Guerra dos Farrapos - a navegada em busca da paz
A história enredada no folclore
Danilo Chagas Ribeiro

Set 2005
O Circuito Conesul de Vela Oceano é certamente o acontecimento náutico mais importante do sul do Brasil. O evento acontece na Semana Farroupilha, compondo a comemoração da data mais importante do Rio Grande do Sul. Fazem parte do Circuito, a Regata Troféu Seival, a Regata Farroupilha e o Velejaço Farroupilha. O Rio Guaíba fica ainda mais bonito, todo colorido.

Pensei em aproveitar a oportunidade para mostrar algo sobre a Revolução Farroupilha, mais comemorada no Rio Grande do Sul do que a Semana da Pátria. Mas fiquei espantado quando vi os parcos resultados deste mega-entrevero ocorrido há 170 anos. Aprofundei os estudos e compreendi que não era bem o que eu havia aprendido até então.

Guerra dos Farrapos em um parágrafo
O Rio Grande do Sul sentia-se desprestigiado pelo Império. Segundo o professor historiador Dr. Moacyr Flores, a luta ocorreu "por idéias liberais, como acontecia em todo mundo, isto é, a não intervenção do Estado na economia, o controle do poder Executivo pelo Legislativo a fim de evitar o absolutismo, por uma nova Constituição de acordo com os costumes e pela federação.". Em outro plano, a então província sofria a concorrência econômica dos países do Prata e pleiteava a redução do imposto sobre o charque produzido no RGS, do imposto sobre o sal importado, e do imposto territorial sobre as estâncias. Como o Império não atendia os apelos, foi declarada a guerra. Na melhor das hipóteses eram menos de 5.000 Farrapos na população de 400.000 gaúchos. Não tinham recursos e lutaram arduamente. Proclamaram a República Sul-riograndense, isto é, declararam-se independentes do Brasil. Dez anos depois, exauridos, fizeram as pazes com o Império sem terem obtido o que reivindicavam.

Ganhos
Apesar da Guerra dos Farrapos ser motivo de muito orgulho do povo gaúcho, o ganho efetivamente obtido, ou as "conquistas", restringiram-se aos assuntos da guerra propriamente dita1, como a alforria aos escravos que participaram da peleia, se bem que não foi bem assim2. Segundo informou também o Dr. Moacyr Flores ao Popa.com.br, "os negros foram traídos em Porongos porque Caxias tinha ordens de não lhes conceder anistia. Levaram os negros capturados em Porongos e os que foram entregues pelos Farrapos para a fazenda de Santa Cruz e para o Arsenal no Rio de Janeiro".


A 'mui leal e valorosa' cidade de Porto Alegre prepara-se
para a comemoração maior do Rio Grande do Sul

Foto: Terra

Negando o estribo
Os Farrapos chegaram ao ponto de negar a anistia oferecida por D. Pedro II, em que pese no fim da guerra não chegavam nem a 2.000 revolucionários. E inda tudo espraiado e esgualepado...

Poupando os Farrapos do pior
Em 1842 o império contava com 16 batalhões e 12 regimentos de infantaria no RGS, portanto esbanjando superioridade. Em outros levantes no Brasil, os rebeldes foram completamente aniquilados, mas aqui interessava mantê-los vivos.

E por que?

Para que os Farrapos lutassem a favor do Império contra o ditador Rosas, o argentino que havia tomado o Uruguai e ameaçava tomar o Rio Grande do Sul. A opção do Império pela paz, em vez de aniquilar com os Farrapos, tinha portanto segundas intenções.

Contra o buçal imperialista
Foram 10 anos de insurgência, alvoroço, mortes e pobreza, que terminaram em uma rendição em 1.845, e não em acordo de paz, como ainda gabam-se alguns3. No mais, restou do mais longo conflito interno da história do Brasil, a fama da valentia e da resistência da gauderiada contra o buçal imperialista. Foi um posicionamento extremado diante do descontentamento de uma gente aguerrida e difícil de se resignar.

Mesmo sem a vitória almejada, a história conta que o Império passou a ver a Província com outros olhos depois da guerra, o que legitimou os esforços dos Farrapos. Se não pela vitória, pela disposição à peleia contra o cabresto. Mas pelo que se lê e se viu, efetivamente o RGS nunca foi uma província ou um estado muito prestigiado pelo governo federal. Nem mesmo quando os presidentes eram gaúchos.

Navegada ao Rio de Janeiro
Durante a guerra, o farrapo Antonio Vicente da Fontoura, meu penta-avô, escrevia cartas à esposa diariamente. Era uma forma de registrar o que pensava. Seus diários foram publicados em 1934, 90 anos depois. Além do dia-a-dia na campanha, deixou o relato da navegada ao Rio de Janeiro, a bordo de um vapor, representando os Farrapos em busca da paz. A situação era muito ruim. Já faltava o que comer. O Império ofereceu um "vapor" para os Farrapos apresentarem-se à Corte, no Rio de Janeiro.

Em 28 de Novembro de 1844 Vicente da Fontoura embarcou, em Pelotas, a bordo do vapor Fluminense, de 25HP, comandado por Cunha, ex-prisioneiro de guerra dos Farrapos. Ia com ele o irmão do Barão de Caxias, e uns prisioneiros para trocar no Rio. Por falta de calado, somente no dia 29 chegaram a São José do Norte. "A vila é tão feia que parece mais um estéril presídio de degradados. As ruas pela maior parte atravancadas de areia e outras úmidas em extremo".

Em 2 de Dezembro, Vicente da Fontoura atravessou a "baía de 3 léguas" para chegar ao "Rio Grande do Sul" (Rio Grande). Havia chegado do Rio de Janeiro o vapor Imperador, no qual embarcaria para a Corte.

Em 8 de Dezembro desembarcaram na Cidade do Desterro, em Santa Catarina, entrando pela barra norte. "A cidade é pequena, pouco mais que Rio Pardo, porém é formosa. Apesar de que não tivemos vento à popa, todavia não foi tão contrário que deixássemos de ter uma boa viagem".

Em 10 de Dezembro "em frente à Ilha São Sebastião bordo do paquete vapor Imperador. O vento contrário que trazíamos desde ontem fez o comandante tomar o caminho entre a terra firme e a ilha".

Em 12 de Dezembro chegaram ao Rio de Janeiro. "Apesar de estar ainda com meu pequeno casaquinho de campanha, tenho corrido já uma pequena parte da cidade, está situada entre morros , mas ao que parece é suntuosa e de elegantes edifícios ornada".


Antônio Vicente da Fontoura

Um Gaudério na corte
Apressar o fim da Guerra dos Farrapos interessava ao Império. Mesmo assim, quando meu penta-avô chegou no Rio de Janeiro, ficou indignado com o pouco caso que a corte dispensou a ele. Escreveu Antonio Vicente da Fontoura sobre os "amestrados da corrupção da corte": "Ostentaram uma indiferença ridícula e um orgulho tolo! Estavam reunidos. Nem mais de três artigos das proposições ou bases para a paz eles ouviram porque suas bruscas respostas olvidaram minha natural docilidade e, em tom mais agro, desdobrei verdades a ouvidos não afeitos a ouví-las.
Que nada podia o governo imperial ceder; que seria manchar o manto imperial e que ao Barão de Caxias haviam autorizado para, por mais três meses, conceder a anistia e que não sabiam como grupos dispersos de rebeldes inda pretendessem do governo tanto quanto era a indiferença com que olhavam sua clemência e que, finalmente, dariam algumas instruções mais ao barão, que em muito pouco mais assentisse, depois porém que os rebeldes depusessem as armas...".
(o grifo é nosso)

Mais adiante, Antonio disse: "Do estrangeiro aprenderam só o mau, esquecendo o bom. O luxo que ostentam os empregados públicos não pode manter-se com seus ordenados, inda que duplicados fossem".

Em 18 de Dezembro, Vicente da Fontoura registrou:
"Queria o Cavalcante, ministro da Marinha, que eu ficasse aqui preso e isto só porque o bati calorosamente na conferência que tivemos ontem à noite, com todos os ministros. Com tais gentes, feita está a reação do absolutismo. Oh Liberdade! Quantos algozes!
Amanhã devemos embarcar no vapor Paranapitanga, de força de 60 cavalos, visto que o Gambá embirrou em não querer que voltemos no vapor em que viemos que é de força de 120 cavalos, de muito melhores cômodos e de mais segurança para atravessar o Oceano, pois no Paranapitanga, com qualquer vento teremos de arribar, tornando mais longa a viagem que se quer fazer com rapidez".

"Rio de Janeiro, 19 de Dezembro de 1844. Depois de termos hoje pelas 4 da tarde embarcado, voltamos à cidade porque o comandante, em razão do vento contrário, só amanhã é que pretende sair. Voltaremos para bordo antes de amanhecer".

21 de Dezembro de 1844.
"A bordo do vapor Paranapitanga , em frente à Vila Bela da Imperatriz, em S. Sebastião. São 4 horas da tarde e acabamos de fundear e, como o vento está forte, temos que esperar que abrande porque o comandante, além de sua família, traz mais de passagem outra que, além dos maus cômodos do barco, veio mais para flagelar-nos com uma récua de filhos malcriados, uma mãe desmazeladíssima.
Há pouco veio um velho com a sua canoinha vender-nos uvas, são boas e grandes, e já quando passamos comi pêssegos em Santa Catarina".

24 de Dezembro "Cidade do Desterro, em Santa Catarina. Mais uma arribada, não só por causa do vento, como para meter carvão porque já era pouco. Amanhã prosseguiremos nossa derrota5".

"Norte, 27 de Dezembro de 1844.
São 2 da tarde e poucos momentos há que entramos a barra, vendo com indizível prazer as colinas da pátria". (por pátria referia-se à República Rio-grandense)

2 de Janeiro de 1845, Piratini
"Eis-me pela primeira vez na capital da República e no momento em que está ocupada pelas armas imperiais!
A 29 do mês passado, pelas 9 da manhã, deixamos o Norte, chegando a Pelotas a bordo do vapor Rio-grandense, pelas 2 da tarde do mesmo dia, e a 30, pelas 6 da tarde, principamos nossa marcha para a campanha, deixando Pelotas".

X

Dessintonia
"O dístico da Porto Alegre Leal e Valorosa vem da Guerra dos Farrapos (o título foi recebido em 1841), sendo Valorosa pela expulsão dos Farrapos e Leal pela opção em continuar brasileira", afirmou o comandante professor historiador Tau Golin ao Popa. Assim, o escudo de Porto Alegre mostra a capital do Rio Grande do Sul contra os Farrapos. Já a bandeira gaúcha mostra-se como da República Rio-grandense (proclamada pelos Farrapos em 1838), e mostra a data do início da Guerra. Enaltece, portanto, a Revolução Farroupilha.
E as crianças que entendam essa história... Afinal de contas, os Farrapos eram mocinhos ou bandidos?

Pirataria oficial
Corsário é o navegante que ataca embarcações mercantes e apodera-se de sua mercadoria, com o beneplácito do governo. É um pirata oficial. Corsário é também a embarcação usada para este fim, o fim de fazer o corso, isto é, o saque.
O italiano Giuseppe Garibaldi veio para o Brasil foragido de Gênova, onde havia sido condenado à morte. Ao visitar um amigo na cadeia, em Salvador, conheceu outro prisioneiro, chamado Bento Gonçalves da Silva, presidente da República Rio-grandense, que concedeu-lhe uma carta de corso, isto é, nomeou-lhe corsário. Do que Garibaldi pirateasse, um quarto seria dos Farrapos, e o resto dele e de sua tripulação, conta o historiador Moacyr Flores.

Saque, rapto, fuga
De saída, Garibaldi atacou uma embarcação com café, escravos e passageiros. Com tripulação escassa, afundou seu próprio barco e levou a embarcação saqueada ao Uruguai, onde vendeu a mercadoria. Acabou perseguido por uma lancha uruguaia e foi-se à Argentina, subindo o Prata, em meio a uma tempestade. Lá foi preso. Depois, veio para a fazenda da irmã de Bento Gonçalves, no Rio Camaquã, e junto com John Griggs, mercenário americano que construiu dois lanchões
(desenho ao lado), atacou Laguna onde raptou a mulher de um sapateiro. Combatido pelos imperialistas, fugiu ao RGS, e "pediu as contas" aos Farrapos, alegando que não tinha mais barco para o corso e que não era dado à lida da campanha. E assim se foi à Europa levando a lagunense raptada. Lá continuou lutando por dinheiro.

Fabricando um mito
Garibaldi foi mitificado pelo romancista francês Alexandre Dumas que escreveu suas memórias em 1860, e despachou-as para Pelotas. Lá se lê, por exemplo, que Garibaldi, de seu camarote, apaixonou-se à primeira vista por Anita, ainda virgem, vendo-a trabalhar em sua casa na lida doméstica. Quando viu a moça, disse-lhe: "Virgem, pertences-me!" (Dumas, p. 94). Na verdade, Anita era casada há mais de 5 anos. Nestes termos, imagino que faltou dizer que o Negrinho do Pastoreio foi o cupido.
Este é o resumo da história contada pelo Doutor Moacyr Flores, em série de cinco capítulos. É uma obra prima.

A quem interessa fabricar heróis?

História x Folclore
O folclore nutre-se legitimamente de lendas e de crenças, mas a história não pode ser infiltrada por interesses tradicionalistas. Observa-se esforço secular fomentado pela cultura regional, para dotar a história gaúcha de conotações de bravura e de mérito à insurgência, tendo os Farrapos por exemplo.

É louvável lutar pelo que se acredita em vez de resignar-se facilmente, mas parece haver constante tentativa de idealização de personagens do passado, em benefício da religiosidade cultural. Resta desse engessamento a forte identidade cultural dos gaúchos, que permitiu implantar seus Centros de Tradição Gaúcha até mesmo no exterior.

Que a história verdadeira da Revolução Farroupilha seja contada. Se perdemos a guerra, que sirva-nos de exemplo. E se com ela ganhamos reputação, pois que seja então explorada em nosso benefício, e não apenas exaltada em versos. Esta providência é mais importante do que proibir brincos em orelha de homem em bailes tradicionalistas.

Ao contrário de outros estados brasileiros, o Rio Grande do Sul tem um poderoso e benéfico culto à tradição. No entanto, a valorização da gente gaúcha não pode estar escorada no palanque do cultivo ao folclore, nem na valentia. Afinal, "não basta, pra ser livre, ser forte, aguerrido e bravo. Povo que não tem virtude acaba por ser escravo"4.

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(1) Anistia aos revoltosos, integração dos oficiais rebeldes ao Exército Imperial com suas patentes, liberdade para os escravos que haviam participado da guerra, devolução a seus donos de todas as propriedades ocupadas ou confiscadas durante a guerra, pagamento pelo Império das dívidas da guerra e indicação pelos Farrapos do presidente de sua Província.

(2) Os negros que ainda estavam incorporados no final da guerra, foram entregues a Caxias e mandados para o Rio de Janeiro para os trabalhos de galés, isto é, escravo do Estado. Estes cento e poucos sobreviventes trabalharam no porto da capital do Império, especialmente na sua construção e reforma (Tau).

(3) Não houve o Tratado de Paz de Ponche Verde, pois a assinatura de paz só poderia ser feita entre dois Estados, e o Império considerava os Farrapos apenas como rebeldes. Na verdade, os rebeldes foram anistiados pelo imperador conforme documento que concedia o perdão. Muitos oficiais farrapos desconheciam o "pedido de perdão" coletivo feito pela delegação farrapa. Ao descobrirem, transformou-se na causa de muitas desavenças entre eles após a guerra (Tau).
Em dezembro de 1844, a proposta de anistia foi aceita e solicitada por escrito pelos Farrapos! Em 23.2.1845 todos já haviam pedido anistia (Flores).

(4) verso do hino rio-grandense.

(5) Derrota é um termo de uso náutico, sinônomo de rota, que significa caminho por navegar.

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Comte Tau Golin

- Este artigo contou com importante colaboração do jornalista Aldo Tedesco.

- O professor da PUCRS Moacyr Flores foi escolhido "Historiador do Ano" pela Sociedade de Cultura Latina do Brasil (SCLB). Flores é doutor em História, pesquisador e autor de 18 livros, entre eles "Dicionário de História do Brasil", "História do Rio Grande do Sul" e "Colonialismo e Missões Jesuíticas". Seus trabalhos de mestrado e doutorado abordaram a Revolução Farroupilha.
Veja artigo do professor Moacyr Flores publicado pelo Popa.com.br: O Quilombo da Ilha do Barba Negra.

- Tau Golin é doutor em História e jornalista. Professor das disciplinas de Cultura Brasileira, Comunicação Comparada e História Regional Comparada, respectivamente, no Curso de História, na Faculdade de Artes e Comunicação e no Mestrado em História da Universidade de Passo Fundo, RS.

- Nascido e criado no Rio Grande do Sul, valorizo os feitos da nossa gente e cultivo os costumes desta Terra. No meu barco tremula a bandeira da "República" junto com a bandeira nacional (foto mais acima). Sou a favor da manutenção dos costumes e da tradição. Entendo que o povo gaúcho tem valores de sobra e que não precisa forjar qualidades, conquistas, vitórias, nem heróis.
Que nossa história, a gente aceite, seja ela qual for. Sem enfeite. Sem flor.

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Hino Rio-Grandense
Oficializado pelo Decreto 5.213, de 5.1.1966
Letra: Francisco Pinto da Fontoura
Música: Comendador Maestro Joaquim José de Mendanha
Harmonização: Antônio Corte Real
Ouça o Hino Riograndense
(mp3, 32kbps, 700KB)

Como a aurora precursora
do farol da divindade,
foi o Vinte de Setembro
o precursor da liberdade.

Estribilho:
Mostremos valor, constância,
nesta ímpia e injusta guerra,
/sirvam nossas façanhas
de modelo a toda terra./bis

Mas não basta pra ser livre
ser forte, aguerrido e bravo,
povo que não tem virtude
acaba por ser escravo.

Estribilho

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Comentários: info@popa.com.br

 

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