Navegando na Lagoa do Casamento
Danilo Chagas Ribeiro

A Lagoa do Casamento, ao norte da Lagoa dos Patos, é um destino pouco explorado pela navegação de recreio gaúcha. A região é bela, com fauna e flora ciliar abundante. A água é limpa pela ausência de civilização às margens. Os ventos são limpos também, pela região descampada. A pesca é difundida na lagoa.

Empecilhos para conhecer a Lagoa do Casamento
A baixa profundidade do acesso à lagoa costuma ser o maior empecilho aos velejadores cruzeiristas. Como a lagoa está a umas 50 milhas (quase 100km) de Porto Alegre, precisa-se mais de 2 dias para um passeio por lá. A entrada da lagoa tem sido feita pelo Canal do Furado. A rota via Ponta do Abreu não era muito popular.

Alternativas de acesso
Com o fim do tráfego lacustre no início do século passado, o Canal do Furado tornou-se assoreado. Há ocasiões em que a entrada do canal (NE) retém galhos, troncos e árvores inteiras, tornando a navegação, se não impossível, perigosa. A alternativa descoberta pelo Comandante Luiz Eduardo Perez Portinho para entrar na Lagoa do Casamento é contornar a Ilha do Furado, deixando-a por boreste (SE) e, navegando próximo a ela, tomar o rumo do Jacarezinho. Veja imagens e cartas em anexo.
O Comandante Manotaço sondou a passagem pela Ponta do Abreu em 2005 e encontrou profundidades bem maiores do que as até então conhecidas.

O Feitiço
O Feitiço é um Delta32 muito especial, com uma enorme cabine. Calando apenas 1,20m com a bolina recolhida, o Feitiço é um projeto único de Nestor Völker baseado no casco padrão. Dois lemes, mastreação completamente diferente e vela grande enrolada dentro do mastro são algumas das diferenças em relação aos Delta32 de série.

Navegação noturna
Desatracamos o Feitiço do Veleiros do Sul na noite de quinta-feira, dia 20 de outubro de 2005, com o Rio Guaíba encostado nos trapiches. Planejamos dormir na Praia do Sítio, junto ao Farol de Itapuã, na foz do Guaíba. Na sexta-feira iríamos até a Lagoa do Casamento, retornando no sábado, já que no domingo teríamos que votar (referendo do desarmamento).

Com Itapuã no través aí pela uma da manhã de sexta-feira, o Comandante Jorge Grossman Zaduchliver propôs seguirmos direto ao destino. Navegação noturna é comigo mesmo. Cylon Rosa Neto foi descansar, ficando para o quarto de serviço seguinte. Tomamos um café e jogamos uma hora e meia de conversa fora fundeados na Praia do Sítio. Aí pelas 4 da manhã entramos na Lagoa dos Patos.

Três navios muito iluminados nas proximidades do farol esperavam o amanhecer para poder subir o Guaíba. A lua estava poderosa. Velejamos no RM 122º* até o cotovelo das Desertas, enluaradas. Cruzamos o baixio a motor, em baixa velocidade, sobre os waypoints do Mestre Knippling.


Cruzando a Ponta do Abreu
Daí à Ponta do Abreu é uma reta (RM 58º). Neste trecho vimos o sol nascer e passamos por pescadores.

O vento escasseou. Era hora de passar pelo canalete de acesso à Lagoa do Casamento, que aliás estava totalmente fora da caixa. Era água pra todos os lados. Não havia um canalete demarcado, mas apenas uma idéia de onde ele estaria. Isso nos levou a estimar onde estaria o traçado do Manotaço, e a tentar o caminho, com 'direito' a errar e voltar um pedaço.

Na volta viemos pelo trackback*. Que brinquedinho...

A Lagoa do Casamento estava alta. A "Passagem do Manotaço", com +-1,8mn de extensão, tem a profundidade variável, sendo a menor constatada, de 2,50m (Guaíba tocando o trapiche do Veleiros; Régua Harmonia com 2,00m). Confirmaram-se as profundidades levantadas pelo Manotaço em relação ao Guaíba meio metro mais baixo.

Sanga do Pimenta
Fomos direto à Sanga do Pimenta utilizando os waypoints do Comandante Portinho. A carta e a planilha que ele preparou são extremamente úteis (link no fim deste texto). Chegamos às 8:30h de sexta-feira e atracamos o Feitiço na barranca.

Decidimos aproveitar o dia, deixando o sono pra lá. Passeamos de bote pela sanga, velejamos até o Rio Morto, e depois cruzamos o Monjolo, a passagem entre a Ilha Grande e o continente. Voltamos à Sanga do Pimenta no meio da tarde. O sono e a fome começaram a apertar. O Cylon assou um saboroso churrasco à beira d'água, enquanto o comandante e eu subimos a sanga no bote. Às 21:30h todo mundo já tinha ido dormir.
O local tem acesso fácil por terra, não sendo por isso dos mais confiáveis quanto à segurança. No entanto, não vimos ninguém (talvez por não ser final de semana).

Atrações da Lagoa
Pio de vários bichos, canto de muitos pássaros. Diversos tons de verde, o reflexo do sol da manhãzinha na água quieta da sanga, mais pássaros, mais bichos. Bandos de quase 100 marrecas. São as atrações daquela natureza pujante. Paisagens alternadas entre os descampados e os capões na costa da lagoa. Canais e ilhotas.
Passeando com o bote na sanga do Pimenta, o Cylon deu de cara com uma família de capivaras. O Rio Morto é um curso d'água sem saída, de 1,2mn, com uma grande variedade de espécies da flora. Muitas bromélias sobre as árvores, e muitos peixes pulando na água.

Um pouco de História
Por ali onde navegamos, passou o safado do Giusepe Garibaldi em 1839, a bordo do Seival, na Revolução Farroupilha.
Anos depois, por volta de 1910, a lagoa do Casamento fazia parte da rota do comércio entre Porto Alegre e Torres. Os vapores vindos do Guaíba passavam pela Lagoa dos Patos para entrar na Lagoa do Casamento e chegar a Palmares do Sul, à beira do Rio Palmares. Dali, por estrada de ferro, iam a Osório, e daí pelas lagoas do litoral norte chegavam quase a Torres. Naquela época, conta o Comandante Portinho, o Canal do Furado era periodicamente dragado para que as embarcações dos Diehl, Dreher & Cia Ltda transportassem suas mercadorias.

Recordando Walt Disney
Encontramos diversos barcos pesqueiros, desde a saída da Lagoa dos Patos. Os pescadores, via de regra, são prestativos e amistosos. Mas nem sempre.
Na entrada NW do Monjolo encontramos o barco Lais de Guia. Os 3 pescadores a bordo estavam jogando as redes, e ficamos na dúvida se poderíamos passar por onde intencionávamos. Tentamos contato.
- Tem rede aqui?, perguntou o comandante, apontando na direção suspeita.
(sem resposta)
- Tem rede aqui?...
(nada de resposta, a 10 metros de distância, motores desligados, sem vento)
- Por aqui tem rede?
(nada)
- Dá pra passar por aqui?...
Finalmente veio resposta seca do timoneiro:
- Tem bebida?

Aquela região alagadiça da Lagoa do Casamento faz lembrar da Everglades, na Flórida, onde o vilão João Bafo-de-onça circulava nos barcos de pântano com sua típica truculência. Tudo a ver.

Armadilhas do Casamento
A Lagoa do Casamento apronta as suas. Em uma das inúmeras vezes que o Comandante Portinho velejou por lá, passou a noite atracado no Arroio Cavalhada, onde entrou com 1,20m de profundidade. O vento Nordeste bateu forte a noite toda. No amanhecer apareceu a surpresa. O arroio tinha apenas 55cm de profundidade. Ficaram 2 dias presos. Mas assim como o NE forte pode baixar muito a lagoa, o Oeste encarrega-se de enchê-la novamente. Em nossa navegada tivemos pouco vento. Usamos bastante o motor, como no Rio Morto (foto ao lado).
O Comandante Portinho chama a atenção para a saída da lagoa com o Nordeste soprando forte. Se encalhar, é mais complicado para sair.
E dá mais uma dica: se nos pontos do Mestre Knippling das Desertas houver 1,20m, de modo geral as profundidades na lagoa estarão ótimas para um O'Day23.

Banho de lagoa nas Desertas
No retorno da Lagoa do Casamento, fundeamos o Feitiço lá na Ponta das Desertas para tomarmos um banho na Lagoa dos Patos. A água ali é muito clara. A largura da ponta é algo como 400m. Bem próximo dali haviam umas árvores altas, das poucas que cresceram nas Desertas. Há também animais. Uma manada de cavalos (menos, menos), aparentemente selvagens, galopava pelo areial com potrilhos. Tarrãs e outras aves compunham a orquestra.

O graxaim e a lebre
Em uma das praias que visitamos no passeio haviam pegadas e mais pegadas de bichos, na maioria aves. Cylon identificou pegadas que mostravam a perseguição havida ali na véspera. Um graxaim correu muito atrás de uma lebre que fez uma virada de bordo radical para bombordo para escapar dos dentes do perseguidor.

Volta
Na volta passamos pela praia do Tigre, sem desembarcar, e atracamos na Ilha Chico Manoel, onde permanecemos por uma hora. Navegamos 120mn (222km), em 46h. A navegação foi feita por GPS em grande parte do percurso (à noite, em redundância). O motor foi utilizado talvez na metade do percurso, pela falta de vento. Trechos a motor foram timoneados pelo piloto automático. A navegação estimada foi realizada a partir das cartas da Marinha e do Comte Portinho, e com informações do Comte Manotaço e do meu Mestre Knippling. Colaborou também com informações Christina Silveiro. Os agradecimentos da tripulação do Feitiço a toda essa gente boa.

Ao comandante Jorge Feitiço, muito obrigado pela belíssima navegada propiciada, e pela excelente companhia nesta indiada inesquecível. Ao Cylon, muito obrigado pela iniciativa e companheirismo a bordo.

Como nos velhos tempos
Um veleiro é sobretudo aquele barquinho de criança, e o
s tripulantes são aqueles mesmos caras que brincavam com ele. Os videogames chamam-se GPS, Eco, Plotter, mas encantam do mesmo jeito. Temos também nossos monstros marinhos para atucanar. Embarcamos para resgatar o gosto pela aventura, em busca de atividades lúdicas. Navegamos para ter o prazer de conviver harmoniosamente com nossos pares, em contato com a natureza.
Para mim, acima de tudo, é este o significado da expressão "Navegar é preciso". E como é preciso!

-o-

Versos de cruzeiro

Tomar banho de lagoa
enquanto o canto da bicharada ressoa.
Assar carne, na beira da sanga, com fogo de lenha.
E contar histórias, e ver o pôr-do-sol enquanto convenha.

Navegar por instrumentos, na escuridão.
O sabor de encontrar o destino, sem a visão.
Ver o sol nascer
depois de virar a noite, por puro prazer.

A lua acompanhando a madrugada
da sexta-feira enforcada.
Tudo como na adolescência.
Prazeres quase esquecidos.
Reminiscências.

Disso tudo só resta uma certeza.
Por aquele rumo não cruzou a tal da tristeza.

Track completo da navegada em arquivo PLT para Ozi Explorer (zipado, 36KB)

Track da Passagem do Manotaço com 9 pontos em arquivo PLT para Ozi Explorer (zipado, 1KB)

Contatos pelo VHF na região (canal 16)
Condomínio Esmeralda (Lagoa dos Patos, quase na Pta Abreu)
Veleiro Aruanã (Rio Palmares)

Artigos relacionados:
- Navegando de Porto Alegre a Palmares
- Cartas, waypoints, fotos (outras velejadas)
- Um Day Sailer na Lagoa do Casamento
- Pesca e pescadores (pesquisa da PUC)
- A felicidade nem sempre está a sotavento

_____________
(*) Rumo Magnético
(**) trackback é um recurso do GPS que permite voltar exatamente pelo caminho da ida.
1mn = 1 milha náutica = 1.852m
.

Horários aproximados
(lidos do track)
Veleiros do Sul (Partida) 22:15 quinta-feira
Ponta Grossa 23:15  
Ilha Chico Manoel 23:45  
Saco de Itapuã 01:00 sexta-feira
Ponta da Fortaleza 01:50  
Praia do Sítio (chegada) 02:10  
Praia do Sítio (saída) 03:30  
Farol de Itapuã 03:40  
Travessia das Desertas 05:45  
Nascer do Sol 06:35  
Passagem do Manotaço (entrada) 07:15  
Passagem do Manotaço (saída) 08:00  
Sanga do Pimenta (chegada) 08:30  
Sanga do Pimenta (saída) 10:10  
Rio Morto (entrada) 13:15  
Rio Morto (saída) 13:58  
Passagem Monjolo NW 14:02  
Passagem Monjolo SE 14:21  
Passagem Monjolo NW 14:40  
Ilha do Furado 15:25  
Sanga do Pimenta (entrada) 16:25  
Sanga do Pimenta (saída) 09:40 sábado
Passagem do Manotaço (entrada) 09:58  
Passagem do Manotaço (saída) 10:11  
Travessia das Desertas 11:38  
Parada para banho nas Desertas 12:00  
Retomada 13:00  
Praia do Tigre (passada) 14:07  
Retomada 14:18  
Farol de Itapuã 14:35  
Ilha Chico Manoel 16:30  
Retomada 17:20  
Veleiros do Sul (Chegada) 19:45  

 

 

 

 

 

O track do Feitiço

 

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