Excursão do Umuarama
Diário de
bordo dos anos 40
Texto:
Jorge Gross
Transcrição e comentários: Carlos Altmayer Gonçalves Manotaço
Originalmente publicado na Revista Yachting Brasileiro nº
22 (Agosto – 1946)
24-1-1946 - Depois de algumas semanas de “ planos, preparativos, etc...”, eis chegado o dia da partida para a viagem a Rio Grande. São quase 11 horas quando estamos prontos para largar. Sempre há muitas cousas para serem preparadas e guardadas, mesmo quando, segundo constava, “já estava tudo pronto”. Constatamos entristecidos que a bebida abordo ainda não está gelada, o que faz necessária mais uma subida até a copa do Clube, para satisfazer esta nossa grande necessidade espiritual ! Assim, saudamos devidamente, com um copo geladinho, o início da excursão, que começa bem, pois o comodoro já perdeu uma manilha.
[Comodoro: Erwin Bier, comandante do Umuarama. Umuarama: local de encontro de amigos. Em tupy – guarani.]
Durante toda a manhã soprara maravilhosa brisa norte, mas quando largamos do flutuador, o ar está completamente parado. Apelamos para o motor que, porém, como sempre nessas ocasiões, só depois de algum trabalho resolve contribuir e funcionar. Enquanto isso, a nossa “pérola” Hansi [Hansi Von Ortemberg, casada com Joachim Von Ortemberg eram parceiros de Erwin Bier até os tempos do Umuarama III, em fins dos anos 60. É de autoria deles os belos quadros do Guaíba que ornamentavam a sede do VDS e do CDJ]está ativamente ocupada com a fabricação de sanduíches, etc... A “beleza” do motor anda com defeito na bomba d’água e somos obrigados a pará-lo. Em vão rogamos aos céus que nos mandem um tostão de vento. Finalmente as nossas preces são ouvidas, mas a primeira rajadinha leva à água uma carta que se achava sobre a cabine, a secar. No Frigorífico suprimo-nos de gelo e por volta das 12 horas estamos seguindo com uma brisinha. Vem o almôço. Eis o menu: Arroz – bom; Ervilhas – salgadíssimas; Filé – ótimo ! À tarde o vento norte melhora. Vamos na moleza, tomando Brahma chope... devido às ervilhas – sempre é bom ter-se um pretexto. A vitrola funciona e os livros de anedota também. São 19 e 30 hs. quando chegamos ao Sítio. “Atlantis”, nosso companheiro de viagem, já se encontra aí. O barômetro está baixíssimo, 742. Espera-se um furacão e todas as pequenas embarcações aguardam, no abrigo do Sítio, um tempo melhor.
25 – 1 1946 – Esta foi uma noite diferente! Chuva e vento sibilante, mas sempre conseguimos dormir um pouquinho. Ao despertar, temos a agradável visão de um tempo melhorado, barômetro subindo, com vento leste moderado. A novidade do dia é a doença do Thoeming; diagnóstico do médico de bordo: “Superabundância alimentar e falta de bebidas geladas”. Depois de um bom banho, preparamos o barco, seguindo às 6 e 30 hs. Viajando, saboreamos o nosso café. Às 7 e 30 hs., já passado o Itapoã, muda o vento para norte, barômetro 745. Às 15 e 45 hs. passamos o marco do banco de São Simão, ficando o farolete à distância por boreste. Durante todo o dia temos a visão de “tempo quente” por todos os lados, principalmente para o norte. Afora algumas chuvas, porém, nada acontece; à tarde o vento noroeste transforma-se em brisa bem aceitável. Chegamos a Cristóvão Pereira às 18 e 30 hs. Visita ao faroleiro Sr. João Nunes Pereira. O farol construído em 1861 tem 28 m de altura. Segundo o nosso relógio, os intervalos de luz são de 10 segundos, mas o faroleiro afirma serem 7 e que a nossa “cebola” não está certa; depois lemos no Roteiro que o intervalo é de 10 segundos mesmo. De noite temos ventos de diversas direções e intensidades, um pouco de chuva, etc...Dormimos muito bem.
26 – 1 – 1946 – Pela madrugada, sobrevém um fortíssimo sul. O “Atlantis” refugia-se ao nosso lado, pois o seu primitivo ancoradouro fica muito exposto ao rebojo. Estamos algo em dúvida se devemos sair com este tempo. Ao içarmos a vela, os óculos do Erwin vão à água. Baixamos novamente o pano, para mergulhar em procura dos óculos, mas estes, talvez por serem do tipo invisível, não são encontrados. Pensando:-“ao diabo com a vida malvada”, resolvemos deixar a cousa como está, para ver como fica. Passeamos em terra, caçamos, isto é, dão-se tiros nas narcejas que pouco ligam, visitamos mutuamente os barcos, dormimos e, naturalmente, comemos (não pouco) nos demais momentos. Admiramos a “gostosa” decoração interna do “Atlantis”, bem como os seus esquisitos adornos e recipientes para bebidas. Durante a manhã continua o rebojo, que vai acalmando pela tarde, passando depois para suleste, barômetro em alta. A chuva cessara cedo e tivemos ao todo um belo dia, cheio de alegria e dois ovos de avestruz. Com o vento cada vez mais de leste, passamo-nos para o outro lado da ponta, rebocados pelo “Atlantis”, vulgo Miraguaia II.
27 – 1 –1946 – Saída às 4,45 hs. vento SSE, de fraco a fraquíssimo. Depois de avistarmos o farolete do Banco Dona Maria, ainda leva horas até o passarmos, isso por volta do meio-dia, já então com vento SSO ainda fraco. “Miraguaia II”, digo “Atlantis”, que estivera longe atrás, resolve ler o nome do “Umuarama”, pintado na proa. Para tanto, o motor funciona velentemente. O almôço hoje é domingueiro, “com sobremesa”. Passagem pela altura do Capão da Marca às 15 e 30 hs. Que miséria de bordêjo com estes dois tostões de vento ! Êste, finalmente, melhora à tardinha. Como prova de sua satisfação pela boa marcha do barco, Jorge derruba o lampeão, cujo vidro se parte, provocando isto cara feia do Erwin.Chegada ao Bujuru às 19 e 45 hs. , visita à ruína. Barômetro 761.
28 – 1 – 1946 – Saída às 4 e 45 hs., vento ESE, a princípio fresco, depois enfraquecendo, barômetro 756, tempo bom, algo nublado. Encontro com “Silvina” às 06 e 30 hs. Farolete Estreito às 11 e 30 hs., vento bom, rondando para leste. Na pescaria “a la indiana”, perdemos o croque e há complicadas manobras para reavê-lo. Batemos algumas vezes no fundo, também encalhamos seriamente. Finalmente seguimos em águas mais decentes e às 16 hs. temos Rio Grande bem próximo, a vista. Paramos em frente a São José do Norte, para esperar por “Atlantis”, que chega pouco depois. Estamos às 19 hs., onde, com grande pesar, metemos a navalha em nossas barbas de vários dias.
ESTADIA NO RIO GRANDE
Passeios, compras, cassinos, visitas ao Capitão do Pôrto, jantar oferecido pelo Rio Grande Yacht Club, visita aos nossos barcos por Mr. Wigg, Hannes, Altmayer [Dr. João Hugo Altmayer, na ocasião era o comodoro do R.G.Y.C.]e outras figuras simpáticas; todos fuçaram muito bem impressionados e animados com as “finas” bebidas que oferecemos.
31 – 1 – 1946 – Preparamo-nos para a saída. Antes vamos até o “Silvina” entregar as fotos que fizemos dele na Lagoa (deve ser um lanchão ou hiate). Largamos às 7 e 20 hs., depois do “Atlantis”. Ao bordejar pelo Pôrto Velho com fortíssimo leste, acontece o 1º incidente:- a chícara do Jorge, ainda com café, derrama sobre o colchão, por castigo sôbre o dêle mesmo. “Atlantis” segue na nossa frente e toma rumo pelo Pôrto Novo. Nós cortamos e já pelas 8 horas e pouco São José do Norte fica pela pôpa. O 2º incidente:- o capitão pergunta de que lado devemos deixar as bóias vermelhas. Seguimos com vento à feição, marcha vertiginosa.
[Jorge Gross ao leme, demonstrando a satisfação que uma boa timoneada dá ao velejador; já o rosto do comandante Erwin Bier demonstra uma certa preocupação, coisa de dono de barco, sempre preocupado com coisas materiais, eventuais quebras, etc... ]
“Atlantis” não está à vista. Mais um incidente:- o capitão vivia garganteando por não ter encalhado nenhuma vez quando no leme, lá pela zona da ilha Saragonha e Estreito. Não levava ele em conta que, nas horas em que lhe tocava o leme, sempre havia água suficiente. Pois hoje ele conseguiu encalhar dentro do pôrto. Viva ele! – não deixa de ser uma boa alma e muito aproveitável para lavagem do convés. Às 11 e 45 hs. já estamos em frente ao canal de Pelotas. Há pouco tomamos um rizo. Com aproximadamente 143 bordejos alcançamos, mais ou menos, às 16 hs. 2 minutos e 32 ½ segundos, a ilha Holandesa. O “Atlantis” nos alcançou várias vezes durante o percurso, o que nos causou grande consternação. Consolamo-nos com a explicação do milagre: - uma leve fumacinha no cano de escape do motor.
1º - 2 – 1946 – Ficamos por aqui a espera de melhor tempo. Sopra um leste de amarelar a vida. Os iates e lanchões, aqui em grande quantidades ancorados, também não tem vontade de meter o nariz para fora de abrigo dos bancos da Feitoria. Pouco ocorre durante o dia, continuando fortíssimo leste, acompanhado de chuvas. De noite afastamos o barco da ilha e largamos dois ferros, cada um com mais de 30 metros de corrente e cabo. Às 24 horas o esperado temporal sul, violentíssimo, com bonitos raios e trovões. Bela fosforescência da água. Pouca ocasião para dormir.
2 - 2 – 1946 –Saída às 7 e 30 hs., vento ESE forte e chuva infame. Tomamos um bom rizo e lá fora substituímos a bujarrona normal pela pequena. Bordejamos na direção do canal que vai ficando a boreste.
Fazendo áspero caminho de barlavento, em bolina cochada, e o bordo de sotavento nágua até o convés.
Mais tarde viramos de bordo e tomamos um rumo que fica ao norte do Estreito. Tornamos a aumentar o pano enquanto o vento diminui, parecendo que teremos tempo feio ao norte. O “Atlantis” não nos seguira; até onde nos foi possível vê-lo, permanecia ancorado. Pela metade da manhã o vento cessa completamente e é desagradável ficar sem marcha ao sabor das ondas altas. Finalmente levanta vento fraco de SE e seguimos rumo ENE, barômetro 754 em alta. Ao meio-dia já estamos refeitos do trabalhinho que tivemos de manhã na chuva, vento e ondas. Constatamos que calculamos mal a existência de fósforos. Ao pegarmos a última caixinha, iniciamos um racionamento total, ficando acesso um lampeão para os cigarros. À tarde temos vento NE algo fresco. Chegamos ao Bujuru às 21 hs. Também “Atlantis” chega pouco depois. O motor precisa completar 25 horas de trabalho. Interessante fenômeno:- a poucos Km de nós, que estávamos em meio de um vento violento, o “Atlantis” ficara parado devido à calmaria...
3 – 2 – 1946 – Saída às 6 e 30 hs., desta vez “Atlantis” na frente, vento fresco NE; barômetro 754, tempo bom. Com dois bordejos deixamos, às 8 horas, o farolete Bujuru a boreste (devem ter pernoitado na Barra Falsa de Bujuru). “Atlantis” já está alcançado, então. Pouco antes das 16 hs. passamos o farol Capão da Marca e vamos ao logarejo ali existente, para fazer compras... de fósforos, outras cousas não existem (pelo menos no momento). No caminho para o barco sofremos o ataque de um casal de quero-queros. Às 18 horas aproximamo-nos de Cristóvão Pereira. Mas o que pensamos ser o Cristóvão Pereira é um ceboleiro, só mais tarde aparece o verdadeiro farol. Às 20 horas, encontramos, ao largo do farol, o “Amaragy”. Êste diminui a marcha e oferece auxílio. Agradecemos, pois julgamos que seria tomado por deboche, se pedíssemos gelo, que é a única cousa que nos falta.
4 – 2 – 1946 - Acordamos
às 5 hs. e chamamos o “Atlantis”. De lá respondem,
mas, enquanto nos preparamos, vemos que tudo continua escuro. Às 5 e 30 hs. estamos
em marcha. Até às 9 hs.
seguimos com brisa NE e alcançamos o farolete Desertores, onde
o vento dá o último suspiro. Colocamos o motor pela primeira vez na Lagoa
e, viva !! – ele funciona imediatamente, mas não
por muito tempo. Limpeza do carburador, velas, etc., e grande esforço para faze-lo trabalhar novamente.
Depois é a bomba d’água que não vai bem e após várias tentativas, durante
as quais este instrumento infernal algumas vezes faz que vai e outras
vezes também não vai, - desistimos. Na completa calmaria, ancoramos com 6
a 8 metros de fundo. Tomamos banho, almoçamos, dormimos, etc... Às 13 horas
levantamos ferro e seguimos com uma insignificante brisa SO, que aumenta levemente.
Em tôrno de nós o horizonte não está nada simpático. Barômetro
752. Por algumas vezes ainda conseguimos funcionar o motor e à noite estamos
próximos ao Itapoã. Para passa-lo, perdemos cerca de três horas, devido à forte
correnteza, apesar de termos o motor que, quando esfria, sempre trabalha um
pouquinho. Seguimos navegando noite adentro. Ao clarear do dia 5-2-1946, estamos
em frente de Belém Novo. O céu a oeste é um único clarão e por volta das 7
hs. descarrega-se o temporal,
com forte chuva, aproveitando nós este vento para chegar até Ponta Grossa.
Depois tudo de novo é calmaria e levamos ainda muito tempo até que chegamos
à casa do Erwin, na Pedra Redonda, que assaltamos,
como verdadeiros piratas que somos, ao menos pela aparência barbuda e a cor
escura das camisas brancas. A pirataria rende um saboroso café com todos
os pertences. Às 11 horas seguimos, vento oeste, novamente bem forte. Alcançamos
o clube às 14 horas, todos satisfeitos com o esplêndido decorrer da excursão.
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Revista Yachting Brasileiro nº 22
Agosto – 1946
Comentários por Carlos Altmayer Gonçalves
- Manotaço
Veja mais fotos desta navegada em Ah se o Atlantis falasse...
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