Veleiros do Sul em águas do Rio da Prata
José Andino Mônaco, Revista Yachting Brasileiro nº 45, Julho de 1948
Transcrição por Carlos Altmayer Gonçalves Manotaço

Diário de bordo do “ORION”, de Porto Alegre
em viagem de cruzeiro a Punta Del Este

Enfim largamos, de nosso ancoradouro, situado na bela enseada que o Morro do Sabiá forma no estuário do Guaíba, 8 milhas ao Sul de Porto Alegre, a uma distância de 16 milhas da Lagoa dos Patos, a qual, com 180 milhas de extensão, desemboca no Atlântico.

Dizemos enfim, porque estávamos cansados dos intermináveis preparativos para a nossa excursão, na qual, pela primeira vez, um iate de recreio riograndense cruzaria águas estrangeiras.

Como esse cruzeiro de férias ameaçava perder-se na ultimação dos preparativos, resolvemos partir, faltando apenas receber a bordo a nova andaina, pois a que envergávamos tinha a seu haver seis anos de uso.

Desculpávamos-nos desta séria omissão, por levarmos um grande de 20 m2, para usar sem retranca, lona nº12, costurada a mão e toda empalombada, vela nova e utilíssima para travessias de mar, para ser usada em combinação com velas de proa, das quais levávamos bom sortimento.

Forçamos a partida, porque era necessário agir, para não cairmos no círculo vicioso em que navegam muitos veleiros, que passam a vida aprontando-se para viagens que nunca se realizam, por falta de tempo...

Esta temporada de vela, ora finda, caracterizou-se, no Sul, pela anormalidade do regime de tempo da estação, ventanias, aguaceiros, trovoadas, frio...e alguns dias de verão.

Fevereiro, 10 – Saímos de tardezinha. Ao anoitecer, em conseqüência da chuva diluviana, pernoitamos ao abrigo da ilha Francisco Manuel. Valemo-nos da oportunidade para fixar na retranca o aparelho de rizar a mão, o qual deveria ser usado constantemente na viagem. Calafetamos algumas goteiras de convés que encharcavam os beliches de ré e dormimos.

Quarta-feira, 11 – Às 6, zarpávamos com o mesmo SE sujo (1) e depois de algumas bordejadas curtas, atingíamos o Farol de Itapoan. Às 9 horas, entravamos na Lagoa dos Patos, que estava em ebulição, pelo tempo SE reinante havia diversos dias. O “Orion” galgava facilmente as ondas, com rumo de S1/4SW, envergando roupa de mau tempo, isto é, capa grande, vela de estai e bujarrona.

A bóia de luz encarnada, que marca a extremidade ocidental do célebre banco de São Simão, foi deixada pelo través, às 15 horas, e o mar começou a amainar, porque nesta altura o tempo começa a vir de terra. O Farol Cristóvão pereira foi montado às 17 horas e, navegando ao abrigo da costa Leste, atingimos às 19 horas o farol Capão da Marca, que dá abrigo dos ventos de NE a SE. Largamos ferro, para terminar, durante parte da noite, a instalação de luz elétrica nos faróis de posição e na lâmpada dos vaus do mastro.

Quinta-feira, 12 – Na mudança de quarto da meia-noite, ou seja, à 0 hora, continuamos viagem, com o mesmo tempo, porém, com as luzes de navegação em ordem, as quais agora eram necessárias, pois fazíamos a rota dos vapores, encontrando-os seguidamente.

Às 2 deixamos por bombordo a luz encarnada da extremidade Norte do pequeno banco do apagado farol de Bujuru e a seguir marcamos por boreste a luz branca da bóia da extremidade Leste do banco do Vitoriano. Às 11 horas, entramos no canal da Feitoria. Amainando o vento SE, aproveitamos a ocasião para envergar todo o pano. Várias vezes usamos a máquina por medida de segurança, tal a intensidade do tráfego. Na altura da barra do rio São Gonçalo, o nosso amigo sudeste refrescou, caindo em rajadas violentas, obrigando-nos a rizar. Na altura da bóia do Mosquito, uma refrega, arrancou-nos o punho do grande, obrigando-nos a arriar o pano imediatamente, para evitar avaria maior. O motor auxiliar entrou imediatamente em ação e mandamos envergar a vela grande de capa, porém não fomos atendidos com presteza, pois alguém achou este medida excesso de prudência.

Resultado: o motor, ouvindo isso, resolve enguiçar, deixando-nos sem governo no canal e derivando lentamente para o banco do Diamante, que estava à nossa espera na beira do canal.

Fundeamos imediatamente, porém, o ferro não unhava em razão do vento de través e da forte correnteza contrária. Felizmente, depois de poucos minutos, tendo nós limpado o filtro de combustível, o motor arrancou novamente. Fizemos o resto do trajeto, entrando na doca do Rio Grande Yacht Club às 17 horas e amarrando onde tinha estado havia pouco o “Alfard”, do Y.C.Argentino. (barco vencedor da 1ª Regata Buenos Aires-Rio de Janeiro, realizada em janeiro de 1947).

Sexta e Sábado, 13 e 14 – Permanecemos no porto, costurando o punho do grande, recosendo velas, recebendo víveres, substituindo escotas velhas por novas, as duas adriças do triângulo de proa e, muito especialmente, observando o tempo, na esperança que pronto rondasse para o quadrante N. No entanto, o barômetro continuava baixo, as enxárcias assoviavam, dia e noite, e ocasionalmente desabava um aguaceiro de SE.

Domingo 15 – Enervados pela demora no porto, resolvemos sair assim mesmo, porém, ao comunicarmos às autoridades do clube, desaconselharam-nos dizendo que seria uma loucura porque a previsão deles era de rebojão (2) iminente.

Atendemos aos conselhos que nos davam esses conhecedores do tempo local. Enquanto esperávamos, fizemos-lhes o convite de um passeio até os molhes da barra em companhia de mais alguns sócios. Saímos dos molhes até sentirmos o efeito dos vagalhões vindos do largo, que se viam rebentar no banco fronteiriço à barra. Ficamos com a impressão que no dia seguinte o vento rondaria para Leste, permitindo-nos a saída.

Desta nossa esperança, porém, nada dissemos aos nossos convidados, pensando eles que com este passeio estavam satisfeitas nossas ambições.

Segunda-feira, 16 – De madrugada, o vento estava de Leste a Lesnordeste. Imediatamente tiramos da cama o solícito secretário do clube e obtivemos por empréstimo o álbum de entradas de portos uruguaios, editado pela revista argentina “Neptunia”, que veio completar a coleção do Yachting Brasileiro, em que veio publicada a carta nº 90 e com estas revistas, praticamente navegamos até Punta Del Este, como demonstraremos mais adiante.

Às 9 horas, envergando roupa apropriada, o “Orion” estava cumprindo sua missão, deixando pela popa a barra do Rio Grande e recebendo os cumprimentos de Neptuno, que o lavava de proa a popa.

O mar desencontrado, a seguir ordenou-se e o “Orion”, acomodando-se ao seu elemento, fazia 7 nós marcados pelo hodômetro; a tripulação, por sua vez, entrou na rotina dos quartos, de dois homens cada quatro horas, com duas horas no leme, cada um, sendo que até o grumete de bordo governava. O rumo foi de S1/4SW até o Albardão, cuja luz avistamos às 20 horas. Durante a noite defrontamo-nos com as luzes de diversos vapores pela proa, ganhando confiança em nossa navegação.

Terça-feira, 17 – Amanheceu e o “Orion” continuava aumentando o número de milhas percorridas. Vento e mar continuavam Leste. Mar de vagalhões, os quais, quando encarneiravam, cobriam-nos como poeira da estrada. No mais, navegávamos com segurança e com o mínimo de desgaste de material e de forças, graças ao velame apropriado.

A vida animal manifestava-se por toda parte: gaivotas, petréis, lobos em abundância e tubarões. Observamos um elefante marinho (espécie de lobo grande) emergir da água cabeça e robusto pescoço de pele rosilha. Abocanhou uma corvina, despedaçando-a em duas partes, uma delas saltou e o bichano apanhou-a no ar com grande destreza, mergulhando.

Nossa carta brasileira nº 90 (Santa Catarina a Maldonado) estava sendo consultada. Foi colocada entre as costas do navegador e a braçola da cabine. Ele sentado na bancada do paneiro. Alguém pediu ao navegador que alcançasse a lata das bolachas e este se abaixou para apanha-la. Uma rajada arrebatou a carta de onde estava, projetando-a n’água. Em poucos segundos, desaparecia pela popa. E agora?

-“Agora temos as revistas”. Foi a resposta.

O mar de azul turqueza denunciava maior profundidade e de vez em quando evitávamos trechos de águas descoradas, que na carta perdida eram assinalados com cuidado. Que seria? Sondamos com nossa sonda de 15 braças, porém não alcançávamos o fundo; afinal resolvemos investir sobre elas e constatamos que a tal água descorada era composta de lençóis de milhões de corpúsculos marinhos empurrados pelo vento.

Como navegávamos pela estima, resolvemos aterrar sobre a costa uruguaia para nos certificarmos de nossa posição. Para este fim, arribamos duas quartas. Às 7 horas, com duas horas mais, avistamos pela proa uma vela de carangueja, à qual demos caça. Às 10 horas, além da vela do motoveleiro, víamos cômoros altos de areia e às 10 um farol que somente poderia ser o do cabo Polônio. O nosso barco piloto orçou um pouco para montar o cabo e nós com toda a satisfação o seguimos em suas águas. Às 13 tínhamos o cabo Polônio pelo través e o nosso piloto já se havia sumido.

Pela bochecha de bombordo, o timoneiro avista outra vela, enchemo-nos de curiosidade, pois, hoje em dia, é coisa rara avistar velas no mar. Quando a vela se define triangular e bordejando no bordo de terra, ficamos excitados. Que iate de recreio será? Quando está a três milhas, com todo “trapo” em cima, destacando-se no azul turqueza do mar sua alvura imaculada, não tivemos mais dúvidas. É um patrício nosso, o “Vendaval”, que volta carregado de troféus conquistados em duras pelejas contra os melhores timoneiros do continente. Não somos reconhecidos, porém explica-se, estamos camuflados pela costa e pelo sol no ocaso.

Ao anoitecer, avistamos uma vilazinha iluminada, a cavaleiro de um cabo, e neste, um farol. O Santa Maria, sem dúvida. Na parte Norte está o porto de La Paloma, cuja entrada é NW. Como era de noite e viajávamos com vento a favor NE, preferimos continuar nossa singradura e entrar em Punta Del Este pela madrugada. Pelas 23 avistamos, pelas enxárcias de boreste, luzes de outro farol que constatamos ser o de José Ignácio. Depois, avistamos outra luz pela proa. Pela estima, era o possante farol de Isla de Lobos, que ficou perfeitamente identificado. Vimos o setor de luz encarnada que marca seus recifes.

Como dissemos, tudo corria normalmente, porém o barômetro mais baixo ainda, apesar da noite estrelada. Será praxe, mesmo, o Rio da Prata cobrar tributos aos que se aventuram pela primeira vez em suas águas? Pois bem, estamos dispostos a pagar o preço da entrada!

Nublou-se o SW e depois o Sul escureceu sobre nossas cabeças. Ouve-se a arrebentação da costa, depois para o vento. Temos apenas o tempo suficiente de arriar o grande, envergar a vela de capa. E com todas as honras recebemos o dono da casa, apresentando a popa às furiosas rajadas do pampeiro.

Quarta-feira, 18 – Às 2, estávamos valentemente correndo com o tempo, recebendo, uma vez por outra, bateladas d’água pelas costas, pois o pampeiro caia sujo. Aos que perguntarem porque não capeamos, etc., etc..., responderemos que fossem ver o “Isola”, que esteve na Guanabara e estava então em Punta Del Este e observassem as avarias sofridas por ter querido capear um pampeiro, ao sul do banco Inglês. Perdeu a lancha, uma amurada completa e saiu com o mastro trincado.

Às 4, como amainasse um pouco e como estávamos tão perto do porto, içamos as velas pesadas e ajudados de motor tentamos teimar com o pamperito, tendo às 8 o farol de José Inácio pelo través.

Porém o SW redobrou o fôlego, estabelecendo-se rijo, levantando um mar impressionante e que dava gosto de sentir. Como afinal de contas nossas velas não eram de confiança, resolvemos arribar sobre La Paloma, por medida de prudência. Esta empopada foi sensacional e ninguém a bordo lhe perdia um detalhe. A marcha era de 8 milhas ou mais, o mar de vagalhões e quando arrebentava alguma crista, encharcava a todos no paneiro. Às 13 preparávamos-nos para entrar pela primeira vez, corridos, em La Paloma, com a ajuda da carta da revista “Neptunia”, contornando os arrecifes da barra que eram deixados por bombordo. A arrebentação fervilhava como água em ebulição e o branco das escumas marcava nitidamente a área perigosa. Passamos por um casco naufragado, cuja caldeira é visível, guinamos a toda a velocidade para NW e, poucos minutos depois, contornamos o molhe de pedras e fundeamos no porto, diante de inúmeros espectadores, entre os quais a guarnição da R.O.U.”Maldonado”, em inspeção da base naval aí sediada.

Confraternizamos com a excelente rapaziada do vaso de guerra, entusiasmada por ver pela primeira vez o pavilhão auriverde naquelas águas. Fomos cumulados de gentilezas, entre as quais, a de nos ser fornecido, cada duas horas, um radiograma de Montevidéu com as previsões do tempo.


Porto de La Paloma

 

Quinta-feira, 19 – Enquanto o vento assobiava nas enxárcias, esperando nós receber um radiograma animador, desembarcamos, visitando o pitoresco balneário e a cidade. Fizemos uma visita protocolar ao subprefeito do porto, Don Bartolo Costa, oficial da marinha uruguaia e verdadeiro amigo dos brasileiros.

Sexta-feira, 20 – Às 6 o tempo tinha abrandado e o vento era de terra. Içamos o ferro e todo o pano, largando pela primeira vez nossa genoa. O dia apresentou-se maravilhoso, mar e céu azuis, um sol tépido e a linda costa a vista. Evidentemente, tínhamos pago o preço e a entrada para a bacia do Prata estava franca para nós.

Às 11, novamente de través com o José Inácio, íamos sucessivamente descobrindo a costa e identificando, pelo Yachting Brasileiro, os incidentes da mesma. Um conspícuo reservatório de água em forma de torre, a Isla de Lobos por bombordo, praias, um enorme hotel, a cidade. A península ficou para ré, demos lazeira ao banco da Ponta do Leste, Ilha Gorriti pelo través e, avistando o setor de luz verde de seu farolete, investimos pela Boca Chica, entrando no ancoradouro de Punda del Este.

A bandeira nacional chamou atenção e em seguida o pessoal da Prefeitura Marítima indicou-nos nosso lugar de amarração. Pelo visto, a embaixada do Dr. Pimentel Duarte estava dando frutos, pois todo mundo falava dos triunfos do “Vendaval”, aliás merecidos.

Desembarcamos e fomos-nos apresentar ao “Capitan de Corbeta Rodolfo G. Hernandez, Prefecto Del Puerto de Maldonado”, que nos cumulou de atenções, interessando-se pela nossa excursão. Por uma feliz coincidência, S.Ex. o Presidente “de la república, Don Luiz Battle Berres”, estava de passagem pela cidade. Informado de nossa presença e tomando conhecimento de nossa carência de cartas uruguaias, mandou que o Instituto Hidrográfico no-las fornecesse, com uma única condição, porém: que mais barcos “brasileños” aportassem ao Uruguai.

Sábado, 21 – Foi dedicado o dia a conhecer a primeira estação balneária do continente. Não sabíamos se admirar mais os dons prodigalizados pela natureza ou a inteligente obra de urbanização da administração do Governo da república irmã.

Domingo, 22 – Às 6 e 10 iniciamos o regresso, sentindo ter que ficar tão pouco tempo. E com SE suave, às 11 passamos pela quarta vez pelo José Inácio e às 15 fundeamos em La Paloma, com vento ronadando para NE e o barômetro baixando rapidamente.

Segunda-feira, 23 – Às 8 da manhã o temporal apresentou-se rijo do Sul; pelo que, resolvemos esperar no porto até que abatesse.

Terça-feira, 24 – Amanheceu um Leste fresco e como já tínhamos chegado à conclusão que era inútil esperar por tempo bom, pois que, para subirmos, os ventos de feição eram os ruins e os suaves, de NE a Norte, ventos contrários, resolvemos, de então por diante, sair com qualquer tempo e foi o que fizemos. Às 7 e 30 forçamos a saída do porto, contra mar e vento e às 13 e 30 montávamos o Capo Polônio e, rondando o vento para NNE, bordejamos fazendo o bordo de terra, em direção de Ponta Palmar, um pouco aquém da Fortaleza de Santa Teresa.

Na altura de Ponta Palmar, quando nos dispúnhamos a virar de bordo para amarar, com mar e vento de regular intensidade, rasgamos o grande pela metade, de fora a fora. Arriado, foi substituído pela vela grande de capa, ótima para ventos de feição porém precária para bordejar. Ficamos quase ensacados, tendo apenas franco o rumo de regresso para Cabo Polônio, que foi montado novamente às 19. Constituímos conselho de guerra e a maioria opinou pela arribada a La Paloma para nos suprirmos de um grande em condições, coisa que executamos com mais 5 horas de velejada inolvidável, noite a dentro com uma lua cheia iluminando as águas movimentadas do mar.

Esta interrupção de nosso cruzeiro foi aproveitada por todos os tripulantes. Pusemos em dia nossos assuntos terrestres. Nosso grumete reiniciou seus estudos no colégio de São Paulo, o Rodolfo matriculou-se na Escola de Engenharia e os outros foram tratar de seus assuntos comerciais. Paralelamente, cortou-se e costurou-se outro grande e aproveitando a Semana Santa, que no Uruguai é chamada Semana do Turismo, permanecendo todo o comércio fechado, voltamos a La Paloma pela estrada da costa do Albardão, tirando as fotografias que ilustram este artigo. Íamos, finalmente, finalizar a última etapa do cruzeiro.


Outra vítima do Carpinteiro da Costa - SE

Março, 23, terça-feira – Na tripulação, houve uma única substituição, a do grumete pelo Dr. Weber, estando todos ansiosos pela desforra.

Dias e dias vinha soprando a Nortada. Assim que embarcamos no “Orion”, o Sudoeste estourou com fúria, porém desta vez já nos considerávamos conhecedores do regime de tempo daquelas latitudes e às 8 horas da manhã, rumamos pela saída Norte, até ficarmos claros dos bancos de “18 de Julio” e “Falkland”, e pelo través com “La Pedrera” e aí fizemos o rumo de NE, sendo que o tempo tinha rondado para SE fresco e sujo, isto é, com chuvas constantes.

Às 13 montávamos pela quarta vez o Cabo Polônio, resolvendo o nosso navegador fazer rumo direto a Rio Grande, pois navegávamos com o senhor carpinteiro da costa (3) e com ele todo cuidado é pouco. Às 20 horas avistamos o lampejo do Chuí e durante a noite, o carpinteiro trabalhou a valer. Não podendo com o nosso velame, pois levávamos roupa apropriada, pintou o diabo dentro da cabine. Arrancou o pequeno rádio receptor que estava aparafusado numa antepara e atirou-o com força contra a cabeça do Weber, então descansando no beliche de sotavento. A mesa foi arrancada e quebrada em pedaços e o pior foi a baldeação de água da sentina sobre os pertences dos beliches. Nada ficou enxuto, mesmo porque, do lado de fora ao aguaceiros se sucediam.

Quarta-feira, 24 – De madrugada avistamos o Albardão, o céu nublado e o mar deserto de manifestações de vida animal, em verdadeiro contraste com nossa viagem de descida. A nossa velejada, nessa altura, é sensacional, satisfazendo-nos plenamente as aspirações, pois o tempo é duro. Às 16 avistamos o Sarita e orçamos mais uma quarta, para aterrarmos sobre a barra do Rio Grande o mais aberto que nos fosse possível. O mar está quebrando, embarcamos uma ou outra crista. Certa vez consegue uma penetrar pela cabine, encharcando completamente quem dormia no beliche, obrigando-o a vir para o paneiro. As refregas se sucedem, as vagas crescem e, para não as embarcar, orçamos sobre elas, isto é, investimos com a bochecha de boreste e quando estamos quase sobre a cochilha de mar, arribamos um pouco, de forma a descer água abaixo, de lado, mantendo o rumo.

Ao anoitecer, já temos a vista a luz do farol de Rio Grande e as luzes do balneário do Cassino, e às 20 horas estamos vendo a luz branca do farolete da extremidade, do molhe oeste da barrae a luz encarnada do farolete do molhe Leste. Quando, entre essas duas marcações e ao fundo aparece a luz fixa e lampejos do farol, entramos a barra com vento e mar largos, às 21 horas.

Ao abrigo dos molhes e com mar chão, navegamos pelo meio da barra, tendo apenas a preocupação de deixar por boreste as luzes encarnadas de balizamento dos canais, amarrando às 23 no Yacht Club.

Quinta-feira, 25 – De manhã cedo, as autoridades do clube, sabedoras de nossa entrada, na noite anterior, receberam-nos carinhosamente, confessando que haviam dormido mal temendo pela nossa sorte.

Às 10 horas o “Orion” continuava sua rota, rumo ao merecido descanso no seu fundeadouro em Porto Alegre. Às 15 deixava o canal da Feitoria, entrando na Lagoa dos Patos. Com o sudeste ninguém mais se importava por ser agora vento de terra e nem mar chegava a levantar.

Às 21 estávamos pelo través do farolete de luz encarnada do Bujuru, cuja enseada abriga de ventos de SE a WNW, com boa tensa e profundidade. A luz vermelha do farol Capão da Marca foi deixada pelo través às 23 horas. Encontramos sempre vapores em nossa derrota.

A noite fazia bastante frio e o “Orion”, depois de aproar para a luz branca da bóia do banco de Dona Maria, deixou-a por bombordo, avistando-se a seguir o Cristóvão Pereira que ficou alagado.

Sexta-feira, 26 – Duas horas da madrugada. A enseada do banco dá magnífico abrigo aos ventos de SE a WNW, e o pequeno banco de duas milhas que corre na sua ponta, na direção norte-sul por duas milhas, dá abrigo aos ventos de NE e E. Ambos os ancoradouros tem boa profundidade e são de boa tensa. Às 4 da madrugada deixávamos pelo través a luz encarnada do banco predileto de nossos veleiros, ou seja, o São Simão, que se estende na direção E-W por 10 milhas. Ao clarear do dia avistamos o morro de Itapoan e às 9 horas franqueávamos sua entrada, ganhando o estuário do Rio Guaíba. E às 13 horas fundeávamos no Morro do Sabiá, na véspera do Sábado de Aleluia, que passaríamos junto às nossas famílias.

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Notas da transcrição:

1 – SE sujo quer dizer sudeste com chuvas.
2 – Rebojão: vento forte de SW. No Rio da Prata é chamado “Pampeiro”.
3 - “Carpinteiro da Costa”: O vento SE que varre o litoral do Rio Grande do Sul, arremessando à praia quanto navio possa.

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Transcrito por Carlos Altmayer Gonçalves, em 02 de agosto de 2004

[popa] O que a Yachting não publicou: Vendo a lua nascer quadrada no Uruguai

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