade que o indivíduo tem por direito de “ir e vir”.

Começamos a lembrar de tudo o que aprendemos nos cursos e livros lidos, de ”como desencalhar”, “desencalhar em 3 passos simples”, “técnicas para desencalhar”, etc. Aprendemos que estas técnicas são eficientes quando se tem uma tripulação numerosa, mas com quatro pessoas só, não sai do lugar nem com Iemanjá ajudando. Nem ela empurra 7 toneladas pelo fundo de lodo... Chegamos a nos pendurar na retranca para ver se conseguíamos adernar o veleiro o suficiente para levantar a quilha do lodo, mas nada conseguimos.

Depois de muitas tentativas, conseguimos sair de “ré” e voltar ao trapiche. Mas NÃO desistimos..., tentamos vários rumos diferentes para sair da marina, e nada.... Na popa a água marrom de lodo mexido mostrava claramente a situação. O calor e os fortes raios solares de verão estavam nos derretendo e acelerando a “adrenalina negativa”. Pensamos bastante sobre a situação para ver se surgia alguma alternativa ou nova idéia para ser tentada, mas nada aconteceu. Assim sendo, decidimos esperar mais um dia.

Dia 30 de dezembro


Ficamos sentados pensando e repensando, sempre de olho no nível das águas. Nadávamos até o local mais raso para medir a profundidade, era impossível sair de lá!.
Com muita surpresa, no fim da tarde, chegou o Dr. Horta Barbosa, (em sua lancha), ele e proprietário também do veleiro Bolero; prontamente nos ofereceu todo tipo de ajuda. Assim, tentamos tudo novamente, desta vez, com mais confiança, mas... em nada mudou nossa situação, mesmo sendo puxados, não conseguíamos sair de lá...... Desta vez, acabamos desistido......
Apesar de nos oferecerem carona de volta para Porto Alegre, inclusive o seu veleiro no clube para pernoitar, nos dava lástima de abandonar o Canibal preferindo esperar subir o nível das águas e deixar a natureza seguir seu curso. Na lei do mar, o capitão nunca abandona o navio!, Com tudo isso, lá se foi outro dia das nossas férias...

Dia 31 de dezembro

O vento soprou de sul a noite toda e a água parecia que tinha subido um pouco. Parecia que o deus das águas ia dar uma mão, mas era tão pouco representativo que não dava para afirmar. O Dr. Horta já tinha saído no dia anterior. Antes de tentar qualquer outra manobra, decidimos ligar para o clube e ver se alguém podia nos ajudar. Foi recomendado que não tentássemos sair sozinhos para não piorar a situação. Aguardamos o barco do clube, cheios de esperança.

Começamos a sentir o efeito da “adrenalina positiva”! Até o ar que respirávamos parecia mais leve. Liberdade.... Finalmente!!!... Mas... Será que conseguiremos?...
Sim!!!..... Sim!!!..... Conseguimos! O barco do clube ficou ao nosso lado até chegar ao canal para prestar eventual auxílio. Desta vez a nossa quilha foi lambendo o lodo durante “todo” o trajeto do canal de Chico, (continuava baixo, mas com aqueles 20cm a mais, necessários para sair).

Liberdade! Que sensação maravilhosa... sentir novamente a brisa calma em nossos rostos... Mas, nossos dias de férias já não permitiam ir muito longe. Decidimos rumar para o Araçá, logo ali perto, com sua praia de areia branquinha. Afinal, esse era o dia de fim de ano! Todos estávamos cansados e com muito calor, o mau humor reinava, invadindo os últimos espaços “ZEN” das nossas mentes...

Velejar é aventura

No fim da tarde, chegamos no Araçá. Soltamos a âncora, mas como o tempo estava muito quente, achamos melhor prevenir uma virada e instalar uma segunda âncora. Já tínhamos sido surpreendidos por um vento nordeste forte por lá, e não foi nada agradável pular a noite toda como “pipoca”! A esta altura dos acontecimentos, percebemos que a Ana Carolina estava no camarote da proa, com cara emburrada, um mal humor fora do comum, o Andreas Jr entediado até a alma, jogava vídeo game...

Andreas “pai” e eu sentamos na popa com um copo de refrigerante, contando os minutos, que não passavam nunca.... Nossa missão? Chegar à “meia noite” sem brigas, alegres e animados...
Tic-tac, tic-tac... Os minutos passando....Tic-tac... e a alegria não chegava... Nada nos distraía dessa “longa espera”... E aí, no silêncio da baía do Araçá, ouviu-se:
- CHEGA !!! EGA....EGA....AAAAAA... Resposta do eco naquela solidão!... Não agüento mais! Vamos embora! ora....ora.
Pelo amor de Deus! Vamos ficar aqui para que???... Não tem nada aqui, só água limpa e areia branca... Muita paz e tranqüilidade... E daí.... E eu com isso?... Dane-se a paz!...

Já anoitecendo e com todos “ZEN-paciência”, arrancamos as duas âncoras e partimos rumo a Porto Alegre novamente. Ainda dava tempo! Demais é dizer que todos nós ficamos aliviados e animadíssimos!. Voltar para casa parecia estar mais perto do paraíso, um oásis.... Que absurdo, não é?

Já era quase noite de Ano Novo quando decidimos ir até um local privilegiado no rio para ver o show de fogos de artifício, no Gasômetro.

Aprendizado? “Tirar o maior proveito do momento”.
Se a escolha for VELEJAR, nós podemos planejar tudo, mas, a “Primeira Comandante” será sempre a natureza... E nem ela tem um plano traçado... Nós estaremos sempre à sua “Mercê”
Nem sempre as nossas expectativas se realizam, mas poderíamos ter tirado proveito de outra maneira.

Tudo bem.... Velejar sempre é e será uma aventura! E sempre nos dará boas histórias para rechear as nossas vidas de experiências.

Netuno continua no comando, apesar dos encantos da rainha.

 

Tripulação: Cap Andreas Bernauer, Andreas Jr, Daniela, Ana Carolina

 

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