O Guaíba nos tempos da carochinha: o poço da ilha do Junco
Era uma vez o Rio Jacuí-Guaíba dos Patos
Nelson Ferreira Fontoura*

Nos tempos da carochinha, o Guaíba era um local aprazível, onde os banhos de fim-de-semana eram um programa corriqueiro. Alguns ainda se lembram destes tempos. Mas na verdade, gostaria de me reportar a tempos bem mais remotos, muito antes destas terras serem habitadas por qualquer europeu ou ameríndio.

A época geológica denominada de Pleistoceno, desculpem o nome feio, caracterizou-se por grandes oscilações climáticas. O Pleistoceno iniciou-se há cerca de 1,8 milhões de anos atrás, terminando há cerca de 10 mil anos, com o fim da última glaciação. Foi um período de grandes mudanças climáticas, caracterizadas por quatro grandes ciclos glaciais, intercalados por períodos mais quentes, denominados de interglaciais. Nesta época andavam por aqui grandes mamíferos, como preguiças de três metros de altura (ao lado) e tatus do tamanho de fuscas. O desenho animado "A era do gelo" dá uma idéia pitoresca de como foram estes tempos.

A Amazônia era uma savana e o Guaíba também era diferente. Quando se iniciou o período de aquecimento que levou ao final a última glaciação, há 16 mil anos, o nível do mar estava 25 metros abaixo do atual, em função da enorme quantidade de água retida em geleiras mundo afora. Naquela época, o Guaíba seria indubitavelmente um rio, bem encaixado e com percurso sinuoso, tal como o baixo Jacuí. Passava no estreito entre a ponta da Fortaleza e a ilha do Junco, seguindo então para a planície costeira. A laguna dos Patos também não existia como hoje: era simplesmente a continuação do Guaíba-Jacuí, em forma de rio sinuoso.

Com o degelo, o nível do mar aumentou ao que conhecemos atualmente. O Guaíba passou a ser chamado de lago pelos geógrafos e o "rio" dos Patos encheu-se de água, formando uma laguna. Desde então a profundidade original destes corpos de água foi diminuindo gradativamente, fruto da deposição sucessiva de sedimentos finos (argila e silte) que desciam do Jacuí e demais rios da bacia.
Só para terem uma idéia, a coluna de sedimentos "novos" da laguna dos Patos alcança cerca de seis metros, em sondagem preliminar que fiz no ano passado. Considerando um tempo médio de alagamento de 12 mil anos, só para arredondar, temos uma deposição média de meio milímetro por ano. No fundo, a vocação natural de qualquer lagoa é virar banhado, é só uma questão de tempo.
Mesmo assim, o Tiza, calando um metro, ainda vai poder navegar por muito tempo: mil anos a mais que barcos calando 1,5 metros.

Outro aspecto interessante é que o aumento do nível do mar não foi constante. Houve pequenas flutuações das chamadas transgressões e regressões marinhas, a última a cerca de cinco mil anos. Nesta época, uma pequena regressão do mar acabou por formar a linha de lagoas marginais que corre ao longo da costa norte do Rio Grande do Sul.

O que me parece mais interessante neste processo é que, ao mesmo tempo em que estas lagoas estavam sendo formadas, os Faraós do Egito já estavam construindo as suas pirâmides. Estas lagoas são todas conectadas, parecendo um imenso rosário, e vão do sul de Torres (lagoa Itapeva) à Cidreira (Lagoa Cerquinha). Já percorri quase todas de lancha, mas isto é outra história.

E o poço entre a ponta da Fortaleza e a ilha do Junco? Eu mesmo já medi mais de 30 metros e o livro do mestre Geraldo Knippling cita profundidades de até 64 metros. Ali provavelmente ocorre o seguinte: com a passagem forçada de toda a água da bacia Jacuí em uma garganta rochosa estreita, a velocidade de corrente impede que os sedimentos finos se depositem, sendo os mesmos continuamente ressuspendidos na água. Permanece a profundidade original de tempos remotos, no leito escavado pelo antigo Jacuí-Guaíba.

Quem quiser um contato íntimo com este passado pré-histórico, é só dar um mergulhinho, ou tentar pescar um bagre-marinho, que são comuns neste poço profundo.

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(*) Bacharel em Ciências Bioógicas, ênfase em Zoologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná (1987) e doutorado em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná (1993). Atualmente é professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia Aquática, atuando principalmente nos temas de crescimento, reprodução e ocupação de hábitat de crustáceos e peixes, além de pesca e gestão pesqueira.