A solidão das sereias
Claudio Moreno

De todos os perigos que Ulisses enfrentou na viagem de volta para casa, nada se compara ao misterioso canto das sereias, de que fala Homero no livro 12 da Odisséia. Diferentemente das sedutoras sereias da tradição celta, belas mulheres dotadas de cauda de peixe, as sereias gregas eram criaturas horríveis, assemelhando-se a grandes pássaros com cabeça de mulher - castigo imposto por Afrodite, a deusa do Amor, porque elas se negaram a cultuá-la, preferindo permanecer virgens... Como eram filhas de uma das musas, podiam cantar com uma suavidade e harmonia inatingíveis por vozes humanas, usando sua arte para atrair os homens para a morte e a destruição.

Humilhadas por essa aparência monstruosa, retiraram-se para uma ilhota que fica a oeste da Sicília, e lá, instaladas no ponto mais alto, esperavam, vigilantes, até que o vulto de um navio apontasse no horizonte. Então, de repente, um grande silêncio descia sobre o mar, cuja superfície ficava lisa como um poço de jardim, e o seu canto começava, crescendo de um simples murmúrio à distância até encher o ar com a doçura venenosa de suas vozes. Enfeitiçados, os homens tomavam o rumo daquela ilha de costas verdes como uma esmeralda, e iam despedaçar o navio nos sinistros rochedos ocultos sob a água. Os que escapavam com vida eram devorados.

Ulisses foi o único mortal que continuou vivo depois de ouvi-las. Ao avistar a ilha, obrigou a tripulação a selar os ouvidos com cera de abelha e mandou que o amarrassem ao mastro, com as mãos para trás, e que apertassem os nós se ele tentasse fugir. A um sinal do imediato, cinqüenta remos feriram a água ao mesmo tempo, impulsionando o navio na direção das sereias. Elas, que tinham reconhecido o herói, dirigiram a ele um apelo que suas vozes mágicas tornavam irresistível: "Chega mais perto, afamado Ulisses! Pára teu navio e vem ouvir nossa voz, que só terás a ganhar! Sabemos tudo o que aconteceu em Tróia, e tudo o que vai acontecer. Vem, aproxima-te!" - e começaram a cantar. Os marinheiros, surdos, continuavam remando, enquanto Ulisses, com o rosto transtornado pelo que elas diziam, lutava desesperadamente contra a corda que lhe apertava os pulsos. Aos poucos, porém, a ilha foi ficando para trás, e as vozes dela se perderam na distância. Sem qualquer comentário, Ulisses retomou o comando.

O que ele ouviu, ninguém sabe. Ulisses jamais revelou o que, naquele dia, o levou a debater-se como um louco para se livrar das amarras - mas, ao que parece, as sereias souberam escolher as palavras certas para tocar seu coração, assim como o fariam com qualquer outro que delas se aproximasse. Na Grécia - como hoje -, essa sempre foi a triste sina dessas criaturas sedutoras, mas infelizes, condenadas à solidão de seu rochedo. Frustradas, incapazes de amar, aprenderam a usar o desejo dos outros para aprisioná-los com um canto em que tudo é só promessa, em que tudo é aparência. Muitos passarão por ali, trazidos pelas marés, mas essas pobres sereias jamais vão sair de sua ilha.

Publicado no jornal Zero Hora de P. Alegre em 16/01/2007. Claudio Moreno, meu ex-professor no Colégio Anchieta, é uma sumidade em Literatura e em outras fainas afins. IlustraçãoSheila McGraw

 

 

 

 

 

 

 

 

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