Pesca e pescadores: pesquisadores da PUCRS avaliam a pesca na lagoa do Casamento
Os navegadores pouco conhecem a atividade dos pescadores com quem
compartilham as águas. Conheça a realidade da pesca, especialmente na Lagoa
do Casamento, através do trabalho dedicado de um grupo de biólogos
sob o comando de um velejador

Paulo Cesar Carvalho Milani – Biólogo, Consultor Ambiental
Aloísio Sirangelo Braun – Biólogo, Bolsista de Pós-Doutorado – PUCRS
Nelson Ferreira Fontoura – Professor Titular - PUCRS
*

 

1.      Pequeno histórico da atividade pesqueira
A produção pesqueira nacional é constituída da pesca artesanal, pesca industrial e do cultivo de organismos aquáticos ou aqüicultura. Estima-se que na atividade pesqueira existam aproximadamente 700 mil pescadores, agrupados em 400 colônias, distribuídas em 23 Federações Estaduais e 18 Capatazias. Cerca de quatro milhões de pessoas dependem direta ou indiretamente da atividade pesqueira. Desses pescadores, 21% atuam na região Norte; 39% na região Nordeste; 18% na região Sudeste e 22% na região Sul.

Relatos de pesca artesanal na região do estuário da laguna dos Patos remetem ao final do século passado. Neste período exportava-se pescado e seus derivados para os principais mercados do Brasil, Uruguai, Estados Unidos e vários países da Europa. Entretanto, a partir da década de 40 houve um declínio da pesca no Delta do Jacuí. Para isso concorreram vários fatores: o grande aumento do número de pescadores, a pesca predatória e a competição feita pelo pescado proveniente de Rio Grande.

2.      Resumo da regulamentação da atividade pesqueira
A pesca é institucionalizada no país através do Decreto-lei n.º 221 de 28 de fevereiro de 1967, no qual a atividade é definida como todo ato destinado a capturar ou extrair animais e vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente meio de vida. Esta lei também enumera as modalidades estabelecidas e reconhece a natureza da pesca comercial. 

A regulamentação e controle dos aparelhos de pesca e implementos suscetíveis de serem
empregados na pesca e a proibição ou interdição de quaisquer usos destes petrechos
são competências do IBAMA

A portaria n.º N-038-A de 31 de Agosto de 1983 determina os tamanhos mínimos de capturas de algumas espécies de peixes de água doce e marinhos do Rio Grande do Sul. A tabela 1 destaca o tamanho mínimo para captura das espécies que habitam águas interiores.  

Tabela 1: Comprimento total permitido para captura e industrialização das espécies de peixes segundo a portaria n.º N-038-A, de 31 de agosto de 1983 e ato normativo 25/93.

NOME VULGAR

NOME CIENTÍFICO

TAMANHO MÍNIMO

Bagre

Genidens barbus

40cm*

Corvina

Micropogonias furnieri

30cm

Dourado

Salminus brasiliensis

55cm

Grumatã

Prochilodus lineatus

30cm

Jundiá

Rhamdia quelen

30cm

Peixe-rei

Odontesthes bonariensis

20cm

Piava

Leporinus obtusidens

25cm

Pintado

Pimelodus maculatus

18cm

Tainha

Mugil platanus

35cm

Traíra

Hoplias malabaricus

30cm

* Espécie com tamanho mínimo de captura contemplada pela Portaria/IBAMA 025/93 e 171/98
 

A portaria n.º 466, de 08 de Novembro de 1972, regula os petrechos de pesca que podem ser utilizados para a captura de pescado e restringe o uso dos seguintes parelhos:

a) redes de arrasto e de lance, quaisquer;

b) redes de espera com malhas inferiores a 70mm, entre ângulos opostos, medidas esticadas e cujo cumprimento ultrapasse a 1/3 (um terço) do ambiente aquático, colocadas a menos de 200m das zonas de confluência de rios, lagoas e corredeiras a uma distância inferior a 100m uma da outra;

c) rede eletrônica ou quaisquer aparelhos que, através de impulsos elétricos, possam impedir a livre movimentação dos peixes, possibilitando sua captura;

d) tarrafas de quaisquer tipos com malhas inferiores a 50 mm, medidas esticadas entre ângulos opostos;

e) covos com malhas inferiores a 50mm colocados a uma distância inferior a 200 metros das cachoeiras, corredeiras, confluência de rios e lagoas;

f) fisga e garatéia, pelo processo de lambada; e

g) espinhel, cujo comprimento ultrapasse a 1/3 (um terço) da largura do ambiente aquático e que seja provido de anzóis que possibilitem a captura de espécies imaturas.

A Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente Nº 26, Diário Oficial da União n° 214, de 8/11/2004 determina a época de defeso para a laguna dos Patos no período compreendido entre 1o de novembro de 2004 a 31 de janeiro de 2005. Neste período, permite-se o uso dos seguintes petrechos: anzol simples com linha de mão, caniço simples ou com molinete/carretilha e vara com linha; limitando-se a apenas um destes petrechos por pescador, com ou sem embarcação. A instrução normativa estabelece a captura de 5 Kg de peixe mais um exemplar por pescador, observando-se o tamanho mínimo das espécies, como no restante do ano.

3. Caracterização da fauna de peixes explorada comercialmente
Estudos ictiofaunisticos realizados no sistema da laguna dos Patos reportam a existência de existência de 121 espécies de peixes para a bacia hidrográfica, das quais 12 são consideradas comerciais.

As sete espécies mais comercializadas no município de Porto Alegre, capturadas no lago Guaíba e delta do Jacuí, são as seguintes: Pintado (Pimelodus maculatus), Tambicú ou Branca (Oligosarcus jenynsii e O. robustus), Jundiá (Rhamdia quelen), Grumatã (Prochilodus lineatus), Piava (Leporinus obtusidens), Traíra (Hoplias malabaricus) e Voga (Schizodon jacuiensis).

Em trabalho desenvolvido ao longo dos anos de 2002 e 2003, realizamos o levantamento do desembarque pesqueiro em Palmares do Sul, onde a maior parte do pescado capturado na lagoa do Casamento é comercializado. O acompanhamento do desembarque pesqueiro apresentou, no primeiro ano avaliado (03/2002 a 02/2003), captura de 171,3 toneladas de pescado, enquanto no segundo ano (03/2003 a 02/2004) ocorreu um incremento significativo para 320,2 toneladas.

Constatou-se que o comércio de pescado é voltado para 18 espécies (Fig. 1; Tab.1). Destes, cinco são os mais explorados: Viola (Loricariichthys anus), Traíra (Hoplias malabaricus), Jundiá (Rhamdia quelen), Tainha (Mugil platanus) e Bagre-marinho (Genidens spp.) Como há registro para a região de três espécies do gênero Genidens : G. barbus, G. planifrons e G. genidens, as quais não são diferenciadas pelos pescadores para efeito de classificação comercial, os Bagres-marinhos serão tratados em conjunto.

Não houve variações da composição do pescado entre o primeiro e o segundo ano de amostragem, o que demonstra uma estabilidade na diversidade das espécies. Destaca-se, entretanto, que a Corvina-de-rio (Pachyurus bonariensis) ou Maria-luiza, como é chamada localmente, passou a ser capturada em escala comercial a partir do segundo ano do acompanhamento. Esta espécie alóctone (originária de outra bacia hidrográfica) até recentemente apresentava registro apenas para bacia do rio Uruguai, sendo que atualmente encontra-se disseminada na laguna dos Patos, passando inclusive a fazer parte do estoque com importância comercial na lagoa do Casamento. Ressalta-se também a captura e comércio da Carpa, embora não saibamos se trata-se de Cyprinus carpio e/ou Ctenopharyngodon idella.

Dentre as espécies de interesse comercial capturadas, a viola (Loricariichthys anus) é a que sofre maior pressão de pesca, contribuindo com 49% do volume total desembarcado. Os demais quatro taxons elencados como mais explorados participam com os percentuais de 19% (Traíra), 10% (Tainha) e 6% (Bagre-marinho e Jundiá).

 



 Figura 1: Biomassa bruta anual dos taxons capturados pelos pescadores de Palmares do Sul na lagoa do Casamento, RS

 

Tabela 1: Lista taxonômica das ordens, famílias e nomes populares dos peixes de interesse econômico comercializados na lagoa do Casamento (RS), bem como o volume de captura anual e a forma preferencial de desembarque.

4. Resumo de biologia reprodutiva de espécies de peixes da lagoa do Casamento
           
Através de coletas mensais nas lagoas do Casamento e Gateados realizadas em entre 2002 e 2004, realizamos o levantamento de aspectos da biologia reprodutiva das principais espécies. A determinação do período reprodutivo e o tamanho com que fêmeas iniciam a reprodução encontram-se na tabela 2 a seguir.

Tabela 2:  Estimativa de tamanho de primeira maturação de fêmeas (comprimento total) e período reprodutivo (áreas cinzas) de espécies de dominantes nas capturas com rede de emalhar no sistema da lagoa do Casamento RS. Pontos de interrogação indicam falta de informação ou informação duvidosa.

Espécie

Jan

Fev

Mar

Abr

Mai

Jun

Jul

Ago

Set

Out

Nov

Dez

Tam. da

1° mat.

(cm)

C. voga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

15,1

O. robustus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

20,0

A. fasciatus

 

 

 

?

?

 

?

?

 

?

 

 

5,8

H. malabaricus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

13,9

P. bonariensis

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

13,1

P. maculatus

?

?

 

 

 

 

 

 

 

?

 

?

18,0

H. littorale

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

14,5

L. anus

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

24,7

T. lucenai

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

12,4

P. nigribarbis

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

8,0

O.  jenynsii

 

 

 

 

 

 

 

 

 

?

 

 

12,6

 

 5. Quantificação da dimensão da comunidade de pescadores da colônia de Palmares do Sul
A figura 2 apresenta o modelo básico de embarcação utilizada pelos pescadores de Palmares do Sul. As embarcações típicas da colônia são muito similares entre si, feitas de madeira, com comprimentos de cerca de 8 metros e motor de centro-diesel de 8 Hp. Na proa encontra-se uma pequena cabine criada através de uma lona fixada ao costado da embarcação. Este compartimento é o local de pernoite do pescador, que muitas vezes está acompanhado de sua família, especialmente no período de férias escolares. Animais domésticos, especialmente cães, são freqüentemente observados. O pescado é conservado em gelo em caixas de plástico ou isopor mantidas no convés e cobertas por uma lona plástica.


Figura 2: Embarcação típica utilizada pelos pescadores da colônia de pesca de Palmares do Sul, RS

Diagnosticou-se que a atividade da pesca artesanal na lagoa do Casamento é exercida, em média, por 89 pescadores identificados, embora entre 244 e 276 pescadores tenham efetuado até cinco desembarques anuais no período analisado, constituindo um grupo de pescadores caracterizados como amadores eventuais. Para identificar o segmento efetivo de pescadores profissionais, consideramos que os mesmos deveriam efetuar no mínimo 40 desembarques anuais, ou seja, um desembarque semanal, excetuando o período do defeso. Adotou-se este critério pois, através de entrevistas com os pescadores, identificou-se que os mesmos costumam permanecer em atividades de pesca contínua por até uma semana no período de inverno, já que as baixas temperaturas permitem uma maior durabilidade da carga de gelo que conserva o pescado. Durante o verão, o derretimento do gelo e o maior volume de pesca exige que o desembarque seja mais freqüente. Este critério de demarcação encontra-se representado na figura 13 como uma linha vertical preta. Dentre o grupo dos pescadores inventariados, apenas 30 – 37 sobrevivem essencialmente da pesca, o restante constitui um grupo de pescadores oportunistas que exercem atividade pesqueira como fonte de renda complementar.  

6. Rendimento financeiro gerado pela pesca artesanal na Lagoa do Casamento
Analisando-se a variação mensal da receita gerada pelo comércio de pescado da colônia de pescadores de Palmares do Sul (figura 3), percebe-se que há uma pequena fração da comunidade que consegue sobreviver essencialmente da pesca. O número de profissionais com rendimento a partir de um salário mínimo é inferior ao total de pescadores mensalmente identificados. Observou-se que há uma flutuação temporal no número de pescadores com renda efetiva, com variação de menos de 10 ao máximo de 90 indivíduos. Os maiores contingentes de pescadores com rendas superiores a um salário são identificados nos períodos mais quentes, onde ocorrem as maiores incidências de captura, e que curiosamente coincidem parcialmente com o período de defeso (01 de novembro a 31 de janeiro na portaria de 2004-2005).

 

Figura 3: Distribuição temporal do número de pescadores com desembarques registrados em Palmares do Sul, assim como o número de pescadores que obtiveram rendimento mensal superior a um salário mínimo.

  

7. Sugestões para o gerenciamento da pesca na região norte da laguna dos Patos.
            A portaria n.º 466, de 08 de Novembro de 1972, que regula os petrechos de pesca que podem ser utilizados para a captura de pescado, determina a proibição do uso de  redes de espera com malhas inferiores a 70 mm, entre nós opostos. Os resultados observados no estudo de curvas de capturabilidade por malha realizados através de nossos levantamentos corroboram a portaria supracitada, indicando como adequado o uso de malha de 70 mm entre nós opostos com intuito de preservar os estoques comerciais da lagoa do Casamento assim como a ictiofauna acompanhante, excetuados a Taínha e Bagre-marinho.

Observou-se no presente estudo que o rendimento financeiro gerado pela captura de pescado utilizando exclusivamente a malha 70 mm entre nós opostos acarreta para o pescador um retorno reduzido, sendo necessário o emprego de no mínimo 310 m de redes para a lagoa do Casamento ou 160 m para a lagoa dos Gateados para se obter uma renda média anual de um salário mínimo mensal. Considerando ainda os custos de combustível, gelo e depreciação de equipamentos, aqui não computados, acreditamos a atuação pesqueira legal e economicamente viável na lagoa do Casamento deva ter um módulo mínimo de 500 m lineares de rede com malha 70 mm entre nós opostos. Tal informação, cruzada com estimativas da real dimensão da comunidade pesqueira profissional, talvez não mais do que 35 pescadores,  demonstra que a atividade pesqueira deste pequeno grupo da colônia de Palmares do Sul deva ser exercida com grandes metragens de redes de emalhar. Informes verbais descrevem redes com extensões superiores a 1000 m.

Com base nos levantamentos de dados efetuados, concluímos a presente síntese com algumas sugestões para a implementação de uma política de gestão pesqueira específica para a lagoa do Casamento. Considerando que a mesma constitui-se, na verdade, em apenas um braço da laguna dos Patos, as medidas aqui propostas poderiam ser consideradas para a metade norte deste sistema, excluído o lago Guaíba, que por razões hidrológicas apresenta um comportamento distinto.

(1)   Em áreas de profundidades inferiores a dois metros, sugere-se a liberação da pesca, com rede de emalhe de 70 mm entre nós opostos esticados e espinhel, no período compreendido entre fevereiro e outubro de cada ano, preservando o período reprodutivo da maior parte das espécies.

(2)   Em áreas de profundidades superiores a dois metros, sugere-se que a rede de emalhe de malha 70 mm só possa ser utilizada nos meses de fevereiro, março, abril, setembro e outubro de cada ano. No período compreendido entre maio e agosto, em águas com profundidades superiores a dois metros, sugere-se o uso de redes de emalhar com malha mínima de 90 mm entre nós opostos esticados, de forma a se proteger o estoque do Bagre-marinho (Genidens spp.). A malha sugerida fica condicionada ao tamanho mínimo legal estabelecido para a espécie.

(3)   No período tradicionalmente compreendido pelo defeso, entre novembro e janeiro de cada ano, sugere-se a liberação da pesca em águas com profundidades superiores a dois metros, com rede de emalhar de no mínimo 90 mm entre nós opostos esticados (sujeito à revisão conforme o tamanho mínimo de captura da Taínha (Mugil platanus). Esta sugestão não se aplica a rios e canais onde possa ocorre a migração reprodutiva da Piava (Leporinus obtusidens), Grumatã (Prochilodus lineatus), Pintado (Pimelodus maculatus) ou Dourado (Salminus brasiliensis). Com esta sugestão objetiva-se a liberação da pesca da Taínha, abundante neste período e que não se reproduz na laguna dos Patos.

(4)   Adotadas as medidas acima, não haveria interrupção da atividade pesqueira ao longo do ano, de forma que o Seguro Desemprego para pescadores da região poderia ser suspenso.

(5)   Em programas de financiamento para atividades de pesca na região da lagoa do Casamento, o módulo mínimo de redes de malha 70 mm admitidos para sustentabilidade econômica do pescador deveria ser de 500 metros. Não dispomos de informação quanto à dimensão de redes de malha 90 mm entre nós opostos necessários para sustentabilidade econômica entre os meses de novembro e janeiro.

8. Sobre o trabalho e os autores
            Este trabalho constitui-se em um pequeno resumo da dissertação de mestrado de Paulo Milani e tese de doutorado de Aloísio Braun, ambas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Zoologia da PUCRS, sob orientação do Prof. Nelson Fontoura e financiamento do Governo do Estado através da FAPERGS (fotos a seguir).


O Formol 5, o barco de amostragens do Laboratório de Dinâmica Populacional da PUCRS
(o nome deve-se ao fato de que todo o peixe capturado vai para tarros com Formol, solução
utilizada para conservação. Atualmente as novas amostragens estão sendo feitas no Tiza).


Paulo Milani retira uma traíra da rede.


Aloísio Braun lança uma tarrafa para captura de pequenos peixes


Nelson Fontoura com rede para captura de larvas de peixes.


Staff de apoio: Camilla Barcelos e Camila Marrone
(são elas que medem e analisam cada peixe capturado)


Laboratório de Dinâmica Populacional da PUCRS


(*) [popa] O Comte Nelson Fontoura, do Clube dos Jangadeiros, tem empregado seu veleiro Tiza nas pesquisas

 

 

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