Investigando acidentes
A profundidade do relatório do MAIB
D
anilo Chagas Ribeiro


18 Set 2007
F
azer investigações é algo enfadonho para alguns. Para outros pode ser apenas uma formalidade. Dependendo do objetivo, o relatório de uma investigação pode ajudar a salvar vidas, como no trabalho do MAIB - "Marine Accident Investigation Branch", ou Agência de Investigação de Acidentes Marítimos. O órgão britânico investiga acidentes com navios do Reino Unido em qualquer parte do mundo, e de quaisquer navios nas águas britânicas.

"O único objetivo das investigações de acidentes do MAIB é determinar as circunstâncias e causas do acidente com vistas a preservar a vida e evitar acidentes no futuro, sem atribuir culpa ou responsabilidade", declara o MAIB, um órgão subordinado diretamente à Secretaria de Estado para o Transporte, do RU.

Li boa parte de um relatório elaborado pelo MAIB. Apesar de extenso e pesado, não conseguia parar de ler. A descrição do acidente é incrivelmente bem detalhada, certamente com base em interrogatórios e muita investigação.

Descrevendo o acidente - A luta para sair da cabine
O relatório descreve um acidente na costa do RU com um veleiro de 35' (foto) fabricado na Holanda em 2002. O Hooligan V perdeu a quilha às 3:20h da madrugada com 5 tripulantes, e emborcou. Um tripulante morreu. Ao emborcar, o comandante e um tripulante não apareceram na superfície, em noite de lua cheia, com 1,5m de swell, a uns 10ºC na água e uns 9 no ar.

A luta do comandante para sair da cabine ainda com a "bolha de ar", enleado nos cabos do cockpit, e o sumiço de um dos tripulantes são muito bem narrados, embora seja uma descrição técnica, sem emoção. Antes da terceira tentativa para sair do veleiro, o comandante joga para fora a caixa com os foguetes e outra com acessórios de emergência, incluindo gps, espelho (para fazer reflexo do sol e ser visto), e protetor solar dentre outros utensílios.

Hipotermia: cuidado com o choque térmico no sobrevivente
A luta contra a hipotermia do comandante, a dificuldade para soltar o liferaft (balsa auto-inflável), o lançamento de um facho luminoso para dentro d'água, por erro. A bobeira batendo na tripulação devido à hipotermia.

Um dos navios na área viu os foquetes e foi socorrer. Embarcaram os sobreviventes na Ponte e mediram a temperatura do comandante: 30ºC. Quiseram colocá-lo sob o chuveiro quente. Dois tripulantes do Hooligan V conseguiram convencer o pessoal do navio que um choque térmico pode ser ruim em uma situação dessas, e que deviam deixá-lo na cama, aquecendo-se naturalmente.

Um reflexo na água
Às 7h um helicóptero veio guinchar os sobreviventes. Um pouco antes a tripulação de um navio nas redondezas avisa que observou algo refletivo na água. Era o tripulante perdido, com o colete inflado mas com o capuz contra respingos (como o ao lado) ainda dentro da bolsinha na cintura. E morto.
O relatório diz que o capuz impede a entrada de água pelas vias aéreas e que os tripulantes tomaram muita água até subir na balsa.

Mas isso é só o começo do relatório de 57 páginas...

Ao ser retirado do mar "para evitar acidentes", o veleiro foi muito prejudicado. Os cabos para prendê-lo ao barco que o rebocou devem ter sido de aço e esticados demais a ponto de rasgar a fibra.

Rolando demais
O Hooligan V utilizava fin keel, uma quilha estreita e profunda. Pouco antes do acidente, havia 25 nós de vento e Força 6, diz o relatório. Usavam a segunda forra do rizo e planejavam usar a terceira e enrolar 2/3 da genoa (já enrolada 1/3) porque o barco rolava muito (andava muito de lado), certamente já pelo ângulo defeituoso da quilha. No entanto, a tripulação não desconfiou do problema, e achou que era por causa do vento.

Problema "genético"
O pessoal do MAIB foi verificar o estado das quilhas de outros barcos iguais ao Hooligan V. Observe-se a profundidade do trabalho de investigação. O Who Cares havia sido retirado da água há algum tempo porque mostrava-se inclinado lateralmente. A quilha apresentava falha no mesmo lugar da quilha do Hooligam V. Outros dois barcos vistoriados apresentavam problemas na quilha.

Coeficiente de Segurança equivocado
O projetista reconhece que o coeficiente de segurança 2 deveria ser empregado no cálculo da quilha. Entretanto, seus cálculos dizem que o Coeficiente de Segurança "deve ser 2,0 ou mais". Os projetistas de veleiros dizem que utilizam de 2,5 a 3,5. Há evidências de que foi utilizado o coeficiente 1,23.

Adaptação...
O fabricante da quilha não é do ramo náutico, mas propôs alterações no projeto da raiz da quilha para facilitar a construção. O construtor do barco concordou, sendo que o projetista só ficou sabendo depois do início da construção. E caso se aprofundasse nas alterações veria que tinha alto risco.

Construção com problemas
Cada um dos 3 parafusos de fixação da quilha tinha seu torque definido em projeto, mas não constavam do manual do proprietário.
A flexão da quilha em relação ao casco destruiu a aplicação de anti-corrosivo, enferrujando parafusos. O que causou a falha nos parafusos de fixação junto às porcas fixadas na quilha (desenho ao lado) foram as contínuas reversões do esforço de deflexão (encurvamento da quilha no eixo vertical para boreste e bombordo).

Impacto com container?
Contudo, no mês anterior vários containers caíram de um navio com problemas na região. O MAIB correu atrás da hipótese de um impacto, mas a falta de arranhões no casco e o fato da tripulação não ter sentido batida nem vibração logo antes do acidente eliminaram esta possibilidade. O efeito final da fadiga na quilha é ilustrado no relatório pelas figuras acima.

Encalhes
O pessoal do MAIB soube que o veleiro já havia encalhado duas vezes e que isso poderia ter prejudicado a quilha. Diz o relatório: "O risco de encalhar é um perigo diário para quem usa a água comercialmente ou por prazer. Para minimizar o risco, os projetistas de barcos levam em conta a carga adicional suportada pela quilha e por seus parafusos nos encalhes".

Conclusões e providências
O relatório concluiu que houve falha no cálculo da quilha e em sua fabricação. O projetista informou sobre o acidente aos proprietários dos outros barcos iguais ao Hooligan V ("Max Fun 35") e avisou que não deveriam ser desatracados antes da emissão do relatório do MAIB. O novo projeto foi aprovado pelas autoridades como excedendo os limites exigidos. Dos 9 barcos iguais, 7 já tiveram a quilha substituída e os outros dois estão sendo providenciados. .

O acidente ocorreu em 3 de Fevereiro de 2007. O relatório tem data de Agosto de 2007. Em 6 ou 7 meses estava tudo pronto, com conclusões e recomendações objetivas, e já com os erros corrigidos nos barcos iguais ao acidentado.
Veja a íntegra do relatório para entender a profundidade e a extensão da investigação.

É assim que tem que ser feito!

Links (em inglês):
Relatório citado acima, contendo diversas fotos (PDF 3,5MB)
Site do MAIB
Formulário para relatar um acidente

Colaboração: João Jungmann