Da Lagoa Mirim a Porto Alegre
Ora velejando de windsurf, ora remando o caiaque
André dos Santos Issi

 

Segue um longo diário de bordo. São 89 páginas contando uma história que começa com um acidente rodoviário. Decidido a superar-se, o autor resolve navegar desde a Lagoa Mirim, ora velejando com um caiaque no reboque, ora remando e rebocando a prancha. As peripécias contadas com o bom humor de André Issi merecem ser lidas. [popa]

 

DIÁRIO DE BORDO

 

Em algum lugar nos banhados da Lagoa Mirim:

 

23/07/2000 Domingo

 

 

Pois é turma! Iniciei a viagem sexta-feira com o Aldo, a Marlene e o Pixaim de S 10 cabine dupla rumo Floripa - Porto Alegre após noites inteiras sem dormir, tentando arrumar as coisas. O Husky ficou aos cuidados do Pixaim e do Rojas.

Fiquei tão cansado que nem tenho saco de escrever em pormenores o que aconteceu.

Chegamos em Porto Alegre após uma agradável viagem, era já uma da manhã de ontem, Sábado. O pessoal foi dormir e eu fiquei o resto da noite colando o bagageiro da prancha e as borrachas de vedação. Não é nada, mas faz quinze anos que não toco na prancha, desde a última viagem do Rio de Janeiro até Mangaratiba em dezembro de 1985.

Na teoria, o plano era de viajar com o caiaque e com o windsurf, um rebocando o outro, utilizando um ou outro, aproveitando as melhores condições para cada embarcação.

 

O ACIDENTE

Faz, exatamente, dois anos e cinco dias que sofri o acidente na BR 101 onde o meu querido carrinho foi pulverizado. Sofri fraturas nas pernas, quase um reimplante do braço esquerdo, além de cortes profundos na face e parte posterior do crânio.

Além disto, o tanque de gasolina, situado sob o capô dianteiro, ficou “moído” e jogou todo o conteúdo sobre mim e a Priscila, sorte (?) que o carro era de fibra e não houve faísca que produzisse fogo, teríamos virado churrasco.

Na perna direita, uma longa haste de platina e mais de uma dúzia de parafusos firmaram o fêmur destruído, faltaram umas partes de osso e teria de fazer um enxerto, mas declinei desta parte, ele que se reconstitua sozinho.

Na perna esquerda foram colocados uma haste e outros parafusos, um pouco acima do tornozelo; o pé tinha ficado pendurado.

A parte posterior do crânio, face (que foi perfurada), gengivas e mãos foram soberbamente costuradas.

O braço esquerdo, pulverizado na altura do cotovelo, foi reconstruído com fios de aço que reposicionaram os fragmentos ósseos, que estavam no meu casaco, no local original; foi um trabalho de mestre das três equipes médicas que me reconstruíram no Hospital Dona Helena, em Joinvile.

Desde que voltei a caminhar, não completou um ano e meio ainda... A coisa não vai ser fácil, pois minhas condições físicas são altamente duvidosas e desconhecidas.

Resolvi fazer esta viagem como uma maneira de homenagear a vida, como uma maneira de realizar as coisas que eu achei que nunca mais poderia sequer almejar, é minha maneira de homenagear a todos que ajudaram na minha recuperação, principalmente minha família, meu maior tesouro.

Fiquei acordado até às seis horas da manhã de Sábado e fui dormir um pouco. Depois o Aldo ajudou a colocar os parafusos que prendem o bagageiro na prancha. O caiaque estava comigo em Floripa desde que fui buscá-lo na divisa do Rio com São Paulo com meu ex-carro (1997).

Como o Aldo prometera levar a Marlene para Gramado na volta da viagem para o Chuí e como o Paulo estivesse a fim de me levar, resolvemos colocar a prancha e o caiaque no reboque e liberamos o sócio, pois a viagem de ida e volta ao Chuí demandariam mais de mil quilômetros...

 Foi uma novela arrumarmos as coisas (já tinha sido para sair de Floripa quando o Rojas, o Paulo Sempe, a Deise e o Lucas apareceram para se despedir, todos excelentes amigos).

 

RUMO AO CHUI

Acabamos, a exemplo de Floripa, partindo só ao final do dia. A vó Ati, de 96 anos, foi conosco, além de mim, Paulo, Helena, Luigi e a Gabi. A viagem transcorreu otimamente, com direito a um belo por de sol e pouco movimento na estrada até pararmos para esticar as pernas no Grill, próximo ao Rio Camaquã. Seguimos rumo ao Sul numa noite cada vez mais fria até pararmos na Vila Quinta, uns quarenta quilômetros depois de Pelotas. Tomamos um delicioso café enquanto lá fora soprava um vento gelado.

Seguimos pela noite numa estrada sem fim que cortava o banhado do Taim onde havia muitas capivaras mortas. Como a enchente tapa os campos onde elas comem e descansam, elas vêm para a estrada e ali morrem atropeladas.   

Chegamos em Sta. Vitória do Palmar só às 24 horas e fomos procurar um lugar para comer. Jantamos uma pizza e tomamos um vinho para comemorar ou, como diz o Rojas antes destas grandes viagens, fazermos uma “despedida de corpo presente”. Dormi com a Gabi e o Gigi numa cama de casal e estava muito frio, apesar de várias cobertas e do aquecedor.

Hoje (Domingo) fui no supermercado com o Gigi comprar pilhas e outras coisas que faltaram. Aconteceu uma coincidência incrível, pois descobri que o hotel ficava em frente à casa do Senhor Dilson Mespaque, onde fiquei hospedado quinze anos antes quando, também no inverno, fiz esta viagem de windsurf.

Foi uma alegria só, pois revi meus amigos que tão bem me acolheram àquela época, Dna. Lia e as filhas Débora (17) e Carolina (15); seu Albano, pai de Dilson faleceu há seis anos, eles foram maravilhosos.

Dilson conseguiu um pedaço de espuma que eu poderia utilizar como assento e como ‘bomba de porão “para esgotar a água que invadisse o compartimento aberto do caiaque”.

 

A HORA DA VERDADE

 Depois fomos para o porto arrumar os barcos e as coisas nos distintos. Cara foi um sufoco de duas horas no vento gelado que soprava de NW e que fazia os olhos lacrimejarem e o nariz pingar como uma torneira mal fechada. Como ali fosse um local de passeio e de pescadores, logo juntou uma pequena multidão de curiosos que observava eu, o Paulo, o Gigi mais a Gabi e a Helena tentando organizar aquele amontoado de coisas nos compartimentos do caiaque e da prancha, para não dizer “socar”.

Simplesmente deixei para colocar as coisas só agora, na hora de partir. Sequer dei uma volta de treinamento para saber como seria levar uma embarcação a reboque,

Os meus amigos chegaram (Sr Dilson e família) e comecei a ficar nervoso, pois fui caindo na real, tomando consciência da loucura de fazer algo dessa dimensão sem condições físicas, sem treino, sem nada...

Fui numa construção ali do porto colocar a roupa de neoprene. Cara! Tirei as grossas meias de lã e fiquei de pé descalço naquele frio desgraciado. Volto para os barcos e começam as despedidas enquanto o pessoal filma com a filmadora do Aldo para ter um recuerdo desse momento, a pobre vó Ati ficou dentro do carro, pois o vento frio castigava demais.

O vento estava muito forte e de través, meio de proa e por isto resolvi sair de prancha com a vela pequena, foi uma péssima escolha. Depois de quinze anos ali estava eu, tentando me equilibrar numa prancha com um caiaque no reboque, com braço reimplantado, hastes e parafusos nas pernas e sem treino; querendo fazer coisas que não podia.

Pior, cheio de gente olhando!

Consigo ficar em pé, faço uma força desgraçada para erguer a vela e manter o equilíbrio ao mesmo tempo; a prancha começa a andar e o caiaque no reboque dá uns trancos ao subir e descer nas ondas.

Finalmente consigo sair do abrigo do cais e lá se vai o exército Brancaleone; as ondas e o vento começam a me fustigar repetidamente, sem folga. Já caí várias vezes, estou congelado e cada vez que tento levantar a vela as costas me doem sem piedade. Com vela pequena, reboque e tudo o mais, velejei mais um pouco sem conseguir prosseguir no rumo desejado, pois orçar com reboque é piada. Fomos sendo jogados em direção de uma cerca submersa. Como ali desse pé, resolvi enrolar a vela e ir a remo na prancha mesmo, pois o caiaque estava cheio de coisas para permitir que eu fosse remando nele. Fiquei muito tempo dentro d’água amarrando as coisas e comecei a congelar demais. Passei por duas cercas submersas e fui remando por onde antes era o campo. O negócio era ir em frente para, pelo menos, iniciar a viagem; espero ir solucionando os problemas à medida que avançar.

Olho para o porto, mas já não vejo o carro do Paulo nem ninguém, todos foram embora!

O cheiro da lama do banhado, o vento, o frio; serão meus companheiros daqui para frente. É um turbilhão de pensamentos que tornam irreal o que está acontecendo, que loucura!

Não faz muito, meu irmão, em vez de estar me ajudando aqui, tinha a tarefa ingrata de todos os dias me colocar na cadeira de rodas para ir ao banheiro, ajudado pela mãe, as tias, irmã e sobrinha, pois as pernas não podiam dobrar porque não estavam engessadas, apenas com talas; isto custou a ele uma hérnia de disco na coluna.

Como é que se paga uma “conta” destas?

Cheguei perto da margem que estava tomada de aguapés, mas era impossível passar por ali, a prancha e o caiaque trancavam e não dava nem para chegar perto.

 

QUERENDO DESISTIR - COMO SE DESCONGELA?

Enfim achei uma passagem e consegui encostar num barranco estreito e comprido cercado de água, parece ser um canal de irrigação, agora submerso.

O sol começou a desaparecer no horizonte, permitindo que o vento ficasse mais congelante ainda; tive que agir rápido, pois eu estava encharcado e congelado, principalmente os pés e as mãos. Armei a barraca naquele exíguo espaço, a menos de trinta centímetros d’água.

Jogo as coisas que precisarei dentro da barraca, coloco uma roupa seca, mas não é suficiente, estou irremediavelmente congelado e preciso de fatores externos para aquecer o corpo. Trouxe uma bolsa de borracha para esta situação, mas não encontro a panela para esquentar a água. Para piorar não encontro o outro pé de meia, tenho que enrolar uma camiseta no pé desnudo; como vou fazer comida sem panela?

Cara quer desistir! Estou muito mal, tanto física quanto psicologicamente.

Graças a Deus o Paulo insistiu para que eu trouxesse um celular, uma grande novidade nas minhas viagens.

Ligo para ele, já é noite, quem sabe não ficaram em Sta. Vitória e seguem amanhã? Ë só passar a noite aqui e amanhã eles me pegam e tudo acaba.

Más notícias, já estão perto de Pelotas, vou ter que encarar na marra!

Pelo menos ele me diz onde está a panela e posso esquentar água para descongelar os pés. Depois fiz um miojo, falei com o pai e a mãe e a moral melhorou muito. Esquentei água de novo e coloquei a bolsa de água quente por dentro do saco de dormir, ora colocava a bolsa nos pés ora colocava na barriga e assim fui descongelando.

Agora são 21:20 h estou mais quente; o ar que sai da boca é uma fumaça só aqui no interior da barraca que está pingando por dentro por causa da condensação da minha respiração. Sei que esta noite vai ser terrível de fria, mas estou mais ou menos preparado. O vento sopra forte e estou aqui nesta nesga de terra para fora d’água sem abrigo nenhum; a lona plástica que coloquei por cima da barraca protege um pouco do vento, pois as pontas ficaram por baixo do assoalho e desviam o vento, só que sacode sem parar fazendo um barulho ensurdecedor. Azar! Vou tentar dormir assim mesmo. BUENAS NOCHES!

 

24/07/2000  -  Segunda-feira

-          “ATENÇÃO”! São 03:05 h, está soprando um fortíssimo vento N e a água está há uns 20 cm ao lado da barraca, quase no mesmo nível, se subir mais um pouco vai inundar tudo aqui no escuro, não tenho para onde ir, é rezar para que não suba mais!

 Vou ter que fazer vigília, pois a água e o vento podem levar as embarcações embora e eu ficarei a ver ”navios”!

 Como já disse, a noite vai ser longa, tomara que a água não suba mais, não tenho sequer um plano para sair daqui; é bom nem pensar, pois vou congelar.

Acordei pensando que tivesse amanhecido, mas é a luz da lua que está linda em meio ao céu estrelado. Pelo menos fico tranqüilo sabendo que não chove!

Que noite! Já preparei meu café da manhã e fui dar uma volta na rua com a camiseta enrolada no pé esquerdo; está frio, mas esquenta à medida que o sol vai subindo. Fiquei me murrinhando toda a manhã, pois o vento estava totalmente contra e para sair deste canal ia ser muito ruim. Apareceu um pescador em seu caíque tocado a taquara; era o Sr. Marcelino que falou que este vento NW estava assim há dez dias...

O astral foi abaixo de zero; quer dizer que da outra vez que estive aqui tive sorte de ter pegado vento sul. Ele me mostrou os enormes peixes-rei que vende a R$ 0,60 o quilo. O vento foi diminuindo, falei com a Helena no celular (que chique) e resolvi enfim partir. Vou trocar de roupa e o que descubro?

Cara dá até vergonha de revelar, mas a verdade é só uma: ontem coloquei as duas meias num pé só, por isso não achava a outra...

Assim que saí da minha pequena ilha, fui tocando por dentro do canal até onde era a Lagoa antes. A água invadiu uns 4 a 5 km de terra de pasto. Parti às 12:40 e parei em outra elevação para o almoço, um pedaço de queijo e um de salamito com um pedaço de chocolate de sobremesa.

 

DESCOBRINDO O PORQUÊ

Cara, o espírito da viagem começou a incorporar à medida que ia avançando. O caiaque e a prancha deslizando nas águas agora calmas afastavam a água espelhada para os lados enquanto eu ia remando e observando a paisagem e ficando extasiado.

Um casal de Tarrãs (uma espécie de peru do banhado que se destaca das outras aves por seu porte avantajado, plumagem cinza azulada e uma espécie de colar negro, além de enormes esporões na ponta das asas) dava seu grito estridente e característico que ecoava por tudo. Aqui e acolá bandos de marrecões e marrecas piadeiras que me transportam a diferentes etapas do passado.

Comecei a sentir uma tremenda paz de espírito e a compreender o verdadeiro sentido das coisas. É difícil largar o conforto e a segurança; confesso que já queria desistir, pois foi um erro trazer uma embarcação a reboque, atrapalha um monte, mas o mais importante será este retorno à vida, o contato com a natureza, saber que posso fazer tudo de novo. Tudo porque estou reencontrando a verdadeira beleza das coisas, o sentido de porque estar fazendo tudo isto, a real é que estou me sentindo mais vivo do que nunca e encaro isto como uma homenagem às pessoas que me ajudaram depois do acidente, uma forma de provar a mim mesmo que posso fazer as coisas e ficar vivo de novo.

Parava de remar e ficava só escutando os sons da natureza. Tri legal!

No princípio dava poucas remadas, uma paradinha e remava de novo; estava cansado, mas não era para menos, uma vez sequer coloquei os barcos n’água, ia ter que me adaptar aqui mesmo. Antes cansado do que não ter a possibilidade de fazer o que estou fazendo.

Fome, frio, cansaço, angústia; isto tudo é esquecido, o que permanece são as imagens...

Adiante vi ratões do banhado em uma pequena ilhota.

Coqueiros e alguns capões de eucalipto formavam imagens surrealistas ao serem refletidas nas águas espelhadas. O meu problema eram as cercas submersas que formam barreiras de 4 km perpendiculares à costa, para contorná-las ou encontrar um ponto mais fundo onde possa passar sem trancar nos arames é muito demorado. Numa destas o caiaque ficou engatado e tive que mergulhar neste gelo para soltá-lo, mas que jeito!

Logo no fim do dia; não fosse isto, teria chego seco no acampamento.

Outro ratão do banhado nadava perpendicular a mim, em direção a uma ilha de juncos. Adiante havia um casal de cisnes de pescoço negro, os mesmos que vi em Puerto Natales, no Chile, em região antártica.

Milhares de maçaricos começavam a passar um pouco mais alto; observando tudo, fui remando em direção a um lindo capão de eucalipto onde havia um local mais alto e seco. Algazarra de quero-queros, cocotas e outros bichos do banhado; uma paisagem bucólica e sem vento.

 

Meus amigos... O sol começou a deitar no horizonte e aí tive o meu show de final de dia. À medida que se punha, o sol tingia de diferentes tonalidades de dourado, vermelho e amarelo o céu e as nuvens.

Para completar o espetáculo, milhares de maçaricos e marrecas pontilharam o céu de negro em direção do sol, para o centro da Lagoa. Lá, eles começaram a voar em círculos, parecendo um ciclone de pássaros; ah, se eu tivesse uma filmadora...

“São momentos mais puros do que o riso de uma criança, que abriu as asas sem prender-se ao mundo...”.

 

 

25/07/2000  - Terça-feira

 

Agora são 8h, vou tomar meu ralo café e partir. O vento está forte e contra, por isto, vou de caiaque. Por um lado é bom, porque poderei navegar em águas rasas observando mais de perto a fauna e a flora. De prancha tenho que ir lá por fora e não vejo nada.

Falei com o “brody” Paulo e foi legal, eles vão para Floripa pela serra. Falei esta noite com os veios e foi tri; este tal de celular é bom barbaridade!

Descobri que eu era bom na prancha mesmo, pois com um vento deste eu ia de vela grande e encarava tudo; só agora descobri isto! Bueno, hasta luego!

 

 

NOS CAMPOS E CERCAS SUBMERSOS  -  CAVALOS ILHADOS

Parti só às 10h, mas enfim me fui, com vento contra, para variar. Fui paralelo à margem, mas para o fundo havia uns juncos em linha com a costa. Remei cerca de uma hora contra o vento e as ondas para ver o que era aquilo. Descobri que esta linha de juncos era a antiga costa, agora invadida por uns 4 a 5 km pelas águas. Ali eu poderia ir paralelo e sem ondas, apesar do vento contra, pois esta tênue faixa de terra funcionava como um quebra-mar. Ali as ondas não existiam, embora do lado de fora as da Lagoa fossem fortes, o que tornaria sofrível meu avanço com as duas embarcações contra elas. Às vezes, a terra sumia, mas dava para saber onde era a antiga costa pela diferença nas ondas. Assim fui indo. Quando havia um terreno mais alto com uma grama ralinha podia visualizar vários ratões do banhado tomando sol que, preguiçosamente, vinham para a água quando eu me aproximava.

Havia muitas puxadas para as lavouras de arroz, geralmente canais altos acompanhados das xaropes das cercas que toda hora eu tinha que contornar pelas partes mais profundas. Algumas vezes trancava, mas felizmente não precisei descer do caiaque para me livrar dos arames.

Alguns tarrãs, quero-queros, gaivotas de cabeça preta e maçaricos. A paisagem era estranha, pois este istmo de uns quatro a 15m de largura ia por onde parecia ser o centro da Lagoa; eram verdadeiras ilhas. Numa delas encontrei cinco pobres cavalos ilhados, mas, felizmente, gordos. Estava há mais de cinco quilômetros da costa. Eles correram na minha direção, olharam um pouco e se foram, assustados. Dali a pouco o que parecia ser o líder voltava sozinho relinchava e ficava batendo a pata no chão, desafiadoramente.

Depois parei para almoçar um pedaço de queijo e um de salamito bem na boca de um canal de irrigação. Ali havia um monte alto o suficiente para atacar o vento onde pude tirar a touca de neoprene e deitar no gramado ao sol, à reversa do vento para descansar um pouco; com essa roupa e a touca de neoprene dá para suportar legal o vento gelado.

O vento aumentou e as ondas batendo no istmo soavam como se eu estivesse na beira do mar. A paz disso tudo me fez lembrar da última vez que estive aqui; agora estou vivendo tudo de novo e tenho consciência de que é um momento especial, este convívio com a natureza é o maior prêmio. As horas foram passando e o istmo estava no fim, só que havia um detalhe; eu estava há 5 km da costa e iria escurecer logo, não chegaria de dia lá. Comecei a ficar preocupado; além disto comecei a pegar ondas grandes de través. Os últimos pontos de terra que achei não eram bons, muito baixos e a mercê dos ventos.

Ao longe vi um barranco de canal e remei para lá, sem ter outra escolha, seria mais uma noite sem abrigo.

Cheguei aqui às 17:30 h e a solução foi armar a barraca neste barranquinho há 10 cm da água que me cerca por todos os lados. Estou à mercê do vento, mas foi a única solução. Armei a barraca cuidadosamente com a lona plástica cobrindo o lado virado para o vento; se der temporal estou frito!

Entrou água no compartimento de popa do caiaque, além do flutuador de bombordo, por isto, ele está adernando e dificultando a remada, vou ter que consertar isto uma hora.

A temperatura externa marca oito graus centígrados e aqui no interior da barraca marca 14 graus, tudo porque o vento não penetra; já fiz sopa e a vela está acesa, assim posso escrever e o calor da vela aquece o ambiente.

São 20 h, vou deixar o celular ligado até às 22h (combinei com o Paulo de deixá-lo ligado entre 20 e 22 h) e depois vou nanar. Buenas noches!

26/07/2000  -  Quarta-feira

 

Agora são 7 h, lá fora dois graus e aqui quatro graus, o vento parece estar soprando de SW e tenho que ir 3 km adiante até a ponta dos Afogados; está muito difícil para eu me localizar, pois as referências que eu tenho no mapa estão embaixo d’água. A travessia que eu teria de fazer para o Uruguai, em vez de 15 km, agora pode ter 25 km... Isto modifica tudo; o que eu pensava ser fácil agora está muito difícil.

Entrou muita água no caiaque, mas não quero arrumar agora (preguiça), mas pode ser perigoso se não o fizer.

Estou dormindo com: meias, uma ceroula, duas calças de abrigo, uma camiseta de lã, um blusão de lã, uma camisa de abrigo, uma jaqueta de nylon (do Grêmio), luvas de nylon, gorro de lã tapando o nariz, dentro do saco de dormir e ainda estou tremendo... Assim tem sido todas as noites!

A barraca está toda molhada por dentro por causa da condensação da minha respiração; o brabo mesmo é tirar a roupa quente de manhã e colocar a de neoprene, úmida e gelada, brrr!

Minha água está no fim, daqui a pouco vou beber água da Lagoa; o lado positivo é que não terei mais de carregar o reservatório de 5 litros que fica no compartimento aberto do caiaque, bem nas minhas costas; meu depósito ficará sob o caiaque, a própria Lagoa!

Para dormir até agora, só achei pequenos barrancos (canais de irrigação submersos parcialmente), verdadeiras ilhas para dormir, mas sem abrigo nenhum se der temporal (será um sufoco só).

Parti às 10:20 h com fraco vento de través e deixei para trás o barranco onde dormi; por sinal, ao lado da barraca havia uma espécie de tumba circundada por uma rede de pescadores.

 Neste local fiz, finalmente, o conserto no caiaque, peguei a faca, fiz um furo na parte da frente do flutuador avariado, inclinei-o para frente para que a água escoasse e depois selei o furo com silicone. Agora, sim! Remar com o caiaque nivelado é outra coisa.

Fui em frente, parando uma hora e meia depois para o almoço (queijo e salamito). Aproveitei para encostar e colocar a vela no caiaque; ajudou um pouco, mas não muito.

Está muito difícil para me localizar; na verdade não sei mais onde estou. Pensei estar próximo da ponta dos Afogados por causa de umas árvores secas, mas acho que não é.

Segui por dentro, pelas terras alagadas, desviando dos juncos e das cercas (que já estão irritando) até chegar noutro canal onde parei ao lado de um enorme lagarto que tomava sol; ele permaneceu imóvel enquanto eu me aproximava, sacando fotos até encostar a seu lado, que legal!

Depois atravessei o istmo e fui por fora, já de windsurf com a vela pequena. Tenho que superar o trauma do primeiro dia e reaprender a andar de Wind, com caiaque no reboque... Não é fácil!

Um barco grande de pescadores fez a volta para ver o que era aquela coisa inusitada teimando seguir quase contra o vento e perguntaram o destino:

-          “Tu tens coragem? Mas isso é tão pequeno! Queres uma carona?”.

Agradeci, mas disse que assim não teria graça. Lá se foi meu amigo e eu fui seguindo a passo de tartaruga, mas sem remar, assim descansava os braços. O vento quase parou, daí segui de caiaque pelo lado de dentro do istmo, aconselhado pelos pescadores.

Eram já umas quinze horas quando resolvi aproar para um mato de eucalipto para a costa, procurando local para acampar, pois no istmo estava quase tudo inundado. Uma hora pegando firme, tive que mudar a rota para desviar de outra cerca, o cara tem que procurar uma parte mais funda para passar por cima dos arames. Há cercas paralelas às terras secas que não permitem chegar lá, não é fácil...

 

PERDIDO NOS BANHADOS  -  SALVO PELOS QUERO-QUEROS

Achei que naquele mato não seria bom e resolvi seguir noutra direção na qual parecia haver terra firme, aparentava ser um belo gramado. Quando cheguei bem perto foi que vi que o belo gramado não passava de um amontoado de juncos completamente inundado. Aí começou a ficar ruim, pois já era mais de 17 h. Comecei a remar na direção de outro ponto e as arvores secas que vi estavam cercadas de junco e água quando cheguei mais perto. Resolvi voltar lá para o istmo onde vi terra seca pela última vez, só que estava muito longe, bem na direção que o sol se punha.

Com o caiaque adernando para bombordo (um dos flutuadores está cheio de água), fui, meio desesperado e angustiado, em direção do sol, mas sem a certeza de ver terra firme.

Já estava há horas remando forte, o sol se pôs no horizonte e o frio estava me congelando; só conseguia ver juncos e água.

Fui acometido de angústia nervosa e ataques de fúria galopante que só fazia aumentar quando ainda tinha que contornar e ultrapassar cercas submersas.  Cara! Que troço irritante... É nestas horas que a aventura se torna uma questão de sobrevivência, pois num frio destes o cara pode até morrer, ainda mais quando a gente começa a perder o controle de si mesmo.

Passei por mais uma cerca sem ter que descer nessa água gelada no escuro. O cara quer ver algo, mas agora só é possível ver manchas escuras contra o céu neste labirinto sem fim de juncos sem terra firme.

 Vou sem rumo quando ouço gritos estridentes de quero-queros. Mudo o curso para a direção dos sons, foi minha salvação, pois os quero-queros não pousam no molhado.

Dito e feito! Havia uma pequena elevação onde eles estavam pousados, era levemente para fora d’água, o suficiente para armar a barraca e colocar os barcos ao lado.

Estou ilhado ao lado dos juncos e completamente perdido, não sei mais onde estou, mas o mais importante é que estou em terra firme; amanhã será outro dia, não foi dessa vez!

São 20 h, acabei de ligar o celular; há narcejas e uma infinidade de bichos aqui ao lado, há pouco vento e parece que não vai chover. Ouço mugido de vacas ao longe e dá uma falsa sensação de segurança e tranqüilidade.

Daqui era para eu ver a margem uruguaia, mas tudo mudou; não sei como vai ser a travessia que terei de fazer, mas tudo bem; isso é como a vida, os problemas sempre irão surgir na nossa frente e, queiramos ou não, teremos que enfrentá-los quando chegar à hora.

Vou fazer a sopa, o miojo e dormir, hoje foi muito desgastante!

 

 

27/07/2000     -    Quinta-feira

São 7 h, o frio que fez esta noite foi incrível; apesar de todas as roupas, tive que colocar a roupa de neoprene por baixo do saco de dormir, pois o frio que vem do chão é algo!

O dia amanheceu nublado, cinza chumbo, parece que vai chover, mas vou ficando.

Esta noite, a exemplo das outras, sonhei pra caramba; a diferença é que quando o cara faz estas aventuras, no limite físico do cansaço, os sonhos são mais intensos e o cara acorda lembrando de tudo. Esta noite sonhei que estava numa espécie de estância em que o fazendeiro tinha um cofre que eu planejava roubar, mas acabei desistindo porque fiquei apaixonado pela filha dele, um tesouro bem melhor, he, he, he!

É uma espécie de fuga da realidade!

Acho que estou assim porque nem sei para que lado devo seguir para sair daqui, se é para N, E ou NW; não sei se já passei a ponta dos Afogados, aí sim deveria ir para E e depois NW, mas as águas invadiram tudo.

Se vou para perto da costa é o inferno das cercas submersas, se fico no istmo (a margem original agora submersa) não tem lugar para acampar. Não é fácil!

Pelos zig-zags gigantes que fiz ontem, é melhor sair desse labirinto de banhados e seguir pelo istmo.

Ouço barulho de vacas ou cavalos, alguns por dentro d’água; estão a NE, mas nessa direção só há banhados intransponíveis...

É como sempre digo para eu mesmo nestas situações:

-          “Cara! Dê um jeito de me tirar desta enrascada que tu nos colocou”.

Ainda por cima o caiaque está adernando para bombordo por causa do flutuador que está cheio d’água; não sei como consertar isto e agora vai assim mesmo.

É melhor partir logo, pois os quero-queros querem o seu lugar de volta.

Já decidi, tenho o mapa e a bússula; então é só sair do meio desse banhado e seguir o curso NE de 30 graus. Vou esquecer a costa e outras coisas e confiar só na bússola, é isso aí tchê!

Parti às 9:50 h e já de saída tive que transpor outra cerca submersa, depois fui seguindo pelo labirinto de banhados, passando rente à vegetação que afastava com o remo, procurando uma saída até encontrar o istmo. Pude perceber que tive muita sorte ontem, pois simplesmente não encontrei terra firme, imagina ontem no escuro... Às vezes, ficava embrenhado entre juncos e árvores secas agora de dia, imagina de noite e congelando...

Adoro os quero-queros!

Finalmente cheguei no istmo e ali arrastei o caiaque e a prancha por cima da vegetação para seguir pelo lado de fora, isto que minha coluna está à meia boca.

Livre da vegetação, eu tive que seguir com vento contra que foi aumentando; as ondas ficaram grandes e consegui uma velocidade inédita, menos um quilômetro por hora!

Cara! É brincadeira; andar com esse caiaque contra as ondas já é ruim, imaginem levando a prancha no reboque e dando trancos nas ondas, o cara tem que fazer mais força ainda, pois perde o pouco embalo e tem que remar rápido, pois as ondas jogam para trás...

Adiante havia uma ponta que imaginei ser a dos Afogados, isto uma hora de duras remadas depois. Ali, as ondas ficaram enormes, mas até que era divertido o sobe e desce, mesmo com ondas e vento contra, pois neste ponto o caiaque é bom, difícil de virar; algumas me pegavam de jeito e passavam por cima, uma força bruta por tão pouco avanço...

 

ALMOÇO NA ILHA DE JUNCOS

Mais uma hora de remada estafante e consegui chegar numa pequena ilhota de juncos ali na ponta; como não houvesse terra firme, enfiei o caiaque no meio da vegetação inundada, à reversa do vento gelado.

Desci do caiaque e fiquei com água pela cintura, prendendo as embarcações nos galhos das árvores secas.        Depois sentei na prancha, com as pernas dentro d’água, para almoçar queijo e salamito com direito a chocolate de sobremesa; para esquentar, uns goles de licor de cacau com cachaça... Que dureza este frio que não dá trégua!

O frio está de rachar, mas mesmo molhado, a roupa de neoprene segura a onda; é claro que tem que usar também a touca de neoprene, desagradável, mas necessária, senão fica bem mais difícil de encarar.

A triste realidade é que estou fazendo dois, talvez três km/h; por isto estou viajando desde Domingo (hoje é Quinta), são dias incompletos eu sei, mas ainda não cheguei no local onde acampei na primeira noite da viagem de windsurf há quinze anos...

Ou eu era bom demais no wind e tive sorte de pegar vento sul ou estou tendo muito azar com este vento NW que não dá trégua. Ainda fiz a besteira de trazer uma embarcação a reboque; isto está me matando no cansaço e me atrasa tanto que chega a desanimar; agora não tenho como deixar um deles para trás.

Estou num fim de mundo onde nem meu rádio funciona, minha única distração, fora a viagem, é dormir e sonhar, isto quando não acordo com frio durante a noite...

Acho que fazer apenas a Lagoa Mirim já será uma façanha devido às circunstâncias.

Atravessar para o Uruguai será uma incógnita, pois as margens estão submersas em ambos os lados em cerca de 4 a 5 km; isto significa, pela média que estou fazendo (uns 15 km/dia) um dia de viagem, isto se tiver terra firme para dormir. Acho que não suportarei uma noite nos barcos, esse frio pode matar, pois a travessia pode ter até 25 km agora.

Bueno, terminei meu almoço e resolvi ir mais  pelo continente e deixar o istmo para seguir por onde houvesse terra firme, afinal não teria onde acampar se seguisse por ali.

Segui em frente, margeando os banhados, sem ver a terra que queria, pois era um banhado impenetrável de juncos; mais uma hora remando e cheguei numa parte margeada por árvores secas e... Inundadas, é claro!

As horas vão passando e começo a ficar preocupado pela ausência de terra firme, pois neste frio é caixão!

É claro que tenho o meu plano de emergência:

-          O plano M (pode ser de molhado ou merda). É isso aí, o plano M consiste em dormir em cima da prancha que estará amarrada ao caiaque através da retranca do Wind, assim ficam estabilizadas as embarcações e, teoricamente, não vira... Só falta dizer para o frio não congelar, o vento parar e para a água não respingar em mim, fácil né?

É, cada vez mais eu admiro o “velho” André, aquele de 1985; o “novo”, ano 2000 já está rateando. Eu fiz coisas que agora nem acredito, mas estou com o mesmo mapa que usei naquela viagem e não tem erro, as anotações não deixam dúvidas, a prancha voou naquela ocasião...

Passei por redes de pescadores que estavam ali por perto e que informaram que a ilha que eu estava vendo agora era a ilha dos Afogados...

Cacete! Eu pensei que tivesse passado por ela lá na outra ponta!

Bueno, eu estava indo para NW com vento contra me detonando, cruzo aquela ponta e desviaria para E onde pegaria o vento de través, melhor que vento contra e o que acontece?

O f. d. p. do vento diminuiu de intensidade e recomeçou forte de E, bem contra o novo rumo que tomei, em direção da terra firme que já sonhava chegar depois de 3 h de batalha.

Cara! O meu braço direito formigando, o esquerdo rateando e a bunda doendo depois de 3 h remando sem parar e o vento vira contra e forte...

Comecei a praguejar contra o vento histericamente enquanto remava com todas minhas forças, pois se paro para descansar o vento me leva de volta o que custei tanto para avançar, a costa ficou longe e eu só tinha duas opções, remar ou remar...

Foi com uma mistura de raiva e agonia e a sensação de que o caiaque demorava vinte anos que fui me aproximando da costa; e o corno do vento, em vez de diminuir, só fazia aumentar, me deixando quase no fim das forças.

Finalmente cheguei na beira, dor no pescoço, braços etc...

 

GÉLIDA NEBLINA

Armei acampamento num gramado junto a uma cerca que separava a Lagoa dos campos sem fim. Parei cedo, 16:50 h; o clima está mudando para pior, uma neblina gélida foi de encontro ao sol que só reapareceu quando tocou o horizonte.

Pendurei as roupas molhadas nos arames da cerca, armei a barraca, assisti ao por do sol e agora, 19:37 h escrevo a luz da vela enquanto o vento sopra lá fora.

O astral não está legal, vou fazer a sopa com a água da Lagoa; já dá até vontade de vomitar só de pensar de comer esta gororoba de miojo com sopa, mas eu preciso comer, pois alguém tem que levar este caiaque e a prancha para frente.

O rádio não pega, o telefone está fora de área e eu estou todo dolorido...

Mas não adianta chorar, ninguém me levará para frente a não ser eu mesmo; quero ver é eu sair deste enrosco em que me meti! Bueno, chega de escrever, vamos comer a gororoba (alguém quer?) e dormir, que é a melhor parte.

 

28/07/2000   Sexta-feira

São 7:40 h, hoje é dia de festa, acho que vou dar um pulo numa danceteria ou, quem sabe, uma gatinha, um vinho e minha caminha quentinha lá no “Spa” da Lagoa em Floripa...

...Sabe, acho que ainda não estou com saudades de tudo isto, apesar da dureza que estou passando aqui, estes são momentos únicos; acordar ouvindo os pássaros como agora, é uma paz que não tem igual.

Claro que tem aquela pressa de querer chegar porque estou comparando esta com a viagem de windsurf e isto não é justo, pois as condições são totalmente diferentes, exceto pelo frio de gelar os ossos.

O negócio é viver bem o presente para levar boas recordações para o futuro

 Eu sei que os maus momentos se dissiparão nas águas e que os bons permanecerão comigo; então tenho que mudar minha cabeça e me adaptar às circunstâncias.

Parti às 9:40 h e logo adiante encontrei uma cerca de uns 4 km até o istmo; ela estava muito alta e não daria para contorná-la, como já houvesse premeditado o crime, saquei o alicate e cortei o maledeto que impedia minha passagem, azar dele!

Adiante outra cerca, mas dessa vez a solução foi subir num tronco grosso da cerca, passar os barcos por cima do arame que baixei com o pé e pular de volta no caiaque; foi legal, não me molhei!

Perto do meio dia, o vento parou, isto era sinal de que iria mudar de direção. Resolvi nem parar, pois tinha de aproveitar enquanto estava bom, pois para frente havia árvores secas inundadas a perder de vista e não teria a possibilidade de parar em terra firme caso fosse necessário.

Um pouco adiante, quase chegando na ponta, o vento começou a soprar de SW, ALELUIA!

Vento a favor, nem acredito!

Ontem foi a mesma coisa e lá pelas 17 h o vento parou e recomeçou forte e contra, bem quando eu estava exausto. Quando cheguei na ponta da Canoa a paisagem mudou, e muito!

O ponto mais próximo ficou há 10 km; isto poderia significar 3 a 5 horas de travessia, se o vento não mudasse de direção, aí estaria frito!

Como sempre faço, resolvi arriscar todas as fichas e encarar; içei a vela do caiaque para aproveitar o vento favorável. Eram 11:20h, achei que ia dar e fui. Meu único medo era do vento parar e recomeçar contra, aí sim estaria fuzilado, sem ter como chegar em lugar nenhum nem como colocar em prática o plano M.

O vento aumentou bastante, as ondas também, mas aí o caiaque é bom e dava para encarar.

A prancha ia legal, aliás, a embarcação que vai no reboque tem menos possibilidade de virar.

Até pude fazer uma boquinha e terminar de comer o queijo, o salamito e o chocolate enquanto o caiaque deslizava nas ondas favoráveis apenas controlado pelo leme. A folga foi breve, pois comi rápido e peguei a remar com vontade, pois estava arriscando tudo e não podia parar um momento só.

A costa parecia não se aproximar nunca, mas ao olhar para trás, na direção do pontal que transpusera, podia ver que estava indo legal.

Apontei para um capão de mato ao longe, para leste e fui, tentando manter o curso. As ondas, bem graúdas, não me davam medo; o vento sim, se mudasse de direção.

Após duas horas de viagem aproximei-me da costa e resolvi aproveitar o vento favorável, seguindo paralelo à costa e não me aproximar ainda. Passei por uma fazenda ao longe, depois por um canal onde poderia parar ao lado, mas era muito cedo e eu queria aproveitar bem esse dia incomum.

Adiante reencontrei o istmo que funcionava como quebra mar e resolvi ir por dentro, foi mal, pois a prancha no reboque acabou trancando no arame de uma cerca submersa e acabei perdendo muito tempo.

 

UM LINDO LUGAR

Como não estivesse vendo saída por dentro do istmo e como voltar contra esse vento forte seria péssimo, resolvi acampar perto de uma lindíssima figueira com belas matas nativas a circundá-la, além de verdejantes gramados que se estendiam até a margem. Parei às 16 h, meio cedo, mas tudo bem, foi um prêmio pelo risco que corri hoje. As coisas estão bem mais complicadas do que eu imaginei; pequenas travessias se tornaram longas e perigosas!

Atravessar para o Uruguai será um sufoco.

Escrevi boa parte destas linhas sentado no gramado, ao lado do acampamento. Agora o vento diminuiu e mudou de direção, tenho que cuidar deste detalhe, minha vida vai depender de eu saber quando vira o vento.

Agora são 19 h, estou na barraca e está bem quentinho aqui, há uma zoeira incrível de mosquitos aí fora; é a primeira vez que acampo abrigado do vento e com uma bela mata nativa ao lado.

Há umas casas aqui perto, mas não as vi, porém escutei o barulho de galinhas e cachorros, sinal que há casas. Tudo bem, prefiro ficar quieto no meu canto.

Antes de escurecer fui dar uma explorada nos arredores e descobri que depois do mato há um campo cortado por uma estrada. Estava já no acampamento quando fui, em desabalada carreira, pelo meio do mata, só para ver um ônibus passar naquela estrada empoeirada...

Agora vou comer a gororoba e dormir, por enquanto vou escrevendo o diário na barraca, espero não ter que ficar escrevendo em cima dos barcos se não achar terra firme.

Por enquanto vou curtindo esta segurança momentânea.

É isso aí brody, as ondas estão crowdy!

 

 

29/07/2000     -  Sábado       

São 7:30 h, o amanhecer é repleto de pássaros do mato, como as pombas grandes, bem-te-vis, sabiás e outros; escuto galos e quero-queros ao longe.

O dia está cinzento como ontem, mas, por enquanto, está calmo; tem uma bateção ao lado, pensei que fosse gente, mas era um pica-pau. Agora cantam siriris e joões-de-barro.

Acabei partindo sós às 10 h visto que tive que atravessar, por terra, o caiaque e a prancha através do istmo para sair daqui. Só depois que vi que havia saída por água; aí já era tarde.

Pior, no esforço da travessia “ganhei” uma bela distensão muscular nas costas, está ruim até para respirar...

Tudo bem, precisa muito mais do que isto para me derrubar!

Na saída, até tive a petulância de colocar a vela, mas o vento era NE, totalmente contra. Menos mal que indo rente à margem eu evitava as marolas e ficava um pouco à reversa do vento contra.

Passei por uma imensa casa rosa, lindíssima no alto do barranco. Cara, de cinema, toda em estilo colonial, parecendo do tempo da guerra dos Farrapos.

Ao longo da costa tem um barranco estranho, mais parece um dique contra inundação, é bom porque ataca o vento NE que é contra.

Fui remando até o meio dia quando o vento calmou; estava super cansado e fiquei no alto do barranco para ter uma idéia do lugar. De repente a neblina foi indo para o norte e o sol deu as caras; ainda bem, porque o frio enjoa e o sol gostoso, batendo no corpo carcomido ajudou um pouco.

Resolvi lavar a cabeça, mas o sabonete estava em local incerto. Bueno, depois de seis dias, para comemorar o Sábado, lavei o rosto hoje de manhã...

De higiene só papel higiênico e escovação dos dentes, agora está muito frio; dá um tempo!

Bueno, o meu descanso foi de 1 h e resolvi ir tocando, agora com vento contra de NW; isto foi ruim, pois já era contra, só que agora não teria como fugir das ondas que vinham contra e do centro da Lagoa. Fazia com que a prancha no reboque começasse a dar trancos. É uma merda!

Comecei a ficar cansado quando vi gente embaixo de uma figueira um pouco mais adiante.

Ia passar direto, mas o Senhor Nairon fez sinal para que eu me aproximasse; acho que ali estava sua esposa, suas duas filhas e um garoto, além de um rapaz que ajudava no trabalho.

Ficamos de prosa e acabei batendo uma foto deles e eles de mim. As gurias estavam de binóculo, mas não conseguiram adivinhar o que era aquela coisa que se aproximava, pudera... Um caiaque rebocando uma prancha rumo a Porto Alegre... E no inverno!

Acabei aceitando o convite para conhecer a sede da fazenda Figueira Torta, mas recusei, tristemente, o convite para o café, pois ainda tenho que seguir o meu caminho.

Parti às 15 h, eles foram muito legais. Fui costeando o dique e passei por duas enormes tubulações para puxada da água da Lagoa para os arrozais.

Dali a pouco o dique acabou e fui costeando uma cerca entremeada de campos a perder de vista, um lugar nada hospitaleiro e meio baixo astral, pois no vento gelado, sem abrigo para nada e só no mundo. É soda!

Bueno, se o caminho é esse, então tem que encarar seu André!

 

ARRASTANDO

O vento aumentou demais, então resolvi ir puxando as embarcações pela beira, achei que assim iria dar uma folga para os braços, exercitaria as pernas e, talvez conseguisse ir um pouco mais rápido que o um km/h que provavelmente estava fazendo.

Brody, que dureza caminhar com ondas e vento contra, com água gelada na altura dos joelhos, fundo irregular e escorregadio e ainda tendo que cuidar para que os barcos não encalhassem.

Andei assim por uma hora e meia e o vento foi diminuindo até que resolvi voltar para o caiaque, pois a remo estava sendo mais rápido.

Às 17:30 h parei numa parte um pouco mais elevada, puxei os barcos mais para cima e o que acontece? O vento que passou o dia todo contra, mudou de direção e ficou a favor.

Não é um corno?

Já escuro, armei a barraca ao lado da cerca que passei o dia costeando. Há uns campos e mais ao fundo tem um banhado, para variar estou ao relento, sem abrigo para tempestades.

Estou preocupado porque não vejo a margem uruguaia e amanhã chegarei na ponta do Santiago e serei obrigado a cruzar a Lagoa para NW rumo ao Uruguai, pois pela margem leste a Lagoa abre para o banhado do Taim e a volta será muito grande, além do que por ali talvez eu não consiga encontrar terra firme, ali só tem banhado! Só para ter uma idéia, li numa reportagem que as capivaras estão morrendo de frio no banhado do Taim por falta de terra firme e de alimento. Ficar úmido no banhado é caixão!

Bueno, encrenca para depois de amanhã, pois amanhã pretendo ir só até a ponta, ali acampar e depois sim, partir bem cedo para a travessia; e vamos rezar para que dê um vento favorável e que não mude lá no meio.

Acho que vou ter que deixar de ser cagão e atravessar de windsurf, mas tenho medo de não ter mais forças de segurar a vela grande, além da perda da confiança em mim mesmo.

Detalhe, enquanto a gororoba vai borbulhando lembrei que enchi o galão com água que ganhei lá na fazenda, até já tinha enchido com água da Lagoa...

A gororoba até está menos repugnante, alguém quer?

Rádio e celular nem pensar. Amanhã troco aquele rádio urbano por minha gaita de boca.

O vento parou totalmente, está fazendo um silêncio mortal por aqui, só uma vaca berrando ao longe. Aqui não tem o alarido dos pássaros do mato.

Ontem, vi três emas no campo, próximas à beira da Lagoa e hoje vi um colhereiro cor-de-rosa.

São 20:13 h, vou comer a gororoba e apagar a vela.

 

 

30/07/2000  Domingo       Primeira semana

 

COM A CARA E A CORAGEM

Bom dia, acho que hoje chego na ponta de Santiago, que é onde atravessarei para o Uruguai. Já me preparei a La André para a travessia; vai ser tudo ou nada...

Não vejo a outra margem, mas tenho a bússola e a coragem!

Espero que, se der algo errado lá no meio, eu não fique que nem uma bicha histérica quero morrer com dignidade, como um taura que não se entrega nunca, pois não está morto quem peleia...

É isso aí, cara! Tu já passaste por cada barra pesada que eu nem sei como saíste delas, então segue em frente e confia em Deus. É isso aí, dá até vergonha de falar em Deus, mas é na hora do “pega pra capar“ que as coisas se iluminam; então seja o que Deus quiser! O Paulo diz que é o Deus chiclete, só é lembrado quando a gente está no sufoco!

Mas que eu não vou ficar paralisado de medo, não vou não! Enquanto houver uma chance eu luto até não mais poder.

São 7:16 h vou fazer o mingau e seguir meu destino.

Tomei um antiinflamatório e já estou bom de novo, consigo até respirar normalmente.

É gozado, tem horas que estou no maior sufoco, fazendo força e parece que me divido em dois; um é o corpo que faz força, respira, sua, sente frio e cansa, o outro é o que vai curtindo tudo, olhando os pássaros, a paisagem e os animais. É super estranho!

Agora quando a coisa aperta, os dois voltam a se unir e nos tornamos quase invencíveis, só a morte para nos parar!

Outra coisa para lembrar depois: o café da manhã consiste de uma dose de mel na água, seis colheradas de meleca (neston, mucilon, Nescau, leite em pó, aveia). A meleca rende pra caramba, pois hoje faz uma semana e não gastei quase nada do que trouxe.

Acabou uma garrafinha de cachaça, mas tenho outra, na verdade é licor de cacau com cachaça. O gás só gastou um bujão, que estava ali há três anos, desde a viagem de 1997 do Rio de Janeiro até a divisa com São Paulo no caiaque. Então não conta, vamos ver a nova.

Parti só às 9:50 h, é muito atrolho para arrumar. Fui remando paralelo à costa, com uma neblina incrível; a visibilidade não passava de 50 m, um silêncio que chegava a perturbar, tudo parado, imagens surrealistas, mal e mal o barulho do remo entrando n’água e os barcos deslizando mansamente.

Meu plano era chegar hoje na ponta do Santiago ou no ponto de terra mais próximo dela (tudo poderia estar embaixo d’água), acampar ali e sair bem cedo no dia seguinte, se o vento estivesse favorável.

Após duas horas de remo, o pedaço de terra que eu estava seguindo acabou. Adiante havia árvores secas inundadas. Pelo mapa que eu tinha, adiante haveria apenas árvores secas inundadas, depois dessa área haveria outra parte com terra... E se não houvesse?

Melhor acampar ali mesmo, que era o certo. O problema é que ali era só uma faixa de terra rente à água, nada para me abrigar e, praticamente ao nível d’água, bastaria um vento forte, umas ondas e tudo ali ficaria submerso.

 

RUMO AO URUGUAI -  BÚSSOLA E NEBLINA

Bueno, eram 12 h, eu sem nada para fazer resolvi dar uma voltinha de prancha com o ventinho que começou a se formar. Olha... Entusiasmei-me. Será?

 

-          E aí cagão, porque tu não encaras e vai de Wind?

-          Agora?

-          É isso aí seu merda, seja macho e te manda!

-          Mas eu não vejo nada nessa neblina, nem sei se estou onde penso que estou! Se for na direção errada, posso ficar vagando pela neblina, a noite vai chegar e eu posso morrer congelado, mesmo dentro dos barcos...

-          Olha cara, deixa de pensar, marca um curso e vai.

 

Enquanto discutia comigo mesmo, dois gaviões, acho que um casal pousava ao lado e devorava um rato.

O vento estava fraco e resolvi encarar de prancha. Mal saí dali e o vento quase parou, tive que voltar, pois de prancha não haveria condições.

Nem pensei muito, resolvi amarrar as coisas na prancha e ir no caiaque.

Cara, fui partir só às 13:50 h. Era loucura! Se a travessia fosse de 20 a 25 km, iria passar a noite n’água, isso se não me perdesse nessa neblina espessa.

Bueno, olhei, reolhei e depois olhei de novo para o mapa e decidi:

 

-          Cara, mantém o curso entre 330 e 340 graus, NNW e não sai disso!

 

Um frio na barriga, mas bem lá no fundo gostei de me obrigar a ir, adrenalina!

Só assim o cara tem verdadeiras experiências na vida, somente quando tu és forçado a enfrentar uma situação de vida e morte vai descobrir do que realmente é capaz!

Entro no caiaque e vou para a direção do nada, nunca havia navegado nessas condições, sem poder ver nada, uma travessia para o Uruguai apenas olhando para a agulha de uma mísera bússola...

Andei apenas 10 min e resolvi olhar para trás; simplesmente não vi mais nada, nem a margem da Lagoa que acabara de deixar, agora meus olhos eram só a bússola pequena, pois a capa embaçada não me deixava ver a bússola do caiaque, que era náutica e mais precisa do que a pequena... E se a pequena estiver errada?

 

-          Cara a tua vida depende da outra bússola!

Não tive escolha, peguei a faca e cortei a capa do caiaque que protege da entrada das ondas onde fico sentado (um quadrado) para poder enxergar a bússola que não via há uma semana, pois o plástico transparente colocado nesta parte da capa (para poder visualizar a bússola) estava sempre embaçado.

- Snif, minha capa novinha!

 Resolvi ajeitar melhor a vela na prancha que estava caindo, nisso fiz uma volta para alcançá-la no reboque e quando me preparei para remar, não acreditei que a direção que a bússola apontava fosse a certa.

 

- Não brody, é para lá, tenho certeza! Dizia assim para mim mesmo, apontando para outro lado.

 

É incrível, tu olhas para tudo que é lado e a neblina só te deixa ver apenas uma faixa de 50 m, é como se tivesse um círculo ao redor, chega a doer os olhos querendo ver algo.

 

-          E aí palhaço, vai ficar parado?

-          Eu jurava que era para o outro lado !

Resolvi colocar minha vida na bússola e cravei o curso em 330 a 340 graus, seja o que Deus quiser!

Cheguei a ficar vesgo olhando a marca da bússola; bastava eu me distrair olhando alguma mariposa boiando na água, querendo calcular a velocidade ou mesmo ter alguma coisa para uma referência que fosse e já estava fora do curso.

O tempo foi passando e eu me preparando psicologicamente para o caso de ter que passar a noite na travessia:

 

-          Onde foi que coloquei as bóias luminosas, será que a lâmpada da bússola vai ficar acesa toda a noite? Se não der, não te apavora, simplesmente te concentra no curso, sem querer chegar, quando chegar tudo bem, não estabeleça hora para chegar! Se chegar a noite, não pára até tocar terra firme.

 

E assim me fui, autoaconselhando, remando forte e tentando manter a tranqüilidade.

Tudo fica automático, tu remas, mas não vês o quanto avança, os pés que controlam o leme já vão, automaticamente, corrigindo o curso, parece que o espírito deixa o corpo ali sozinho e vai viajando por cenas do passado, outras aventuras; nunca antes tivera experiência semelhante a esta, sem absolutamente um ponto de referência, mesmo no escuro havia pelo menos uma estrela. Aqui; nothing...

Mais tarde ouvi sons de motor de barco de pesca; e se eles cruzarem por mim? Peço carona, pergunto para que lado fica o Uruguai? E se eles vierem por cima de mim?

Não precisei decidir isso, pois o contato ficou só no som, não vi ninguém...

Menos mal que o vento era de través, um SW fraco.

Depois umas gaivotas cruzam bem por cima, numa direção completamente diferente, não será a rota delas a que vai para a direção da terra? Ó dúvida cruel!

Quer-se sobreviver, tenho que confiar em mim. Segue o curso que tu traçou, seu banana!

Já se passaram duas horas remando, mas a neblina não aliviou nada, parece ser o início da manhã, mas já são 15:30 h, só tem mais umas duas horas de luz e sei lá onde estou. Pelas minhas contas, ia levar umas quatro horas, se a margem original não estiver submersa...

Após três horas de sufoco, a neblina se ergueu um pouco e, no meio da bruma, avistei uma coisa, com certeza era um capão de eucalipto no horizonte; mais adiante outro e outros mais, era a costa uruguaia!

Que legal! Fiquei super contente, embora estivesse longe, estava na direção certa.

Avistei uma torre e muitas casas, acho que era um balneário uruguaio, mas não quis chegar muito perto, primeiro porque poderia ter problemas com as autoridades, segundo porque o meu curso era mais para o norte.

De repente, fui atacado por maruís uruguaios (uma mosca minúscula, que pica como um mosquito). Eles não querem deixar o taura gaúcho invadir suas terras, mas após rápida refrega, o nosso herói seguiu em frente.

Após quase quatro horas de travessia, contornei um pontal e fui por dentro de um banhado para ficar mais protegido.

Achei um local ao pé de uma pequena árvore seca, protegido do lado que fica de frente para a Lagoa. Puxei os barcos para cima, armei a barraca e resolvi ser mais macho ainda.

Para comemorar a travessia e uma semana de viagem, resolvi lavar as partes móveis, cabeça, orelhas e sovaco (com sabonete); não dava mais para agüentar!

Fiquei pelado, no escuro e na beira da Lagoa gelada tomando banho, ainda bem que não tinha vento. UGA BUGA!

Valeu o sacrifício (do banho), estou me sentindo ótimo.

Tomei as vitaminas que o Rojas me deu, um voltarem (a dor nas costas voltou, não consigo nem respirar direito), fiz a sopa com miojo e agora, 20:30 h, estou aqui no Uruguai, escrevendo estas linhas um pouco mais rico de espírito, pois superei meus medos e venci.

 Sei que tenho muita encrenca pela frente, mas a batalha de hoje eu venci. Foi muita adrenalina!

Agora escuto as ondas batendo no outro lado, o que fica de frente para a Lagoa, talvez o tempo mude, mas agora não importa mais, já atravessei.

YES!

 

Toquei um pouco de gaita (o rádio não funciona), o celular só recebe mensagens em espanhol dizendo que não pode completar a ligação e uma das baterias do celular se foi. Amanhã tem mais.

Buenas noches! 

 

31/07/2000   Segunda-feira

São 7:57 h, enquanto o café aquecia, fiz um barro e tirei uma foto do local.

Depois terei que arrumar as tralhas são quatro compartimentos estanques, 26 parafusos para apertar, mais mochilas e compartimento de velas; por isto demoro tanto para sair.

Depois do antiinflamatório amanheci melhor, consigo até respirar normal de novo.

O mel que as tias Cinda e Mari me deram está durando, assim como a rede da proa da prancha que a tia Cinda fez há 15 anos continua guardando as velas da prancha com segurança.

Às 10 h estava com tudo pronto, armei a vela grande, iria de prancha. Não é que o maledeto do vento resolveu soprar forte?

Até a pouco, estava fraco e favorável. Resolvi fazer um teste em terra e o vento quase me arranca da prancha ali mesmo, imagine no meio das ondas.

Bueno, pensei assim: todo dia o vento diminui perto do meio dia e muda de direção, melhor esperar um pouco.

Desarmei a vela e fui sentar atrás de um cômoro, à reversa do vento gelado. Como estivesse muito frio, comecei a tremer sem parar.

Resolvi almoçar por ali mesmo e tomar um gole de canha para ver se aquecia.

Meio dia e nada do vento diminuir, resolvi explorar o local que estava cheio de pegadas semelhantes a cachorro, mas acho que era de mão pelada (uma espécie de graxaim), pois encontrei inúmeros ovos de tartaruga desenterrados e devorados.

Havia, também, pequenos pássaros azuis com uma faixa preta na altura dos olhos, eram pequenos como um cebinho. Eles comiam bichinhos nas ervas de tarrã.

Adiante, havia um local de acampamento.

Resolvi voltar para os barcos e ver se o vento diminuíra, mas nada. Enchi o saco!

Enrolei a vela e fui preparando o caiaque enquanto um pássaro preto, com um canto melancólico observava o agito quase a meu lado, sem medo.

Ondas médias jogando contra e lá fui eu, corcoveando no meio das ondas e quase sem sair do lugar (13:20h).

Pelo menos estava saindo dali, ficar no mesmo lugar é deprimente.

As horas foram passando e a única distração era cuidar as ondas que vinham de través e fazer força.

Um barco de pesca passa próximo a costa, eles têm que vir se orientando visualmente, paralelos à margem, pois além do frio de rachar e da água gelada, fica esta neblina o dia todo, hoje tocada a vento forte.

É deprimente eu olhar no mapa e ver que da outra vez, de windsurf, eu saía cortando baías, andando de 30 a 40 km/dia e agora eu quase tenho um orgasmo quando consigo andar 20 km num dia; no mais das vezes é 10 a 15 km/dia, é dose!

Fui costeando uma faixa de terra inóspita e sem abrigo; aqui e acolá uma rês pastando ao longe nos campos sem fim da pampa, às vezes, era uma ema próxima da margem. No mais era o vento gelado e contra e esta água geladérrima que teimava em respingar quando as ondas batiam no costado do caiaque.

Vi o marco fronteiriço, uma espécie de triângulo de concreto parcialmente submerso na foz do rio Jaguarão.

O problema é que estava muito longe ainda e como a faixa de terra acabara, (só havia banhados inundados para frente), resolvi não cruzar para o Brasil.

Eram 16 h e como não houvesse lugar melhor, resolvi acampar ao lado de um banhado, num campinho a poucos centímetros d’água e completamente sem abrigo contra o vento. Botei o plástico e a parte de trás da barraca voltada para o gelado vento SE, eu estava indo para N. Coloquei roupa seca e estou tremendo até agora, a noite será gelada e por isto vou colocar a roupa de neoprene por baixo do saco de dormir, esta noite que passou quase não dormi por causa do frio que vem do chão.

Pensando nisto, é bem melhor dormir por cima do solo do que dormir por baixo dele, como quase aconteceu no acidente...Lá deve ser bem mais gelado, he he he! Um pouco de humor negro para alegrar.

Estou vendo a sede de uma fazenda uruguaia, mas acho que ninguém virá até aqui pelo banhado, está há uns três ou 4 km daqui.

Aqui do lado é pouseiro daquelas chatas gaivotas de cabeça preta que gritam sem parar quando tu invades o espaço delas. Em frente (estou cercado de água) vi dois ratões do banhado nadando tranqüilamente.

Uma narceja alça vôo bem alto e mergulha rápido, emitindo um som semelhante ao barbante de uma pandorga (pipa) quando mergulha, BRRRR...

São 18h, o sol já se pôs, não o vejo faz dois dias, apenas essa neblina gélida que esconde os capões de mato ao longe.

Espero que amanhã o vento dê uma colher de chá. Isto está mais para D. Quixote e Sancho Pança (a prancha) combatendo moinhos de vento.

Faz uma cara que não vejo ninguém, não me importo. Vou curtindo as coisas que são as que eu queria; apenas estou duvidando chegar em Porto Alegre.

Vou em frente até próximo do último dia das férias e fim...

São 19:05 h, o vento está aumentando, mas acho que o plástico enfiado por baixo da barraca ataca bem o vento.

Estranhamente acabou o bujão de gás, será que estava vazando ou eu que deixei ligado muito tempo ao fazer a sopa?

Hoje só fiz mingau, é para economizar miojo e sopa, pois não sei quando vou poder comprar mais.

Os barcos estão soltos, mas se o vento tocar a água até eles, a tendência é que venham mais para cima, então buenas noches, para mim vai ser longa e fria!

 

Cara! São 21:56 h, está dando o maior rebu lá fora!

Vento forte, barraca vergando, mas agüentando firme. Fui obrigado a sair da barraca para olhar os barcos e também avaliar minha situação, pois nem tenho para onde ir se a água invadir o campo.

Apesar das ondas, o nível das águas não subiu. Então, pelos meus profundos cálculos matemáticos, pior do que estava não ia ficar.

Aproveitei, peguei a lanterna grande que estava na prancha e volto, enregelado, para a barraca.

Outra coisa que funcionou, foi ter colocado a roupa de neoprene por baixo do saco de dormir; estou me mantendo quente e não estou passando frio. A lona que enfiei por baixo da barraca ataca bem o vento e também isola a barraca caso chova, tirando o perigo de molhar tudo. Legal né?

Mais notícias, aguardem o repórter Esso (essa é do tempo do Aldo e do Rojas).

Pois é; e o meu brody? Não te preocupa carinha porque o cara aqui é osso duro e agüenta o tranco! Assim que este celular der uma luz, mando notícias, só deu sinal nas duas primeiras noites.

 

01/07/2000   Terça-feira

São 6:55 h, o vento está pior do que ontem, vou ter que enfrentá-lo ou ficar aqui parado. Pelo menos a roupa de neoprene está mais quente e seca do que ontem.

As gaivotas de cabeça preta e grito estridente despertaram, assim como os quero-queros e as narcejas, que estão fazendo uma festa com este vento.

Tenho que fazer algo lá fora, será que alguém conhece uma técnica para que o papel higiênico não enrole com este vento?

Pois é, consultando meus alfarrábios, minha rota deverá ser para NE e o vento E é contra; tenho que ter ânimo para sair daqui. A vontade é de ficar na barraca, dentro do saco de dormir, cheio de roupa, luva seca, touca de lã cobrindo o nariz e não seguir... Ainda mais porque tenho que colocar a gélida roupa de neoprene sobre o corpo quente.

Na viagem de windsurf eu não tinha nada disso, as roupas que usava para dormir eram em menor número, acordava às 5 h, tremendo de frio e até era bom colocar a roupa de neoprene; era ruim na hora, mas conseguia parar de tremer.

Eu tomava rápido o café para me esquentar um pouco, esperava o sol nascer às 7 h e não tinha quase nada para guardar na prancha.

Agora a hora que desperto é 7h, por aí vai a diferença, só tinha a prancha e a vela.

Quando o cara sabe e tem força, andar 25 km/dia é pouco, a média dá entre 30 e 40 km/dia.

Agora vou sofrer o inferno para atravessar o delta do rio Jaguarão contra este vento forte e as ondas que surgem no meio da densa neblina.

Então mis amigos lá se vai o exército Brancaleone!

 

ENTREVERO NA CAMPANHA

Quando estava terminando de arrumar os tarecos, escutei barulho de cavalos no banhado, eram dois cavaleiros uruguaios!

 

-          Enquanto eles atravessavam o banhado com suas lanças, o nosso famoso taura gaúcho e gremista se preparou para a peleia.

-          Coloquei minha super faca sobre o caiaque, bem à vista deles e continuei arrumando as coisas, como se a morte nem estivesse rondando por ali.

-          Eles vinham prontos para o embate, mas, ao verem o nosso super herói em quadrinhos demonstrar tamanho sangue frio, sentiram que iam se dar mal e resolveram ser amistosos:

-          (eles)        Buenas! Lindo dia, no?

-          (eu)          No es lo que pienso yo. Este viento hijo de puta me hizo prejuízio y ahora me quedo acá medio aburrido por no poder seguir para adelante !

-          (eles)       Calma hombre, um macho como usted logrará una manera de salir !

-          (eu)          Si, es claro. Pero y ustedes,  son estancieros?

-          (eles)       Si vivimos acá y niguna persona que cruzó por nosotros salió viva  de aqui!

-          (eu)         Bueno, y como va ser? Yo soy un hombre de muchas peleas y niguna persona pisa em mi pala!

 

Eles, ainda assustados com as vinte e sete marcas na faca (imaginaram que as marcas representassem os mortos marcados ali) pensaram antes de responder. Mal sabiam eles que as marcas apenas representavam as virgens abatidas.

 

-       (eles)       Bueno, como miramos que usted está solo de paso, le deceamos que se vaya bien compañero!

-       (eu)          Gracias amigos. Ustedes salvaram su vida y yo no les devo nadie entonces!

-                            Hasta la vista!

 

E assim se foram os estancieiros, gente boa como somos todos os gaúchos; essa maneira de ser, os costumes e a tradição não tem fronteira.

Entrei no caiaque e fui remando contra o vento e as ondas até chegar no marco fronteiriço uruguaio, onde tirei umas fotos. Provavelmente aqui deve haver um belo campo, mas agora está submerso.

Depois atravessei o rio Jaguarão e cheguei na República do Rio Grande do Sul.

E assim me fui em frente, beijando boca de china e aparando guampa de macho! Êta índio bagual! 

Bueno, remei mais uma hora contra o vento, aquele esforço tremendo e avanço quase zero.

Era até gozado, o vento NE soprando forte contra meu avanço e eu xingando ele de tudo que era nome.

Resolvi parar um pouco adiante onde subi num cômoro e vi uma ema a menos de 10 m, resolvi fotografá-la e voltei ao caiaque para pegar a máquina fotográfica; quando retornei ao local ela sumira! Os cornos dos quero-queros denunciaram minha presença.

Remei mais um eito e parei na reversa do vento. Que lugar agradável!

Um gramado ao lado de um capão de eucalipto, abrigado do vento e repleto de cocotas, um alarido incrível, mas gosto do barulho delas. Bom lugar para descansar enquanto comia chocolate.

Estou ficando fraco e sem saco de remar contra essas ondas e o vento.

 

ASSUNTOS INTERNOS

-          Porra! Por que tu não usas a prancha?

-          Não dá cara! O vento está contra, meu braço dói, não vou conseguir segurar a vela e manter o equilíbrio neste mar que está fazendo.

 

Cinqüenta mil desculpas para não tentar; há horas estou decepcionado comigo mesmo neste ponto.

Fico ali, na falsa segurança do caiaque, preferindo remar que nem um condenado e sem tentar.

 

-          Tem que te ralar mesmo cara! Para mim tu és um COVARDE!

-          Fica só com pena de ti mesmo e tem medo de enfrentar as ondas com o windsurf, só porque te desse mal no primeiro dia.

-          Pelo menos tenta, seu DERROTADO!

-          Cara, eu não deveria ter falado assim comigo mesmo!

 

Fiquei com raiva, armei a vela grande, botei meus fantasmas de lado (a preguiça também) e subi na prancha.

Que loucura, o vento de través, quase uma orça, os cabos da retranca chicoteando aquela água congelante que passava assobiando no ouvido.

 

-          Eta índio bagual!

-          Saí gineteando a prancha que corcoveava nas ondas qual um corcel crioulo tentando me derrubar desesperadamente.

-          Ele estava aturdido com esse taura gaúcho que surgiu das cinzas e o domou com louvor.

 

Cara, foi a coisa mais linda que me aconteceu até agora. A alegria de zunir por cima das ondas, fazendo o caiaque no reboque mergulhar de bico nas águas, como ele nunca fizera até hoje, foi demais!

Mesmo orçando neste vento dava para sentir a energia adormecida de 15 anos desta prancha que despertou junto comigo e a força cavalar que ela fazia, arrastando o caiaque como se ele nem existisse, fazendo com que ele furasse as ondas, pois a velocidade era tanta que não dava tempo de ele subir na onda.

É outra coisa! As ondas que me faziam penar agora eram cortadas e chicoteadas pela nega que fez eu me sentir em paz comigo mesmo.

Hoje foi o dia da superação, estou há sete ou oito dias me podando, não arriscando e de repente parece que a viagem começou agora.

Pude utilizar o trapézio, deitando o corpo até encostar-me às ondas, sentindo o vento e as cristas das ondas baterem no rosto, uma sensação de liberdade incomum, uma alegria embriagante que me deixava eufórico; até me permiti cantar o hino dos farrapos enquanto voava em direção da ponta do Juncal, trocando inúmeras vezes de borda durante a orça. Foram duas horas de luta até cruzar o pontal; e, melhor ainda... Nenhum tombo.

Após cruzar a ponta do Juncal, o vento ficou bem mais fraco então resolvi procurar local para acampar já no caiaque, pois era bem melhor para manobrar no banhado que havia ali.

Contornei uma ponta e achei um barranquinho gramado que não ficaria de frente para as ondas da Lagoa.

Do outro lado do canal; há uns 200 m, há um acampamento de pescadores ao lado do barco deles, mas não falei com eles; cada um ficou na sua.

Aqui era para ser o arroio Juncal, mas agora é um banhado só. Curicacas, quero-queros e um bicho desconhecido que deu um berro estridente ao lado da barraca que me deixou com os cabelos em pé, desgraciado! Marrecas piadeiras, socós e sapos (que me deixam de baixo astral, pois seu coaxar parece estar chamando chuva).

Minha água acabou de novo, vou encher o galão com água aqui do banhado.

São 19:55 h, vou fazer a sopa e nanar. Buenas noches!

 

 

2/08/2000    Quarta feira

Nesta noite dei um pulo na barraca por causa do bicho que dá o berro estridente, de deixar os cabelos em pé, ter berrado ao lado da barraca. Muito engraçadinho!

Não sei se o corno é uma coruja ou um cachorro do mato.

Às 4 h o forte vento arrancou a lona plástica que cobria a barraca; vacilei um pouco para sair no frio, mas não tinha remédio.

O vento mudou para SW e uma neblina espessa cobria o banhado; em contraste, o céu estava estrelado e fiquei um pouco mais ali fora, o corpo passando frio e o espírito curtindo tudo.

Esqueci de tempo e distância; agora o negócio vai ser este: curtir o “visu”, como diz a Helena, e acumular experiências e aventuras para repassar aos sobrinhos. 

Estou vivenciando uma viagem de reconquistas, resgate de valores e um papo mais profundo comigo mesmo, para eu me situar no tempo e no espaço, entende?

É numas tipo assim meio que bah! Sóóó...!

 

-          Mas se a sentença se anuncia bruta, mais rápida do que nunca, a mão cega executa, pois que senão o coração perdoa!

 

É assim que faço todos os dias para colocar a roupa de neoprene, gelada e úmida, no corpo quente num frio de dois a quatro graus.

Cara, fui lá fora e o forte vento SW está frio de gelar os ossos, além de uma neblina que não permite pouso e decolagem nem de quero-quero!

Depois os passarinhos estavam pousados bem ao lado da barraca, no mastro do caiaque e dali pularam para o alto da barraca, posso ver as patinhas deles aqui em cima.

Abri o zíper e mesmo assim não se afastaram, eram marrons e super mansos.

Mais tarde foi uma garça que passeava a menos de 1 m, nunca havia visto uma tão de perto, pois eu a espiava pela fresta da lona e ela não podia me ver; só não tirei uma foto porque um pouco antes fui tirar uma foto na rua e esqueci a máquina sobre o caiaque. Droga!

Obs. Alguns pescadores ligaram os motores e foram embora, agora o banhado é só meu!

 

COINCIDÊNCIAS DA VIDA

Estou terminando de arrumar as coisas e um dos pescadores apareceu para conversar.

Papo vai, papo vem e ele me falou que um tempo atrás passou um cara fazendo um “raid” e que falou com ele na ponta do Santiago, antes da travessia para o Uruguai...

 

-          A vida é incrível!

-          O cara de quem ele estava falando era eu mesmo!

-          Naquela oportunidade, antes de atravessar para o Uruguai, estava temeroso e com frio no windsurf.

-          Falei com um pescador, era ele, seu Jader que estava falando comigo agora!

-          Foram só 15 anos que se passaram...

 

Ele falou que há previsão de chuva para hoje e que a temperatura vai baixar mais ainda. Falou que o Brasil ganhou de 3 x 1 da Argentina pelas eliminatórias para a copa do mundo.

Que legal, acabamos com a banca dos argentinos! Eles se achavam só porque estavam liderando as eliminatórias, foi a primeira derrota deles...

 

Pois é, foi bom demais tê-lo reencontrado e graças às informações que ele me deu, escapei de uma fria das bravas.

Parti só às 10:30 h, tarde pra caramba, de caiaque até a saída do banhado. Ali montei a vela grande e fui de windsurf no rumo NE, com vento de SW.

Nem acreditei, vento de popa e de Wind, pena que demorei a sair, perdi pelo menos duas horas de vento bom...

Fui em direção da ponta Negra aonde cheguei em 1 h (seria umas 2 a 3 h de caiaque).

 

-          É brincadeira, quase não fiz esforço nenhum.

-          Uma coisa é uma coisa; outra coisa é uma coisa bem diferente (ditado Mané)!

 

Toquei direto, não queria perder este vento bom de jeito nenhum.

Mais tarde, o vento ficou fraco e resolvi encostar nas dunas para almoçar. Sentei num lugar com pouco vento entre as dunas onde devorei o queijo e o salamito. O chocolate, que era a sobremesa, ficou para depois, pois o vento aumentou de novo e eu me fui.

Da ponta Negra tirei uma reta para o último capão de mato que podia ver no horizonte.

De prancha é assim, nada de ser “aparador de junco” como eu sempre dizia para o Júlio e o Teixeira quando, de caiaque eles quase não se afastavam da costa e eu, de windsurf, seguia bem mais afastado para pegar melhor vento ou mesmo porque tinha que seguir em zig-zag contra o vento.

Na prancha o horizonte é outro, as distâncias são menores!

O cara sente prazer em velejar, como vai em pé, vê melhor o lugar para a costa.

Como o vento parou, deitei na prancha lá no fundo mesmo, onde até tirei uma foto. Depois toquei mais um pouco e o vento parou de vez.

Foi uma calmaria só e como achei que não mudaria, fiz a troca de embarcações há 3 km da costa.

Quando um temporal se aproxima é assim, o vento pára e quando volta, volta com tudo!

Fui, a remo, até o final do capão e percebi que ali era a entrada do arroio Bretanha.

Eram apenas 17 h e a vontade era de tocar até às 18 h.

Por alguma razão, alguma coisa estava me inquietando; além disto, a costa à frente era desprovida de matas, apenas campos sem abrigo.

Mesmo querendo seguir, meio que fiquei olhando se não daria para acampar por ali. Havia uma puxada de arroz, imensas tubulações e construções feias e abandonadas que não gosto nem de ficar perto. Por isto, atravessei o arroio disposto a seguir em frente, mas parava para ver se encontrava local abrigado e nada...

 

VENDAVAL

Nisto vejo nuvens estranhas no horizonte e o vento começando a aumentar.

 

-          Xi, isto vai dar merda!

-          Cara, em questão de minutos ondas começavam a se formar e o vento entrou de rajadas e aumentando. Não tive mais dúvidas, adentrei no arroio e parei ao lado das tubulações. Ali havia uma entradinha, uma espécie de mini canal onde poderia enfiar as embarcações e me abrigar no barranco ao lado, contra o vento SE que soprava como um bicho enfurecido.

 

O local não era gramado, era de areia, mas no sufoco não pode haver frescura. Puxei os barcos para fora d’água e fui montando acampamento o mais rápido que podia, tirando, com os pés, as dezenas de bostas de vaca que ali havia, acho que ali era uma passagem estreita para o gado, mas eu não tinha escolha, era o único local que iria me proteger um pouco do vento, aquele barranco de um canal de irrigação.

Antes de levar para a barraca, testei o celular e consegui ligar para o Paulo.

Foi tri, não durou nem três segundos, mas  chegou a chamar duas vezes, então deve ter gravado o meu número no celular dele; agora eles sabem que estou vivo!

Bueno, foi o maior sufoco em meio ao vendaval, mas consegui arrumar minhas coisas e descobri outro furo no flutuador do caiaque. Furei-o com a faca e saiu muita água; o certo era colocar silicone agora para estar pronto até amanhã, deve ter sido um choque com a prancha.

Estou quieto na barraca e ouço barulho de motor, é um veleiro que entra à toda no arroio, fugindo da tempestade.

Corro para a margem, faço sinal, eles retribuem, mas seguem em frente para fundear sei lá onde.

No fim não choveu, mas o barulho das ondas ainda é forte!

O celular está sem sinal, então vou dormir. Hoje andei cerca de 20 km; com a prancha é outra coisa, não tivesse o caiaque no reboque e teria feito, pelo menos, 30 km.

Por outro lado, o caiaque me salvou da calmaria e do vendaval; então está tudo bem.

O dia foi ótimo!

Ah! Ia me esquecendo, quando estava lá no meio da Lagoa, um caça da FAB desviou o curso e o cara inclinou a asa direita do avião para poder me ver.

Foi legal, ele passou tão baixo que eu pude ver até o capacete do piloto. Acenei e, como resposta, ele balançou as asas do caça.

São 20:34 h, fiz o miojo, vou apagar a vela e dormir.

Durante a noite fui ali fora fazer um mix e o céu está uma loucura, extremamente estrelado como só em noites gélidas parece ser. Apesar do frio, fiquei curtindo o visual e olhei para a barraca iluminada por dentro; fica como uma rocha azul e transparente brilhando no escuro, ao fundo o céu estrelado.

São imagens que ficam para o resto de meus dias...

Depois, quando já estava dormindo, o gado queria passar onde estava a barraca, mas estavam com medo e ficavam por ali e não me deixavam dormir.

Se eu tivesse dormido sem abrigo contra este vendaval teria me ferrado. Sorte?

 

 

3/08/2000    Quinta-feira

São 5:30 h, o frio está demais, tive que acender a vela para esquentar o ar na barraca; isto que estou dormindo até com luvas...

Resolvi solucionar de vez o problema do flutuador do caiaque: abri um furo enorme com a faca, esperei a água escoar bem e depois vedei o furo com silicone, depois fechei por cima com durepoxi. Depois esperei secar o remendo.

Desta vez, o furo foi ocasionado por um choque com o bico da prancha.

Parti com um forte vento de SE. No princípio pensei que não fosse agüentar, pois a força que estava fazendo para segurar a retranca era demais.

O vento era de popa (não dava para usar o trapézio) então toda a força era concentrada nos braços. Para piorar, as ondas eram de través o que me obrigava a fazer verdadeiro malabarismo sobre a prancha para permanecer em pé.

Para piorar, quando a prancha pegava velocidade, esticava o lesh (um cabo elástico usado no surf para unir o surfista à prancha) que unia o caiaque à prancha dando um tranco violento para trás.

O braço direito parecia que ia pegar fogo, então eu virava a palma da mão ora para cima ora para baixo ao segurar a retranca, tentando dar uma folga para os músculos do antebraço.

As ondas ficaram ainda maiores, assim como a força do vento.

Após 1 h de sufoco, perdi o equilíbrio com uma onda grande e deixei a vela cair. Aproveitei para descansar um pouco ali no fundo, sentando na prancha e observando a Lagoa cheia de “carneirinhos” (cristas de ondas quebrando).

Depois segui em frente durante algum tempo, o vento ficou forte demais; minhas forças estavam nas últimas, mas estava resistindo bem até que uma onda atravessada me fez perder o equilíbrio e levei o primeiro boléo da viagem, que água congelante, brrrr!

Depois perdi o chapéu que usei na viagem do caiaque do Rio para SP (estava preso no mastro do caiaque e não percebi quando caiu).

O segundo tombo foi pior, pois fiquei preso embaixo da vela além de tomar dois goles involuntários de água; fiquei apavorado com a idéia da vela se desprender da prancha e de eu ficar ali sozinho, à deriva e sem os barcos.

Sentei na prancha e deixei o vento me levar para a costa onde arrastei os barcos mais para cima.

 

CURTINDO BOSTA DE VACA

Deitei no gramado numa pequena depressão para me abrigar do vento (ainda bem que tem sol) e descansar um pouco.

Aproveitei para trocar o cabo da retranca por um maior e queimar as pontas que estavam desfiando para colocar a vela pequena, mais indicada para navegar com um vento forte destes.

Vou ter que tentar de novo, brrrr!

Estou tremendo até agora (14:40 h), mas tenho que sair daqui.

Estou próximo de um mato de eucalipto onde uma violenta tempestade me pegou na viagem que fiz de windsurf; foi tão forte que não pude prosseguir nem no dia seguinte.

Pelo jeito este é um local de ventos fortes.

Seguir de caiaque nem pensar, pois as ondas estão de través e grandes; com a prancha no reboque... Não dá nem para começar.

 

-          Pensa que é fácil? Vem aqui neste sufoco... Terás vontade de se beliscar e acordar numa cama quentinha, vendo sessão da tarde e comendo pipoca (vai trabalhar, vagabundo)!

 

Aproveito o descanso para escrever um pouco.

É isso aí, lá vou eu, seja o que Deus quiser!

Só não quero é ficar me chamando de covarde de novo.

Agora não tem braço ruim, perna quebrada; é sem desculpa cara! É pauleira pura, sem tempo para xurumelas, a natureza não quer nem saber, só os fortes sobrevivem; então tenho que viver!

É isso aí brody, as ondas estão crowdy!

Então cavalga estas cornas, de noite vai ter sopa!

Ah! Para lembrar: a prancha virou na chegada aqui, mas pelo menos nas coisas da mochila não entrou água.

Estou aqui, deitado na grama, tomando sol e sem vontade de partir.

Adeus!

 

Amigos! São 17:28 h, daqui há 27 min o sol irá se por estou praticamente no mesmo lugar e escrevendo de novo.

Fui encarar as ondas com a vela pequena, um inferno de ondas repetidas que fustigavam sem parar, puxo a prancha, puxo o caiaque, puxo a vela, ajeito tudo e subo na prancha. Escorrego e começo tudo de novo.

O mastro da prancha solta no agito das águas, tenho que pular na água e as ondas passam por cima.

Já estou ensopado e invocado, mas não desisto!

Finalmente tudo deu certo, subo na prancha desenrosco os cabos que unem as embarcações, ergo a vela sem enroscar no caiaque e começo a velejar.

Não acredito, sabem o que aconteceu?

 

As ondas viraram o caiaque no reboque. Mierda!

Tenho que saltar na água gelada para desvirá-lo e nisso a prancha também vira.

Nado para cá, nado para lá, junto coisas que estão boiando e nisso rebenta um estensor que segurava a mochila da popa da prancha e a vela reserva da prancha começa a boiar...

 

-          Virou rebu! Estou tomando banho gelado pessoal! A corda que unia as embarcações, presa nos puxadores da prancha, arrancou tudo!

-          As ondas estouram sem parar e o vento assobia nas cordas dos destroços...

-          Estou quase derrotado!

-          Tu só me venceste agora porque eu tenho reboque, seu vento traiçoeiro!

 

E agora? Só me resta montar acampamento aqui mesmo e consertar as avarias.

Atenção, os compartimentos estanques (tanto do caiaque quanto da prancha) tiraram nota dez!

Nada molhou!

Os furos que ficaram no bagageiro da prancha (pelos fixadores arrancados) foram tapados com durepoxi; só quebrou uma ponta plástica de um estensor.

Passei um cabo ao redor do bagageiro da prancha para rebocar o caiaque quando necessário.

Estou tremendo um pouco (de frio); se este vento continuar amanhã, não conseguirei sair deste local.

Antes de sair lá do outro acampamento, consegui falar com o Paulo, foi legal demais!

Toda hora cortava a ligação, mas pude falar um pouco e deu para matar a saudade.

Quem sabe não é por causa disto que estou forçando a barra?

 

-          Tem que aproveitar a experiência e ter calma seu André

-          Quem sabe amanhã não melhora?

 

Aproveito que é cedo e coloco as roupas para secar numa cerca ao lado. Puxei as embarcações para cima e escrevo dentro da barraca, um pouco mais abrigado do vento enquanto o sol não se põe.

Graças a Deus posso consertar o que quebrou.

É... Acho que desse jeito não vou conseguir chegar em POA.

Então a conquista será a Lagoa Mirim... E porque não?

 

-          Brotei no ventre da Pampa, que é pátria na minha terra,

-          Sou resumo de uma guerra que ainda tem importância!

-          E diante de tal circunstância, segui os claríns farroupilhas

-          E devorando cochilas, me transformei em distância...

 

-          Êta índio bagual! Não te entrega companheiro, pois não está morto quem peleia!

 

É isso aí; o sol está se pondo e tem um bando de gado querendo passar entre a barraca e a cerca, mas acho que estão com medo das roupas penduradas ali. Vou pegar as roupas por que estou tiritando.

O véio Laerte ia adorar assistir estes pores de sol.

É incrível: milhares de maçaricos e marrecas passam pelo céu que está trocando de cor, enchendo o horizonte de pontos negros, indo para local incerto passar a noite.

É coisa que estou vendo todo dia, mas não dá para cansar de ver tanta beleza.

As ondas estão furiosas aqui ao lado, o vento só faz aumentar, mas a barraca está firme (por enquanto); coloquei um plástico por baixo do assoalho e uma lona plástica por cima. Além disto, coloco a parte de trás da barraca voltada para o vento com a lona enfiada por baixo do assoalho, aí ataca e desvia bem o vento.

A vela, que está acesa agora (18:15 h), aquece um pouco o interior.

Estou economizando comida; portanto hoje o rango será sopa, amanhã miojo. O gás será apenas para a comida e deu, nada de esquentar água para me descongelar.

Hoje só andei uma hora e cerca de 7 km; se este vento não fosse tão forte...

Por falar no vento, só faz aumentar, o barulho das ondas já está perturbando meu sossego.

Dá até um receio de que a água leve os barcos que estão ao lado da barraca; se a água chegar até eles, toca antes na barraca.

Estou apenas a 3 m da beira, será que sobe mais?

 

Relembrei do sufoco desta tarde e até tirei sarro de mim mesmo quando estava deitado na grama, tentando me aquecer e escapar do vento após o sufoco nas ondas:

 

-          (espírito) E aí brody, curtindo bosta de vaca?

-          (corpo) Vai te cagar, seu merda!

-          Tu não querias que eu enfrentasse as ondas?

-          Olha só o que tu fez!

-          Rebentou o bagageiro da prancha, perdi o boné da viagem do Rio de Janeiro, além do relógio do compartimento da bússola que encharcou.

-          De que me adiantou tamanha valentia? Ainda por cima estou encharcado e congelado.

 

Bueno, chega de papo e vamos fazer esta sopa e tocar gaita de boca, é o que me resta!

 

(23 h)

My God! O vendaval conseguiu ficar mais forte ainda. Não sei se a barraca agüenta, uma corda do toldo está solta e já puxei para dentro e prendi no dedão do pé.

Nem dormir o cara consegue mais, só faltam as ondas chegarem até aqui.

O vento era SE, agora mudou para NE, pior ainda, pois assim ficará contra para prosseguir amanhã.

Acho que vou fazer usucapião especial deste pedaço de barranco, pois desse jeito não sairei tão cedo daqui.

 

4/08/2000   Sexta-feira

Bom dia, são 7:12 h, o termômetro registra quatro graus na barraca e 2 graus lá fora.

As ondas continuam, o vento parece ser NW, sei lá!

O barulho das ondas foi tanto durante a noite que cheguei a sonhar estar lavando um edifício com um lava-jato.

Já tomei café e ainda estou com sono. Para liberar o pé da corda que estava presa no dedão, amarrei a dita cuja na lanterna e fechei a porta da barraca; só assim pude dormir!

Agora é preparar o espírito e a tática para sair daqui.

Ouço tiros, são caçadores que se alastram pelos banhados atrás das marrecas e marrecões; é um alarido só (o dos fugitivos).

Acho que vou sair de caiaque, utilizando a vela; em último caso saio com uma embarcação, retorno a pé e vou com a outra, não quero mais ficar aqui.

Parti às 9:20 h, frio de rachar aliado ao vento cortante, mas eu tinha de sair cedo para deixar este local de ventos fortes e ondas de través.

Acho que aqui é a parte onde a Lagoa Mirim fica mais larga, fica de frente para o banhado do Taim, na outra margem, há uns 40 ou 50 km; por isto as ondas e o vento...

Constatei que o vento era de SW, favorável, mas com muitas ondas de través. Por isto, pensei em seguir na prancha com a vela pequena, mas a experiência foi muito desgastante (vento de popa e ondas de través).

Porque não seguir no caiaque com a vela dele?

Ë isso aí!

O negócio foi deixar tudo mais ou menos pronto, amarrar os barcos e atravessar a arrebentação com um barco em cada braço (para não deixar que virassem) e dar um jeito de pular no caiaque lá no fundo mesmo.

Só assim teria tempo de remar e tracionar o reboque antes de a prancha virar com as ondas.

Não poderia vacilar, pois as ondas me levariam para a zona de arrebentação, aí vira um, vira o outro e eu fico futz!

Cara, o que é isto? Que água congelante!

Entrar de manhã cedo nessa água fria, temperatura de quatro graus, vento cortante... Tem que ter muita determinação.

Consegui subir no caiaque e, a remo, me afastei mais ainda da costa, onde tive tempo de armar a vela do caiaque.

 

-          Cosa linda!

-          Soltei o tigre.

 

A vela enfunou, o caiaque ganhou vida e nos fomos ondas afora.

Eu estava velejando com o vento na mesma direção de ontem, com menos velocidade do que o windsurf é claro, só que a diferença é que estava velejando numa boa, sentadinho, podendo olhar a paisagem para os lados sem o perigo de deixar a vela cair ou do braço ficar “queimando” de tanto fazer força.

Além disto, não estava naquele sufoco, sapateando na prancha para manter o equilíbrio e não tomar um caldo nessa água congelante.

Na prancha, concentração total, não dava nem para desviar o olhar para o pulso, tentando ver as horas.

Aqui no caiaque, se eu parasse de remar, não tinha problema, era só ir controlando o rumo do caiaque com o leme controlado nos pés, a vela presa nos puxadores de borda levava para frente, sozinha, o caiaque.

As ondas de través que, ontem, me mataram no cansaço, agora eram totalmente controláveis, não tinha nem graça.

O flutuador que eu consertei ontem voltou ao nível normal, assim o caiaque não estava mais adernando para bombordo.

Meu único medo era o de a prancha virar no reboque, mas ela estava indo bem.

 

-          Iuuuuhuuu!

-          Que alegria, agora que tudo estava sob controle, comecei a curtir o prazer de velejar, é bom demais!

 

 Claro que ia remando ao mesmo tempo em que velejava, pois só à vela, o caiaque quase não vai, mas seguia na minha tocada normal e, quando cansava, podia parar de remar que o caiaque seguia o curso assim mesmo.

 

UMA ESTÓRIA QUE QUASE SE REPETIU

Passei pelo capão de eucalipto onde enfrentei violenta tempestade na viagem de windsurf e onde meu astral foi abaixo de zero!

Por falar nisso, daquela vez, a temperatura foi a zero grau durante a noite, a barraca praticamente desmontou e ficou cheia de água no assoalho.

Com o temporal que fazia, algumas árvores do capão ao lado desabaram e no sufoco eu tive que colocar a roupa de neoprene, encharcada mesmo, para suportar o frio, não foi fácil!

Além de tudo, eu sabia que as águas chegariam no windsurf próximo à beira, mas eu não podia fazer nada quanto a ele, pois ficou cada um por si no sufoco!

Hoje, com dois graus, também foi ruim, mas sem chuva e sem o desespero da outra vez...

 

Após três horas velejando, meu estômago roncava, mas eu não queria parar na margem, com medo de as embarcações virarem nas ondas da arrebentação.

Um pouco adiante, o vento diminuiu, então resolvi encostar para descansar e visitar o desativado farol próximo à costa (farol Vista Alegre).

Comi um pedaço de queijo e salamito, além do chocolate.

Deixei os barcos na margem e fui pelas dunas até o farol.

Subi até o topo onde tive uma vista maravilhosa dos arredores; do banhado Novo Mundo (onde teria de atravessar para a margem leste) um pouco mais a frente e vi que as margens estão convergindo.

É bom poder ver a outra margem, dá para perceber que a Lagoa está afinando.

Bati algumas fotos e descansei atrás do farol, abrigado do vento e tomando um banho de sol para esquentar um pouco.

Voltei para os barcos e segui em frente, agora com o vento bem mais fraco, até chegar no banhado Novo Mundo, duas horas depois.

Ali encontrei uns pescadores ao longe, tentei chegar onde eles estavam, mas havia um banco de areia que não permitia uma maior aproximação.

Pedi informações a eles dali mesmo e me convenci a atravessar para a margem leste hoje mesmo, pois sei lá como estará o tempo amanhã.

Antes de prosseguir eles perguntaram:

 

-          Tu vens de onde?

-          De Santa Vitória do Palmar!

-          BAH!

-          E tu vais para onde?

-          Porto Alegre!

-          BAAHH!

 

Após cinco horas remando, não tive refresco, não podia pensar muito, o tempo para atravessar, de dia ainda, era curto! Era uma travessia de duas horas, se não desse zebra. O cara nem vacila, simplesmente vai!

Despedi-me dos pescadores e fui em frente, deixando para trás a costa oeste rumo ao outro lado da Lagoa.

Lá no meio, fiz um alto para recolher água na bombona, pois a minha tinha acabado de novo. Acho que a água ali do meio é mais limpa que a da margem.

Fui me aproximando da costa depois de uma tranqüila travessia. Depois mudei o rumo para uma rota paralela à margem, procurando um lindo local onde acampei na viagem anterior.

 

BANHADO ZEN

Cheguei no local, um bom lugar, com mata nativa, abrigado do vento SE que sopra na copa das árvores, um silêncio mortal constratando com o sopro de vento do outro lado.

As boas recordações me fizeram aqui parar.

Da outra vez, o frio era tanto, que quando fui pegar a prancha para partir, placas de gelo cobriam a embarcação.

Já montei acampamento, faz muito frio, mas já me aqueci fazendo sopa com miojo.

É outra coisa acampar abrigado do vento, pode estar bem frio, mas a barraca permanece aquecida sem o vento.

Como tem sinal, falei com o Paulo e a mãe no celular, foi muito bom, o cara não se sente sozinho.

Agora são 20:30 h, vou arrumar os troços para dormir, pois vem frio aí.

 

 

5/08/2000   Sábado

CAPIVARAS  -  SONHOS   E PASSEIOS

Fez muito frio esta noite, agora está fazendo seis graus e, em algum lugar, a Lagoa virou mar...

Como estou acampado na costa, no sentido SE-NW, quase no vértice de um triângulo e o próximo sentido será SW-NE nos próximos 25 km, estou altamente desconfiado de que terei vento contra pela frente.

Nestas condições, não consigo atravessar este trecho sem terra firme e chegar em Santa Isabel no dia de hoje, no final da Lagoa Mirim.

Daqui para frente, não existe local para acampar antes destes 25 km, pois a vegetação consiste de banhados e umas árvores secas, de porte médio que crescem nos banhados. Elas formam um emaranhado de galhos que não permitem a visualização através do emaranhado e muito menos navegar por ali.

Da outra vez me ferrei por causa disto, por não encontrar terra firme e não achar o final da Lagoa Mirim nem o canal de São Gonçalo, que une a Mirim com a Lagoa dos Patos.

Há muitas cocotas aqui do lado fazendo algazarra. É gostoso estar abrigado do vento!

A água recuou uns três metros de onde estava ontem. A beira é gramada e o mato nativo, onde estou, acaba aqui atrás, há uns 20 m, num lindo banhado.

Aqui na frente, voltado para a Lagoa, há lindíssimas árvores retorcidas pelo vento com formatos tri estranhos.

Vou arrumar as coisas e decidir o que fazer!

Com certeza, terei pedreira pela frente e não sei o que fazer, não sei se vale a pena seguir contra o vento. Nestes casos, a experiência me demonstrou que a velocidade não passa de um km/h.

Não consigo determinar a direção do vento, mas uma coisa é certa, ele está muito forte (dá para perceber pela copa das árvores, apesar dele não mover um capim sequer aqui onde estou) e o barulho das ondas é para o norte, por isto, acho que vou me ferrar se prosseguir.

 

Atenção!  Não vou mais sair!

Lá estava eu, naquele profundo momento de reflexão, no estado B (para quem não sabe, é a letra grega beta), bunda branca ao vento gelado quando relembrei o que me disse a dona Fátima, esposa do Sr. Moacir da Ilha Sandri, no Rio de Janeiro:

 

-          Pra que tu vais te arriscar com mau tempo se estás num porto seguro?

 

Agora que clareou bem o dia, posso ver que está soprando o maior pau de vento, de NE, com rajadas, inclusive.

Dá para ver as ondas formando “carneirinhos” e sem a mínima chance de prosseguir contra as ondas com reboque.

Não houvesse cruzado ontem, hoje não poderia ter cruzado, pior... Ficaria a mercê do vento lá do outro lado, enquanto aqui onde estou não poderia ser melhor; toda esta pauleira de vento e mal mexe o plástico da barraca.

A água baixou uns dez metros; uma árvore que ontem estava submersa está fora d’água em meio a um lindo gramado.

O dia está lindo, então vou explorar os arredores, tirar fotos e curtir o “visu”.

 

-          É isso aí manezada! E a turma de Floripa?

-          Eh, eh, eh, eh! Tash tolo?  Oióióio...

-          Quésh, quésh, não quésh, diz!

 

Vou levar a mochila, um mé (cachaça), queijo, salamito, máquina fotográfica e lanterna (pena que o Luigi e a Gabriela não estão para o passeio).

Como diz a música:

 

-          Eu vou voltar aos velhos tempos de mim, vou colocar o meu sapato marrom

-          E ir, andando por aí...

 

São 12:41h, acabei de chegar de minha pequena excursão.

Saí aqui por trás, por dentro do mato até chegar no banhado. A mata não é muito alta, mas dá para seguir meio que abaixado.

De cara, um alarido de cocotas furiosas porque cruzei por baixo do coqueiro onde construíram seu ninho.

Enquanto caminhava, sabiás-laranjeira e pássaros silvestres pulavam de galho em galho, me seguindo através da mata.

A trilha onde me deslocava parecia um pequeno túnel na densa vegetação, semelhante ao que os bovinos fazem ao circular pelo mato. A diferença é que este era de animais de menor estatura.

Depois vi montes de fezes semelhantes as dos ratões do banhado, só que eram bem maiores.

-          Capivaras! Imaginei.

 

Adiante ouvi algo tipo um latido abafado.

Nem acreditei, vi umas três capivaras me observando a não mais de 10 m. Duas entraram no banhado e uma ficou me olhando por entre os galhos.

Bati uma foto, mas não sei se ficou boa, cheguei até uns 5 m dela, mas os galhos não me permitiam uma boa visão.

Fui adiante, me embrenhando no mato que margeia o banhado. Vi mais três capivaras, uma delas era enorme.

Elas ficam dando o latido rouco, mas ficam paradas; se tu vais para a direção delas, elas pulam n’água.

Por isto, resolvi contorná-las para poder me aproximar sem assustá-las. Larguei a mochila e voltei rastejando, contra o vento, por baixo dos galhos até há uns 5 m do macho (é muito maior que as fêmeas, tem o pelo marrom alaranjado e brilhoso; as fêmeas têm o pelo marrom escuro).

Bati três fotos dele, cada vez me aproximando mais.

Ele deu um último latido de advertência e todos saltaram para o banhado.

Segui, margeando o banhado, já fora do mato em meio a lindos campos gramados.

Nunca vi tanta capivara, se fosse caçador seria mais do que covardia caçá-las.

Segui caminhando pelos campos até 10:30 h e mais tarde achei o casco de uma tartaruga intacto; coloquei-o num galho na beira da Lagoa e bati uma foto dele em primeiro plano com o outro lado da Lagoa, de onde vim, ao fundo.

Fora do abrigo do mato foi que percebi a força do vento NE; teria sido a maior mancada seguir.

Na volta, percebi que perdera a haste que fixa o tripé...

Enlouqueci, lá vem bronca:

 

-          INCOMPETENTE!  Seu merda, burro!

-          Quem mandou levar o trapézio fixado na máquina fotográfica se ele estava na bolsa?

-          Lembras-te lá em Urubici, duas semanas antes desta viagem, quando tu inventaste de escalar um paredão pelo meio do mato, fizestes a mesma coisa, levou o outro tripé fixado na máquina até rolar no paredão e perder o pé do tripé que era o melhor que eu tinha. Fui obrigado a trazer este, mais pesado e agora tu repete a cagada?

-          VAI PROCURAR!

 

Baixei a cabeça e saí, que nem um cachorro perdigueiro, tentando refazer o percurso que fizera antes.

Será que fui por aqui ou por ali?

Na dúvida, fazia os dois caminhos, às vezes, três.

Quase duas horas e nada! Dei-me por vencido.

 

-          Droga! E agora? Sem tripé, como vai ser?

-          Agora te acalma, faz teu almoço e pensa numa solução!

 

Comi o pedaço de queijo, salamito e chocolate. A meu lado havia um galho seco; peguei a faca e fui torneando o galho e coloquei-o onde era o buraco da haste, lá no fundo havia uma parte rosqueada que fazia a máquina fotográfica ficar firme na posição.

Comecei a pressionar o graveto e a girá-lo ao mesmo tempo para ver se conseguia fazer rosca nele.

 

-          Voilá, não é que deu certo?

 

Não sei se vai agüentar o peso da máquina fotográfica, mas que apertou, apertou!

Voltei pelo campo e vi um casal de cardeais (há quanto tempo...), um pássaro preto com a crista vermelha, lindíssimo; uma lebre e outros habitantes do banhado.

Agora, já estou de volta ao acampamento e sabiás e tico-ticos estão esgravatando ao lado da barraca e as cocotas parecem estar conversando.

O vento sopra na copa das árvores e espero que amanhã diminua ou mude de direção. O negócio é ter paciência.

Consertei o cabo da panela com durepoxi, (que já estava me irritando), além de pendurar a roupa de neoprene, saco de dormir e roupas ao sol.

Aqui é legal, mas só hoje, paciência tem limites!

-          Bueno, como hoje é Sábado e fiz cagada, nada melhor do que me colocar de castigo!

-          É isso aí, seu porco! Já pro banho!

 

Foi um suplício, mas aproveitei a reversa do vento e, pelado, me fui Lagoa adentro para banho incompleto (só cabelo, sovaco, pernas e braços)... E já foi muito!

Sabe que ficou melhor?

Deixei as roupas ao sol, penduradas na cerca e fui fazer outra excursão, agora para o norte do acampamento.

Encontrei uma família de capivaras e, com movimentos bem lentos, consegui um bom ângulo para fotografá-las. Eu nunca vi tanta capivara!

 Lugares lindíssimos, figueiras debruçadas sobre belos gramados, barbas-de-pau, além de centenas de pássaros esgravatando nos entulhos de paus e boiadeiras que a enchente deixou.

Depois cheguei num canal e fui pela parte alta, para o interior do banhado.

Ao longo do caminho, havia mais de dez capivaras deitadas e tomando sol, emitiam aquele latido rouco como um aviso.

Tirei uma foto do local e percebi que no barranco do outro lado deste canal havia uma capivara morta!

Agora são 17:24 h, estou escrevendo sentado na prancha, recostado na vela e no bagageiro.

Uma narceja me sobrevoa a todo instante, além dos pássaros ao redor.

Aqui na frente à Lagoa está espelhada, com fraco vento SW; espero que amanheça assim.

Foi um dia especial e agora me preparo para assistir o show de final de dia.

Acho que vou deixar a vela grande da prancha instalada e guardar a pequena.

Quase pisei numa cobra preta, enrodilhada, que estava ao sol; como ela não se mexeu, não enchi o saco dela, além do que acho que não era venenosa.

São 19 h e agora escrevo à luz de vela.

Fiquei na rua até escurecer bem e ver a pobre marreca piadeiras desesperadas com os tiros, sem saber onde pousar; lá do outro lado da Lagoa foi um tiroteio só.

A exemplo de ontem, os morcegos chegam ao final do dia à cata de insetos.

Há um vento na copa das árvores, mas mesmo que seja NE, espero que não seja tão forte.

Hoje, a Lagoa virou mar e fiz bem em não partir.

A imagem das capivaras foi um show. Agora de noite, elas saem do banhado e vão para a Lagoa.

Enquanto eu observava o crepúsculo, duas delas passaram a nado, só de cabeça de fora, bem na minha frente.

Agora uma coruja fica fazendo UHÚ, UHÚ bem ao lado da barraca, perturbando meu sossego, vou lá fora dar um boléu nela.

As capivaras entram a toda na Lagoa, fazendo um rebuliço danado.

Vou lá fora tentar encontrar a colher.

 

São 20:45 h, falei com o Paulo e com a “Bãe” e acabei de retornar de uma excursão noturna.

Fui com a lanterna grande, na esperança de imobilizar uma capivara com o facho e me aproximar para tirar uma foto noturna.

Procurei a coruja ou pássaros dormindo, mas não vi nada.

Cuidei o chão para não pisar em cobras venenosas (que têm hábitos noturnos).

O único bicho que achei foi eu mesmo, com direito a foto e tudo.

A noite está lindíssimo, pouco vento, lua crescente e, acima de tudo, muito silenciosa!

A sopa está borbulhando (vou deixar ferver bastante, pois a água que peguei estava no meio das bostas de vaca).

Gozado, o termômetro marca 10 graus, mas não parece estar frio...

O vento mudou de novo, aquela árvore está com o tronco submerso de novo.

 

 

6/08/2000  Domingo                  Segunda semana

 

EXTRA! São 2:28 h, acordei com passos no monte de entulhos que a enchente deixou (boiadeiras, galhos secos, juncos, etc...).

E quem diz que acho a faca? E a lanterna? Cadê a porra do zíper da barraca?

Os passos vêm na minha direção, vou ser atacado e não acho nada!

 

-          Merda!

 

Enfim acho tudo, saio da barraca com a faca, em riste, na mão direita e a lanterna na esquerda. Dirijo o potente facho da lanterna pelos arredores.

NADA!

Será bruxaria ou alguma alma penada?

Nisto, vejo algo brilhando no escuro, próximo à cerca ao lado.

Troco minha faca pela máquina fotográfica e vou, pé por pé na direção do brilho.

Consigo ultrapassar a cerca e vou à direção do bicho que estava pastando (é isso mesmo, pastando...) a grama da beira da Lagoa.

Noite linda, sem vento e super estrelada, a lua crescente já se foi.

Ofuscada pelo facho da lanterna, cheguei a dois metros, isso mesmo, dois míseros metros e ali fiquei, paralisado de fascinação ao observar a CAPIVARA pastando.

Bati três fotos e me contive a só ficar observando, ouvindo até o som da grama sendo arrancada, tal o silêncio; eu não sabia que capivara pastava...

Cara, outra experiência para o resto de meus dias.

Que loucura! Que viagem!

Já posso encerrar por aqui que foi inesquecível...

 

São 7 h, tive um sonho triste, estava me despedindo de uma velhinha que, por algum motivo, ia se mudar.

Abracei-me forte nela, pois sabia que só iria vê-la na outra vida.

Emocionei-me demais e acordei com os olhos úmidos.

Será que a velha senhora não é este lugar que estou deixando?

Acho que estou partindo de um lugar mágico e quero deixá-lo como está para que outros o vejam assim.

Gozado, o cara fica ultra-sensível nestas viagens e até ouvir os tiros dos caçadores me entristece muito; é como se eu tivesse passado para o outro lado, o dos animas apavorados!

 

-          IH! Deu!

-          Chega de xurumelas, seu merda!

-          Vai cagar que passa! 

-          É isso aí, tenho que voltar a ser o taura gaúcho macho e gremista que é isto que eu sou.

 

... E, como descendente dos bravos guerreiros farrapos, estou contente por voltar à luta; que um guerreiro gosta da peleia é a mais pura verdade!

Bati um recorde! Saí às 9 h, dá para acreditar?

Vento NE (contra) bem fraco, por isso fui no caiaque, desviando das árvores submersas e passando pelo canal das capivaras.

Para me abrigar do vento contra, fui pelo meio da mata inundada; adeus terra firme, agora só há florestas de árvores secas inundadas e impenetráveis. São 25 km assim até Sta. Isabel; é chegar lá ou dormir sobre a prancha, encostado em algum capinzal.

Como despedida do local, vi mais um bando de capivaras.

Minha nova distração era observar umas curiosas aranhas que ficam na superfície d’água e soltam sua teia ao vento. A teia segue no embalo do vento e as aranhas seguem “esquiando” sobre a superfície da água, arrastadas por sua própria teia.

Eu, a remo, perdi em velocidade para uma destas aranhas.

Outro fato curioso ocorria quando o vento parava, daí as aranhas ficavam esperando quando os barcos chegassem mais perto e vinham, meio que correndo, meio que pulando na minha direção; os barcos já estavam lotados destes inusitados caroneiros.

Tartarugas, que repousavam ao sol sobre troncos, deslizavam para a água, bem rápidas assim que eu me aproximava!

Cheguei muito perto de um casal de tarrãs que estava se alimentando sobre uma árvore esquisita.

Depois de três horas remando, como não encontrasse terra firme, resolvi fazer a operação MIX. Puxei a prancha para a lateral do caiaque, passei para cima dela, fiquei em pé e... YES; um pipi gostoso e aliviante. Que função!

Depois comi o pedaço de queijo e salamito, um gole de cachaça e me fui.

O vento parou de vez e a Lagoa virou um espelho. Então dá-lhe remo, pois o cara tem que aproveitar para avançar o máximo possível enquanto está bom, caso o vento retorne contra, é noite certa sobre a prancha, nem pensar!

A paisagem não muda, as horas passam e começo a ficar cansado; já são 15 h e nada!

Vejo que as margens estão convergindo, mas do canal de São Gonçalo nem sinal.

Um enorme barco de pescadores vem na minha direção; os caras oferecem carona, mas recuso e agradeço, pois tenho que ir por mim. Eles indicam para que lado fica o canal.

Às 16 h (estou remando direto desde as 9 h sem ver terra) chego no final da Lagoa Mirim, onde principia o canal de São Gonçalo. Há uma fortíssima correnteza no sentido Lagoa Mirim-canal e ali resolvo encostar para esticar as pernas em um belo local gramado. Bati uma foto e comemoro a alegria de ter conseguido chegar até aqui.

-          ADEUS LAGOA MIRIM, NUNCA VOU TE ESQUECER !

 

 

CANAL DE SÃO GONÇALO

Não foi fácil! Como é difícil para conquistar as coisas, mas quando a gente consegue, acha que pode tudo!

Os problemas ficaram para trás, vou comendo queijo e chocolate e trato de seguir logo, pois quero chegar em Sta. Isabel, às margens do canal, e ali carregar a bateria do celular, comprar comida e bujões de gás para meu pequeno fogareiro.

Às 17 h chego no povoado, ainda impressionado com a forte correnteza a meu favor; que delícia andar assim!

Meus amigos pescadores que me ajudaram da outra vez (Rogério e Saul), já não moram mais aqui, moram em Jaguarão.

A água quase invadiu a cidade. Atraco próximo à rua central, uma turma bebendo cerveja, outra jogando o jogo do osso (é com um osso mesmo) defronte a um boteco.

Vou caminhando com a roupa de neoprene e cumprimentando o pessoal que deve estar se perguntando de onde saiu aquela ”coisa” pilchada de borracha, barbuda e cabeluda.

Pergunto ao pessoal onde posso encontrar mantimentos e gás, mas os botecos do povoado não passam de pequenas vendas. Há uma praça central que é um campo de futebol, pequenas casas bem humildes com as portas frontais terminando em plena calçada. Fui em três botecos, mas sequer sopa ou miojo havia, o máximo que encontrei foi vela, mas eu só tinha R$ 50,00...

Como percebi, não havia casa próximo à beira onde talvez pudesse deixar os barcos para passar a noite. Resolvi deixar para lá. Sem ter onde dormir resolvi sair rápido para encontrar um local para acampar antes que se fizesse noite; dessa maneira desisti de carregar a bateria do celular.

Faltavam 10 min para o por do sol, então tinha de agir rápido.

Peguei os barcos e saí na forte correnteza, deixando o povoado para trás, onde havia uma balsa que ligava uma estrada através do canal. Fui adiante até encontrar um barranco onde poderia passar a noite; tive que fazer uma pequena volta contra a forte correnteza, passar por um pequeno canal que formava um remanso ao lado das boiadeiras.

Armei a barraca numa parte bem alta, amarrei os barcos num tronco mais acima, porque a correnteza é forte demais.

Agora são 19:33 h, estou todo dolorido e cansado! Foram praticamente oito horas direto dentro do caiaque e muito pouco descanso.

Pretendo partir bem cedo amanhã para aproveitar esta correnteza a favor e ir até Pelotas em apenas dois dias (cerca de 60 Km).

Agora há uma barulheira de sapos e algazarra de saracuras no banhado aqui atrás. A lua está bem intensa e o miojo está pronto, apenas espero que esfrie.

Cansei brody!

 

7/08/2000 Segunda-feira

Às 6 h os pescadores já estavam partindo para suas redes e eu já estou com o mingau (aguado) no fogo, são 6:40 h e está frio.

A puxada de ontem me cansou demais, mas o corpo véio vai ter que se acostumar; eu já tinha entregado os pontos de não ir até Porto Alegre, mas agora... Acho que ainda dá. Tenho mais quinze dias, quem sabe?

Não vou mais parar para carregar bateria nenhuma; ela que agüente o que der, se eu estiver perto de algum ponto com luz quando acampar vou carregar, isto se não me atrasar!

É isto aí, vamos nessa que não está morto quem peleia!

Parti às 8:40 h, saindo do remanso direto para a correnteza.

Que beleza! Sem remar já ia rápido, remando... Era covardia!

Quase sem vento, mas com frio, fui remando muito forte. Não deu outra!

O braço esquerdo (o reimplantado) começou a ratear e, de repente, me deu algo semelhante a um violento choque que me fez largar o remo e dar um pulo no barco. Tem algum nervo neste braço que ainda não está 100%.

Manerei e fui mais devagar, apreciando o lindo panorama.

Garças, socós, saracuras, frangos d’água, tarrãs, joões-grandes, garças mouras e outros ficavam empoleirados nas florestas nativas (invadidas e debruçadas sobre as águas), a espera de seu peixe.

Fui controlando os barcos para ir deslizando bem rente à mata nativa; que loucura: o silêncio, a mata passando e eu ao sabor da correnteza...

Que astral!

Matas nativas, árvores secas e coloridas, as barbas-de-pau penduradas nos galhos acariciavam-nos enquanto passávamos, o seu reflexo nas águas espelhadas tornava o irreal infinito...

Não há limite entre céu e água. É um privilégio estar aqui!

Após passar por uma ilha, vejo umas estranhas árvores em forma de cones que saem das águas e se sobressaem a uns dois metros de altura ou menos. Paro, no raso, com água no tornozelo e saco uma foto com o tripé fixado no campo submerso, valeu!

Ali perto havia umas casas pequenas e abandonadas (acho que são deixadas ali para serem utilizadas pelos pescadores quando estes necessitam). Sigo adiante, já aproveitando para almoçar ao sabor da correnteza, são 3:30 h sem descanso, queijo, salamito e o chocolate que vou comendo devagar para durar bastante; não tem pressa, a correnteza me leva até bem rápido enquanto descanso.

As horas passam, as florestas ficam para trás e o capim Santa Fé forma touceiras altas que se vão até não sei aonde. Passo por uma ilha, outra, acho que a próxima é a Ilha do Pavão.

Vez por outra cruza um barco de pescadores. Vejo um João Grande com um lagarto enorme no bico, depois é um tarrã que me sobrevoÿÿa não mais que cinco metros.

Meus ombros doem, o joelho também; é o segundo dia que viajo de boné do Grêmio (sem a touca de neoprene) e sem a parte de cima da roupa de neoprene. Mais do que 10 graus e com sol, começa a ficar ruim para mim.

A capa do caiaque está enrolada, então o sol bate direto nas minhas pernas e a fumaça da evaporação começa a subir aos montes. A todo instante tenho que molhar as pernas, pois esquentou demais. E dá-lhe fumaça!

Aquelas aranhas são um caso a parte com seus fios de teias que as leva ao sabor dos ventos.

Milhares de mosquitos começam a vir no meu rosto e fico bravo, paro de remar a toda hora para matá-los, que inferno!

Às 16 h não guento mais ficar no caiaque com as pernas dobradas, encosto numa parte rasa, no meio dos juncos e, com água pelos tornozelos, fico em pé para esticar as pernas; são só oito horas dentro do caiaque...

Estou morto, mas resolvo seguir; passa já das 17 h e não encontro local seco para dormir. Está tudo alagado!

O sol esta quase no horizonte e a coisa começa a ficar preocupante.

Achei um barranco, mas não gostei dali, prefiro andar no escuro!

Após uma curva vejo a cidade de Pelotas, a não mais do que 10 km... Então andei uns 50 km hoje. Fantástico!

Saio do curso do canal e adentro num banhado, nada de terra firme! Olho mais ao longe, para o interior do banhado e vejo duas capivaras, elas somem entre os juncos, mas quase tive certeza de que onde elas estavam era seco.

Vou, sem ter certeza, na direção de onde elas estavam, mas deu certo. É um pequeno elevado que permite colocar a barraca atravessada ao lado dos barcos.

É lindo aqui, acho que vai ser minha última noite no banhado! Acho que, em 2 h ultrapasso Pelotas e entro na Lagoa dos Patos.

A Lagoa Mirim e o canal de S. Gonçalo serão páginas viradas, mas de momentos inesquecíveis.

Agora, por exemplo, são 20 h e há um alarido incrível de toda sorte de aves e animais. Tem um bicho que parece ser um bezerro, outro grita, escuto as capivaras se atirando n’água, além das marrecas e frangos d’água. Como poderei esquecer tudo isto?

Só posso agradecer a todos aqueles que me ajudaram a poder ter vivido isto de novo, OBRIGADO!

 

 

8/08/2000  terça-feira

 

EXTRA! São 5:15 h, sou despertado por um barulhinho quase imperceptível de grama arrancada.

Lentamente tiro a luva, pego a lanterna, abro o zíper da barraca e, já com a máquina fotográfica, flagro uma capivara ao lado da barraca. Bati a foto enquanto ela foi se afastando devagar; nem foi para a água.

A noite está linda, os bichos começam a despertar, ouço também o barulho da cidade grande; que contraste!

Peguei a manha para ir acompanhando a correnteza onde ela é mais forte; nas curvas nunca ir pela tangente, o melhor é fazer a curva bem aberta, pois por lá a correnteza é mais forte. Às vezes, o mais longo é o caminho mais rápido.

Ontem, ao passar ao lado de uma ilhota, num certo ponto, a água formava uma vigorosa turbulência, pareciam ser ondas com sentido contrário à correnteza, mas não passava de uma corredeira, com direito a redemoinhos e tudo mais.

Hoje, vou passar por uma barragem; tenho que ter muito cuidado ali, pois a correnteza é muito forte e se o caiaque entrar por uma eclusa e a prancha por outra, os dois vão ficar presos e eu vou me ver em maus lençóis. Vou diminuir o cabo que une as embarcações para diminuir os riscos de isto acontecer. Também não posso deixar curto demais, pois um bate no outro e pode furar, como já aconteceu no flutuador do caiaque.

Parti às 9:10 h e na saída uma capivara preguiçosa nem foi para a água quando cruzei com ela ao passar pelo canalete do banhado que ligava com o canal de S. Gonçalo; bati uma foto dela e me fui.

No canal, fui cuidando a correnteza para seguir por onde ela fosse mais forte.

Cruzei por alguns barcos de pescadores e, depois de uma hora, cheguei na barragem que serve para impedir que a água salgada da Lagoa dos Patos invada a Lagoa Mirim, que tem muitas culturas de arroz...Normalmente a água corre da Mirim para a dos Patos.

Preparei-me para enfrentar a corredeira que se formava após as eclusas e para entrar com velocidade, tracionando o reboque para não correr o risco de um barco entrar por uma eclusa e o reboque por outra.

Fui em frente, já com a máquina fotográfica em punho para registrar a passagem. Foi muito legal e perigoso, pois enquanto eu cruzava a barragem, ia tirando fotos ao mesmo tempo em que os barcos rodopiavam nos redemoinhos e nas ondas da forte correnteza após a barragem.

Mais uma hora de remo e cheguei na ponte da BR 116, na verdade eram duas; uma era desativada, em forma de um arco gigantesco e ao lado estava a nova, quase uma réplica da outra.

Fiz questão de passar bem sob o vão central das duas.

 

-          Ué! Meu barco não é importante?

-          Claro que é!

-          Então, respeito!

 

Passei sob a ponte do trem, que tem o vão central elevatório, e ali bati mais algumas fotos. Depois resolvi seguir mais próximo ao cais, já na cidade. Ao longe, avistei algo bem familiar:

 

-          Um clube de remo, todo de madeira, vermelho e branco, com um lindo gramado até a rampa do cais, show!

 

Voltei aos velhos tempos de remador lá em Porto Alegre.

Por nostalgia e também por necessidade, resolvi encostar ali; era ideal para deixar os barcos enquanto eu fosse comprar mantimentos e gás, além do que poderia deixar as baterias do celular carregando neste meio tempo.

Falei com o Sr. Ademar, treinador de remo do Clube Náutico Gaúcho, que me deixou colocar os barcos por aqui.

Assim mato três problemas: deixo a bateria do celular carregando, compro massa e sopa para chegar em Porto Alegre e vou num restaurante comer algo diferente, são quinze dias comendo salamito e queijo, argh...

As ruas de Pelotas lembram as de Rio grande, a 60 km daqui. Casas antigas, coladas umas às outras e a porta de entrada direto na calçada; algumas apresentam uma discreta sacada, não deixa de ser bonito pelo inusitado!

São 11:54 h, estou no restaurante Cais do Porto. Já almocei, tomo um café gostoso, mas não devo demorar a voltar, pois não lembro onde deixei a máquina fotográfica. Os barcos ficaram na rua e ali é fácil de roubarem, pois a sede do clube é cercada de favelas.

Mas, enfim, foi boa esta parada técnica, pois cheguei bem na hora do almoço e assim não perdi muito tempo.

 

-          Gozado! O pessoal da city todo de grossas roupas de lã, capotes, etc. e eu circulando pelas ruas de bermuda, camisa de manga curta e chinelo de dedo...

 

-          CRUZ! Vi-me no espelho!

-          QUE HORROR!

-          Azar, não estou num concurso de beleza e não conheço ninguém aqui. É melhor eu voltar logo para o banhado, lá não tem ninguém mais bonito do que eu.

 

Almocei arroz, feijão, ovos fritos e um bife a milaneza (esborrachando gordura). Droga! Não tinha batata frita que eu tanto queria. Bueno, bem ou mal, matei a vontade de comer uma comida normal, agora vamos voltar à luta.

Achei miojo e sopa, gás não encontrei, tudo bem, em último caso não tem problema de comer massa crua, isto não me importa!

Só para registro: cheguei em Pelotas às 11:40 h, pretendo partir do clube às 14 h; até lá a bateria do celular estará carregada.

Se eu dissesse que no primeiro dia, quando falei com o Paulo no celular, estava pronto para desistir... Mas ele já estava em viagem, perto de Pelotas.

Bateu o desespero, frio dos diabos, pés e mãos congelados, entregue.

Agora estou aqui, mais vivo do que nunca, enfrentei grandes perigos, frio e desespero; estou disposto não só a ir até São Lourenço do Sul, eu quero mais... Quero ir até Porto Alegre e vou lutar com todas minhas forças para realizar isto. E nada de dar um dos barcos para o Paulo em S. Lourenço, como pensei. Eu saí com os dois, então tenho que chegar com os dois.

 

-          É isso ai, brody!

-          Não podemos entregar para os homens, amigo e companheiro, pois não está morto quem peleia!

-          É isso aí, a Lagoa não “matou” quando podia e agora estou mais vivo do que nunca para mais esta batalha.

-          ENTÃO VAMOS À LUTA, TCHÊ!

 

 Saí do restaurante, comprei o miojo e voltei para o clube; adivinha? Havia deixado a máquina fotográfica no caiaque, na rua... Bueno, como não roubaram, então fica assim.

O Sr. Ademar “Madalena” (diz que o apelido foi dado por causa de uma antiga namorada) está no clube desde os oito anos; ele cuida de tudo e treina a rapaziada.

Os barcos estão bem conservados e o clube tem o básico. Ele conhecia bem meu querido treinador (falecido) Sr. Gregório Pineda Lopez, do Vasco da Gama, lá de Porto Alegre.

Por falar nele, muito lembrei de seus conselhos para melhorar a remada e não deixar a pá do remo enterrar demais; tudo tem sua técnica.

Alguns garotos (remadores) chegaram bem na hora em que eu estava saindo; eles me ajudaram a recolocar os barcos nágua e, depois das despedidas, parti (às 13:40 h). O vento parecia estar a favor, então icei a vela do caiaque, mas ele durou pouco. Recolhi a vela e fui remando paralelo ao cais; passei o Clube de Regatas Pelotense (outra sede bonita), uma enorme construção da outrora poderosa ANGLO, o Iate Clube e belíssimas casas da classe dominante.

Tudo ia bem: correnteza a favor, um fraco vento contra; aí falei:

 

-          Vai de prancha!

 

Parei num local gramado, troco o cabo de reboque, passo para a prancha, armo a vela grande, ajeito as coisas no caiaque e o que acontece? O vento passa de fraco a forte e de rajadas, contra ainda por cima. Vou assim mesmo, na prancha, fazendo uma força incrível, mas sem grande avanço em linha com o canal, tenho que seguir de través até a outra margem onde escorrego e... Banho!

O vento ficou fortíssimo, não vale a pena orçar com o caiaque no reboque, o avanço é zero. Melhor seguir no caiaque pela margem sul onde estou um pouco mais abrigado do vento.

Desmonto a vela da prancha, ajeito o caiaque e volto ao remo. Esse f. d. p. do vento ficou mais forte ainda e contra! Simplesmente está tão forte que reduziu a correnteza favorável a zero... É irritante!

Fui seguindo quase entre os juncos para me abrigar do corno do vento contra e a prancha, que estava no reboque, engatou num galho submerso.

Não houve manobra que soltasse a desgraçada que quase virou. Fiquei possesso da fisionomia, porque naquela correnteza e com vento contra eu não conseguia desengatá-la, mierda!

Tive que mergulhar naquela água congelada e quase mordo o corno do galho que trancou a prancha por baixo, que raiva!

Depois me concentrei apenas em remar até avistar o final do canal. Esse atraso todo me fez mudar os planos de dormir na praia do Laranjal que estaria de frente para esse vento sul de rajadas que estava entrando agora; melhor era dormir no banhado, no canal mesmo, e seguir amanhã de manhã.

Já no final da tarde, após falar com um pescador acampado (João) ali no banhado, acampei um pouco adiante dali, numa parte mais alta entre os juncos (17:40 h).

O vento sul de rajadas diminuiu no final da tarde e agora (20:10 h) está calmo. O por de sol foi um show!

Coloquei junco seco por baixo da barraca para isolar do frio, pois a roupa de neoprene está molhada e não vou poder usá-la por baixo do saco de dormir hoje. Armei a barraca a menos de um metro da margem do canal, puxei os barcos ao lado. Deixei a barraca com a frente aberta, só com o mosquiteiro fechado, assim vejo a noite estrelada e os meus barcos na frente da barraca e ao lado do canal, tudo iluminado pela luz da lua.

Escutei rádio pela primeira vez e foi legal ouvir alguém falando, mesmo que no rádio.

O celular não dá sinal, apesar de ter créditos, será que acabaram? Eu nunca ligo, só recebo as ligações como é que pode? Tão roubando...

Assim mesmo, vou deixá-lo ligado até às 20:30h, não mais até às 22 h, pois fica gastando bateria. Agora vou fazer o miojo e amanhã...LAGOA DOS PATOS!

 

 

9/08/2000      Quarta-feira

O PRIMEIRO TEMPORAL

 São 00:58 h, começou a chover com vento forte, fui lá na rua e prendi um pouco melhor a lona plástica que cobre a barraca, mas acho que, se o vento aumentar ainda mais, terei sérios problemas; acho que é a primeira chuva da viagem.

 

-          Pô! Tinha que ser logo um temporal?

 

Estou meio mocoseado pelos juncos e duas pequenas árvores secas, mas se o vento me pegar de jeito, acho que voa tudo longe.

Neste exato instante (1:18 h) estou sentado na barraca, apoiando-a do lado em que o vendaval sopra mais forte. A lona plástica corcoveia como uma louca, mas, por enquanto, ainda está ali. Se voar, cai no canal.

Clarões de relâmpagos, não creio que vá ser uma boa noite de sono.

 

-          Elementar, meu caro Watson!

 

O tempo talvez faça a temperatura cair bastante, só espero que a chuva passe; é vento sul, às vezes, o vento pára de repente, fica uma calmaria enervante e um silêncio mortal. Prenunciando coisa ruim... Quando retorna, surge endemoniado, mais forte ainda...

Mais notícias se piorar. Durmam bem, pois vou ficar sentado, segurando a barraca. Espero que seco!

 

O PLANO  “ M  “

ATENÇÃO:

São 2:09 h, a lona plástica voou, não posso sair de onde estou, se não a barraca também voa, o vento ensurdecedor é acompanhado de violenta chuva que está me encharcando sem dó nem piedade, assim como tudo aqui dentro:

 

-          Kowalsky!

-          Sim almirante Nelson?

-          Controle de avarias!

-          Lona plástica voou; um marujo está todo molhado e o vento não pára, senhor!

-          Temperatura?

-          Dois graus centígrados e baixando, senhor!

-          Diga para ele manter o posto.

-          Afirmativo! E a lona, senhor?

-          Que se f... , o mais importante é manter a embarcação. Todos aos seus postos de emergência!

-          Preparar o plano M!

-          Plano M, senhor?

-          Afirmativo!

-          Ah! Kowalsky prepare o esquadrão resgate, se der uma melhorada, mande uma equipe de busca atrás da lona plástica.

 

É isso aí, estou no plano M (molhado ou merda); o que sobrou da barraca, estou escorando com o corpo. Coloquei a roupa de neoprene e o colete salva-vidas nas costas, entre eu e a barraca, para proteger o corpo da água gelada que escorre pela lona e se acumula aqui dentro.

A barraca está “colada” em mim.

Estou escrevendo iluminado pela luz da bóia luminosa; quando estiverem sob temporal numa barraca molhada, entre um e 3 h da noite, temperatura de dois graus... Escrevam, como estou fazendo.  Ajuda a passar a tensão e terão a oportunidade de sentir e curtir novas sensações...

Acho que a lona foi para o canal e levou alguns ferros da barraca consigo, se eu sair do meu posto, voa o resto!

Quando estabilizou a tempestade, o fundo da barraca estava cheio de água gelada. Deitei na água gelada de lado, com a cabeça sobre o salva-vidas, assim a água escoou da parte mais alta do corpo e fiquei seco na metade superior.

E o lado positivo de tudo isto?

Sei lá!

 

É isso aí, são 7 h, a chuva parou e sopra um vento forte, acho que perdi alguns ferros da barraca que fixavam a lona.

O brabo será colocar a roupa de neoprene molhada. O interior da barraca sequei com uma esponja.

O saco de dormir e algumas coisas estão ensopados, mas que remédio.

Apesar da tempestade, acabei dormindo e cheguei a sonhar que tinha desistido e que estava na casa do Aldo, lá em Floripa, numa cama quentinha, mas foi pura ilusão.

Acordei, meio decepcionado por estar nesta mixórdia aqui na barraca, todo ensopado, com temperatura de dois graus mais o vento...

Agora vou ter que encarar, quem mandou cantar de galo ontem?

O Paulo tem que ligar entre 20 e 20:30 h, não posso deixar o celular ligado, além disso, senão a bateria vai pro saco! Acho que os créditos do celular acabaram, que droga!

É isso aí, vou tentar organizar as coisas (molhadas mesmo) e partir antes que comece a chover. Faz três graus agora e tudo está gelado.

 

A DOR

Comecei a arrumar as coisas e surgiu um pescador (Senhor Abigair) numa pequena ratoneira (um caíque bem pequeno, quase na linha d’água) que parou para conversar.

 Enquanto falava com ele ali na rua, fui arrumando tudo e troquei de roupa ali no vento gelado. Tirei a úmida que estava meio quente e coloquei a ensopada, de viagem, que ficara no fundo da barraca. Apenas a torci e coloquei no corpo.

O Senhor Abigair foi embora, para o outro lado do canal, onde há várias casas semelhantes a pequenos caixotes e que pertencem aos pobres pescadores que vivem de pescar jundiás com espinhel aqui no canal.                                                                    

Cara! Começou a me dar uma pontada na altura do baço, no lado esquerdo; do mesmo lado onde eu fiquei deitado na água gelada.

Tentei vomitar, ir ao banheiro, mas a dor não passava. Foi aumentando e doendo cada vez mais, não tinha limiar.

 

-          Preciso ir a um médico! Pensei.

 

Acho que não tenho força sequer para vencer a correnteza e chegar do outro lado do canal, estou me dobrando de dor e só consigo ficar segurando, com força, o abdome com o braço esquerdo:

 

-          DEU! ACABOU A VIAGEM!

-           Não tenho as mínimas condições de prosseguir a viagem.

-          Cara! Que dor, um inferno!

 

O pescador com quem falei ontem (João), apareceu um pouco adiante, de canoa, entre os juncos. Ia cruzar o canal.

Tive que fazer um esforço para erguer o braço direito e gritar para chamá-lo; até para falar mais alto me doía.

Pedi que ele viesse até onde eu estava e expliquei que precisava de um médico e se ele não poderia me ajudar a atravessar. Disseram que sim, tentei arrastar meus pesados barcos com dor e tudo, mas era um esforço em vão. João mandou seu filho descer e me ajudar.

Assim fui, meio que a reboque, meio que remando, atravessando a forte correnteza do canal em direção da outra margem; sem eles eu seria jogado direto para o largo, na Lagoa dos Patos.

 

Foi triste meus amigos, nunca pensei ficar neste estado, mas a dor chegou no ponto do insuportável. A única vez que me aconteceu algo de dor durante uma viagem foi quando eu caí de moto em pleno rípio na Patagônia e fiquei preso sob a maledeta, detonei o braço esquerdo, mas pude continuar. Na verdade houve outra ocasião, na viagem de bicicleta, quando estava cruzando pelo rio Amazonas e me deu erisipela na perna esquerda e tive que tomar 20 injeções de penicilina no traseiro, já em Manaus. Foi muito cruel, odeio injeção!

 

Chegamos do outro lado, vento forte e congelante, fui descansar no barraco de pesca do João.

O barraco não deveria ter mais do que 3 X 4 metros, cheio de tralhas de pesca, uma cama perdida ali no meio e o principal: ali o vento não existia!

Coloquei as roupas mais ou menos secas e comecei a melhorar. Ainda sinto a dor, mas já não é tão forte. Falaram em injeção, por isto nem vou mais no médico, vou ficar quieto por aqui que estou melhorando.

Não tem veículos aqui, é uma pobreza só, mas o pessoal é gente boa demais, até carona numa carroça me ofereceram, mas preferi ficar por aqui.

Já melhorei, mas ainda não estou legal. Fiquei conversando com os pescadores dali, encostados numa casinha, abrigados do vento e tomando um pouco de sol.

Aqui é uma vila de pescadores e por enquanto vou escrevendo dentro da casa do João enquanto eles fazem outras coisas; os barcos ficaram ali na beira, aos cuidados de Abigair.

Vou almoçar aqui com eles e depois decido o que faço, o vento sul é forte, bom para prosseguir, mas tenho que ver se não vou piorar.

Eu nunca tive dor parecida, é muito violenta, se continuar eu paro! São 11:05 h!

Dei uma grana para ajudar nas compras que o João mandou seu filho buscar lá na praia do Laranjal.

Aceitei o convite de João e voltamos, de caíque, para o outro lado do canal onde era o acampamento deles, (a correnteza estava muito forte, não foi fácil, mas o João é forte e deu um jeito) bem próximo de onde eu passei a noite, mas milhões de vezes mais abrigado.

Ele foi revisar os espinheis. Ele tem uma jaula (viveiro) que deixa n’água, onde guarda, vivos, os enormes jundiás que pesca mais durante a noite. Vende a R$ 0,50 o kg.

Almoçamos jundiá frito (que delícia), arroz com cebola e pimentão, carne de porco e tomate. Divino!

De tarde, eles voltaram para o outro lado para pegar minhocão (isca para pescar jundiás) e para guardar as coisas de valor dos meus barcos no seu barraco; os barcos ficaram na margem, mas segundo eles “ninguém mexe”. O pessoal é humilde, mas é uma comunidade onde uns cuidam dos outros e se ajudam mutuamente; essa interação entre vizinhos não é usual nas grandes cidades, mas aqui é normal.

Antes de partir, eles fizeram um delicioso café acompanhado de pão.

Fiquei aqui no acampamento, acompanhado pelo cão deles, Dick, um filhote de labrador com perdigueiro. Ele é grande e preto e tem só três meses. Brinquei muito com ele, mas resolvi fazer algo para matar o tempo e ser útil.

Sai pelos pequenos campos gramados a cata de lenha nos entulhos que a enchente deixou. Carreguei umas boas braças de lenha enquanto atirava uns paus para o Dick buscar. Que gostoso ficar ali no sol, abrigado do vento gelado e na segurança da terra firme!

 

A CRUZEIRA

Alertado por João, cuidei muito, pois o local é infestado de cobras, principalmente a temível cruzeira, da família das jararacas e que tem como principal característica o desenho do “cálice da morte” na cabeça, além da notória agressividade. Ele falou, também, que há uma cobra enorme, chamada de “parelheira” muito agressiva que “corre na ponta da cola e vai chicoteando” o cara e que estes golpes cortam a vítima como navalha; ela só descansa quando consegue morder ou picar, mas esta não é venenosa.

Acho que conheço esta cobra pelo nome de “campeira” que, certa vez, perseguiu meus primos numa taipa de açude lá no sitio de nossa avó; a cobra tinha 1,80 m e só parou quando meu irmão a matou com um tronco...

João disse que eu tive muita sorte, pois é no meio da “palha” dos banhados, onde durmo todas as noites, que estas cobras habitam.

Para mim foi uma surpresa, pois achei que, com este frio, as cobras ficavam meio que hibernando...

Não é que achei uma cruzeira de um metro descansando ao sol? Joguei um pau para longe dali, para afastar Dick da cobra, depois fui na barraca, peguei a faca e cortei um galho em forma de forquilha.

Voltei onde à vira pela última vez e ela ainda estava ali. Coloquei a forquilha em seu pescoço, mas não quis pegá-la com a mão, por trás da cabeça, pois uma vez peguei uma cruzeira assim (hoje está empalhada) e ela me encheu a mão de veneno, tivesse um corte na mão e estaria futz!

Então resolvi soltá-la e enfiar o galho por baixo dela, pois assim ela não teria apoio para dar os botes, teoricamente!

Quando a soltei, ficou uma fera, deu vários botes na minha direção, mas eu me defendia com o galho até que consegui erguê-la e descobri que a teoria era certa, não deu mais botes (preocupada que estava em não cair do galho), mas ficou muito próxima da minha mão...

Levei-a para perto do acampamento e a deixei presa pela forquilha cravada no chão; não queria matá-la, apenas queria mostrar para João e Éder (seu filho de 15 anos) e depois soltá-la.

Eles chegaram mais tarde e o João ficou possesso da fisionomia, matou a cobra, ateou fogo onde a encontrei e parecia preocupadíssimo com o fato da a cobra estar próxima de sua barraca de lona que não era fechada:

 

-          Agora as outras cobras vão sentir o “cheiro” dessa aí e podem vir para cá!

Dizendo isto, jogou-a n’água, entre os juncos.

 

REVISANDO ESPINHÉIS NO ESCURO

Ao cair da tarde, fui com Éder, no bote deles, revisar os espinhéis.

Cara, a noite chegou; eu controlando o barco com o remo enquanto o Éder iscava os anzóis e recolhia os enormes jundiás. Dali a pouco ele começou a contar os “causos” de crimes e assombrações que puxavam o cara para o fundo das águas e por aí afora.

Fiquei imaginando se um de nós caísse n’água, com toda aquela correnteza, no escuro e a gente cheio de roupa... Nesse frio de rachar! Quem vai encontrar a gente no escuro?

Quanto tempo o cara agüenta na água gelada? Será que tenho forças para nadar até a margem?

A resposta é só uma: caiu n’água, não conseguiu agarrar o barco... Já era!

Não tem a menor chance de sobrevivência...

E o Éder dizendo que é difícil de cair... Talvez seja melhor mesmo ele não ter consciência do perigo...

Bueno, mesmo congelados, fomos até o fim do espinhel (uma linha grossa de nylon de uns 200 m, presa ao fundo, atadas a pedras ou tijolos para que não se desloquem na correnteza, com centenas de anzóis ao longo da linha).

Enfim, já congelados pelo forte vento sul, frio de repartir o bigode, retornamos para o acampamento; antes deixamos os peixes no viveiro. Fiquei em volta do fogo de chão, jantando e tomando um delicioso café, tentando recuperar a sensibilidade nos dedos da mão e dos pés descalços.

O João foi mais uma vez, sozinho, revisar os espinhéis.

Depois fomos nos ajeitar para dormir na barraca deles, na verdade era um enorme toldo de lona abrigado sob uma frondosa figueira e algumas outras árvores que abrigavam muito bem do gelado vento vindo do sul.

Dormi sobre uma grossa espuma, com o saco de dormir e por cima de tudo uma grossa coberta. Não era suficiente, porém. Tive que dormir com a cabeça tapada, não está fácil este frio!

A barraca é aberta e fiquei imaginando se a mãe daquela cruzeira não ia aparecer para se vingar!

O Dick dorme aqui dentro, em sua caixinha forrada com pelego; mesmo assim geme de frio!

 

10/08/2000   Quinta-feira

Bom dia! São 7:53 h, estou escrevendo de frente para o fogo de chão, a chaleira chia com a água para o chimarrão enquanto Dick brinca ao redor do acampamento; João está revisando os espinhéis e Éder ainda dorme.

O dia está bonito, escuto uma música nativa no rádio de pilha do João enquanto o sol esquenta um pouco esta manhã muito fria de quatro graus...

Acho que o que me aconteceu ontem foi que, ao tirar a roupa úmida (mas quente do calor do corpo) e colocar uma camiseta que uso para viajar, totalmente encharcada e gelada, causou uma espécie de cãibra de tanto o corpo tentar gerar calor e de não ter calorias suficientes para isso, pois minha alimentação é extremamente insuficiente para isto, daí aquela dor em forma de pontada.

Por isto aceitei o convite de João para descansar e colocar comida quente e de verdade no corpo, como ele disse.

Depois do café, arrumamos tudo e partimos para o outro lado, onde estão os barcos.

Lá chegando, eles foram trabalhar na construção de uma casa de material, sua futura moradia. Eu fui arrumando as coisas nos barcos enquanto Abigair e seus filhos conversavam e observavam.

É desagradável seguir em frente depois de ter um pouco de segurança, calor e comida, mas o destino me espera.

Finalmente parti, forte vento sul de través até o fim do canal, mas após a barra, ficaria favorável. Agradeço, de coração, a estes novos amigos que tanto deram sem pedir nada em troca.

Está difícil de puxar a prancha com o vento e as ondas de lado, mas vou seguido até quase chegar no final da barra. O que acontece?

A prancha, que estava no reboque virou! Isto ainda não tinha acontecido. Deixo as ondas nos levarem para a costa, coloco a mochila que estava sobre o bagageiro à frente deste, direto na prancha, assim baixa o centro de gravidade e fica um pouco mais estável nas ondas. Aproveito para amarrar tudo muito bem, pois o meu espírito aventureiro vai me aprontar outra... E o corpo que se rale. Dá uma raiva de mim mesmo!

 

LAGOA DOS PATOS - BATISMO DE GELO

João e os outros pescadores me aconselharam a ir costeando, porque a Lagoa dos Patos estava um verdadeiro mar furioso, de ondas grandes e geladas. O bom senso manda ir próximo da margem e não correr mais riscos, ainda mais agora que eu tive aquele “troço” que nem sei o que foi.

Uma coisa que sempre foi “lei” para mim é conselho de pescador, pois quem conhece é o pessoal do lugar.

Calculei que, se fosse pela costa (como eles disseram), em forma de meia lua, em breve eu ficaria com vento contra e sem possibilidade de avançar, tinha certa lógica não costear, mas era loucura.

Não há um barco sequer neste mar violento que é a Lagoa dos Patos hoje, os experientes (e inteligentes) não se arriscam à toa! Mas acontece que o “louco” dentro de mim resolveu desafiar os elementos e esquecer os conselhos dos mais experientes...

Resolvi rizar (diminuir) a vela do caiaque e tocar direto pelo meio, na direção do último ponto de terra que podia avistar no horizonte.

Resolvi não pensar, simplesmente fui, seja o que Deus quiser! Isso que conselho de pescador, para mim, é lei.

 

-          Cara, que loucura!

-          Agora é tarde, não tem mais volta. Te vira cara... E me tira daqui!

-          Desgraciado! Agora não posso mais, só daqui há três ou 4 horas, isto se tu agüentar!

 

As ondas ficaram enormes, de través, a coisa começou a ficar preta. As ondas batiam no costado, o vento jogava os respingos com força para dentro do meu ouvido e a água gelada escorria por dentro da gola e gelava o corpo que tremia sem parar; além disto, mesmo com a capa, a água já havia invadido o espaço onde eu remava e minha bunda já estava submersa n’água gelada.

Não sei o que acontecerá se eu virar, pois com este frio de seis graus aliado ao vento de rajadas, que só faz aumentar... Não é bom nem pensar.

Tive que me concentrar em não deixar o caiaque virar; já tremia que nem vara verde (de frio).

Tudo estava indo mais ou menos quando a prancha virou no reboque, depois de uma hora.

E agora? Eu, lá no meio não tinha como ir para a beira desvirá-la; fiquei olhando para trás, sem acreditar que isto estivesse acontecendo comigo. Era mais fácil virar para o outro lado e continuar dormindo; era só um sonho ruim!

Pior, a prancha estava emborcada, com a mochila amarrada por baixo e a água poderia estar se infiltrando e molhando coisas importantes, tanto dos compartimentos estanques do bagageiro dela quanto da mochila.

 

-          Acorda, seu mané! Vai lá e faz alguma coisa!

 

Baixei a vela do caiaque, fiz a volta e encostei na prancha, no maior sufoco, pois as ondas estavam grandes, muito próximas umas das outras e jogavam um barco por cima do outro, além do que, o cabo que une as embarcações não era comprido o suficiente para deixar uma bem de lado para a outra.

E quem consegue desvirar a prancha? Se forço ela, aí quem vira é o caiaque.

Depois de várias tentativas, consigo desvirá-la. Desvencilho-me do cabo que une as embarcações, ajeito a vela do caiaque com muito custo e a corna virou de novo... MERDA !

Senti que estava em perigo, por isso deixei a raiva de lado, qualquer vacilo e... Adiós!

Repeti a operação, fiquei segurando a prancha ao lado enquanto ajeitava a vela do caiaque; aí sim deu certo.

Quando a vela ficou cheia, larguei a prancha e fui remando, a toda, para manter o cabo de reboque tensionado, assim a prancha não virava.

Consegui andar assim por mais duas horas, mas uma onda enorme virou a prancha de novo, tudo bem, eu já possuía know how para desvirá-la.

Afora isto, o ponto mais a direita que eu podia ver no horizonte era o final de um capão de mato, depois da colônia Z 3, Arroio Sujo.

Bem à direita, muito mais à direita, havia um mato que mais parecia ser uma ilha, pois eu não conseguia ver terra entre um mato e outro.

Como já estivesse a uns 3 km da costa, resolvi não me afastar mais e rumar para o certo, o último ponto de terra que eu podia ver com certeza.

Mais algumas vezes a prancha virou, só que agora o cabo de reboque se enroscou no leme do caiaque e ficou muito curto. Consequentemente, a distância entre os barcos ficou menor e, de jeito nenhum, consegui soltá-lo.

A prancha pegava “jacaré” nas ondas e vinha com tudo; chocava-se contra o leme do caiaque ou subia na popa, daí o cabo enroscava no leme e ficava cada vez mais curto.

Numa destas, a prancha veio com tudo, subiu na popa do caiaque e o bico dela passou ao lado do meu pescoço; depois me acertou no ombro esquerdo e doeu pra caramba!

Não sabia se remava ou olhava para trás; para ajudar... NADA!

Além disso, o ponto que eu tinha estabelecido como o final, próximo da entrada da Lagoa Pequena, não era o correto, era aquele mato que parecia ser uma ilha... Era lá a ponta da Feitoria, antes dela situava-se a entrada da Lagoa Pequena, por onde eu pretendia seguir.

Ferrei-me! Mais um tempo e teria de andar no contravento para seguir a costa.

Fui me aproximando da costa, a esta altura com o leme do caiaque completamente despedaçado pelos choques com a prancha.

O vento diminuiu um pouquinho e comecei a ir de través, até que a costa ficou voltada para o contra vento. Aí foi cruel, aquela velocidade ”fantástica” (- 1 km/h), muita força, pouco avanço, costa desabrigada, nuvens polares no horizonte e o vento inclemente aumentando de intensidade.

Se der tempestade vou me ferrar!

Ainda tenho coisas molhadas da tempestade, vareta da barraca quebrada, etc.

 

ABRIGO NA PALAFITA

Avistei uma casinha de pescador, tipo palafita, ao longe; parecia abandonada próximo da margem, em meio aos juncos.

Entre ver e chegar, duríssimas remadas de um corpo cansado depois de quatro horas de luta. Finalmente cheguei em terra, queria saber se estava próximo da entrada da Lagoa Pequena.

Arrasto os barcos entre os juncos até chegar ao lado da casinha, foi com muito sacrifício que cheguei aqui.

A casinha, tipo palafita, estava abandonada e seca por dentro. Vi, ao longe, um canal onde um barco de pescadores bem grande estava atracado em uma curva. Para chegar até eles por terra, teria de ir a pé, cruzando um banhado gelado e de lama visguenta.

Tudo bem fui até lá e perguntei se poderia dormir naquela casinha e eles disseram que não tinha problema; eu estava tremendo de frio, mas eles nem pensaram em me oferecer aquela gororoba quente que estavam comendo.

Logo eles foram embora e eu retornei para a casa. Amarrei uns cabos para estender as coisas para secar e desmontei o leme quebrado (agora vou sem ele, não tem mais conserto) e fui me ajeitando.

São 20:30 h, há um vento terrível que balança a casinha.

Coloquei a barraca, dobrada, no chão, a roupa de neoprene por baixo do saco de dormir e vou tentar dormir. Estou tremendo tanto que até parece que aquela dor vai voltar.

Apesar de só andar 4 h, fiz cerca de 17 a 18 km. Está bom!

Amanhã é outro dia e vamos ver como vai estar o tempo.

O vento aumentou mais ainda e fica assobiando pelas frestas da casa; vou fazer um miojo e dormir; acho que o celular não funciona mesmo, sem os créditos. Ah acho que já sei o que aconteceu: quando o Paulo liga para mim, ele paga a ligação normal e eu, por estar fora de área, pago a diferença, por isto se foram os R$ 70,00 de crédito. Talvez, por isto, eu não esteja mais recebendo ligações... Droga! Ia melhorar o meu astral se falasse com o Paulo.

 

11/08/2000  Sexta-feira

Bom dia é 7:45 h, faz quatro graus aqui na casinha; o que balançou esta casa com o vento não foi fácil, o frio que fez não está no gibi. O vento uiva furiosamente lá fora e as ondas estão me esperando.

Como dizia o Pepe Legal:

-          Saída pela esquerda!

É isso aí, vou entrar na Lagoa Pequena, antes de chegar na ponta da Feitoria e, pelo menos, me livro das ondas. Agora estou sentado no chão da casinha, dentro do saco de dormir, o mingau esquenta a meu lado e a mão que escrevo, sem luva, está congelada. Por falar nisto, ontem, quando cheguei da travessia, meus dedos estavam imprestáveis, não conseguia abrir nada, nem desatar nós!

Uma coisa é certa, este vento não vai durar para sempre e eu não vou me entregar!

Esta noite foi muito difícil; fui congelando aos poucos, principalmente os pés, até descobrir que era por causa do vento que entrava pelas frestas e pelo assoalho. Abri a barraca que estava dobrada por baixo e enrolei-me nela, daí o vento desviava no plástico e juntava um pouco de ar quente para melhorar um pouco.

Estou esperando esquentar um pouco para arrumar os trecos e partir.

Ainda bem que consegui chegar nesta palafita, pois de barraca, com este vento e o frio, sem abrigo... A coisa ia ficar bem complicada.

Mas vamos nessa, que tendo saúde (descobri que é muito importante) (não basta só a disposição) dá para encarar.

Ainda sou gaúcho macho e não entreguei os pontos.

Mas aquela dor... Não vou esquecer tão cedo, o que será que foi? Ontem, eu tremia tanto com a roupa molhada que ela ameaçou voltar. Coloquei roupa seca e tudo bem.

Pensa que é fácil ser super herói em quadrinhos? Cuidado! Não tentem imitar, pois pode ser fatal para simples mortais. Até o João arrepiou quando me viu brincando com aquela baita cruzeira enquanto ela tentava dar os botes:

-          Tu és louco!

 

Estava conversando comigo mesmo (o corpo e o espírito) e fizemos o julgamento da prancha:

-          Quantos dias tu usou ela?

-           Dois, talvez três! Viajando há 19 dias; 90 % do tempo ela me atrapalhou.

-          Então, para poderes terminar a viagem, só deixando ela em São Lourenço, senão não vai dar tempo. Não fosse ela capotar umas dez vezes ontem, terias entrado na Lagoa Pequena.

-           Por outro lado, parei nesta palafita abandonada que foi minha salvação.

-          Então fica assim; em princípio ela fica em São Lourenço.

 

É isso aí, vou dar mais 20 min para esquentar, arrumo as coisas e vamos à luta, que gaúcho não renega a peleia.

Agora estou em segurança, mas ontem a coisa foi altamente perigosa; a viagem toda está sendo assim, é risco todo dia, mas tenho consciência de que se não fosse assim não teria graça, não teria nada para contar depois!

Foi difícil, mas criei coragem, arrumei as coisas e parti às 11:15 h com um forte SW, mas agora, sem o leme para enroscar no cabo e com o cabo de reboque encurtado, ficou melhor para rebocar a prancha.

 

LAGOA PEQUENA

Remei um pouco para fora da rebentação e depois abri a vela do caiaque e a deixei rizada, pois o vento era impressionante; menos mal que estava favorável, um pouco de través.

Em seguida, meio na dúvida (a entrada parecia ser um simples canal entre os juncos), entrei na Lagoa Pequena, ao lado da ilhota do Meio, onde havia uma casa de pescador entre os juncos onde se destacava uma torre de madeira com um cata-vento.

Apesar do sol, o vento frio e a água gelada respingando em mim faziam com que eu tremesse sem parar.

Parei no meio dos juncos (na ilhota do Meio, que fica bem na entrada da Lagoa Pequena) para abrir totalmente a vela do caiaque, pois o vento era impressionante e não tinha quase ondas, por isso resolvi arriscar tudo.

Mais bah, tchê! A velocidade dobrou e o meu cuidado também, pois virar nesta água gelada... Nem pensar!

Fui desviando de centenas de paus fincados nos baixios (acho que servem para colocar ali as redes de camarões). Para falar a verdade, nem estava remando mais, tal a força do vento; só estava cuidando a direção com o remo, pois na falta do leme o controle era feito com ele, muito pior, mas que remédio?

O controle era feito ao “cravar” o remo no bordo contrário para o qual estivesse arribando o barco. Ou seja, diminuindo a velocidade.

O difícil seria achar o arroio Corrientes, que ligava a Lagoa Pequena com a Lagoa dos Patos; ele era muito escondido entre os juncos e voltado para SW.

Antes de sair da palafita, olhei bem para o mapa, tentando memorizar onde ficava o arroio, assim eu tinha uma noção mais ou menos de onde era. Então fiquei nessa, controlando a direção e tentando me localizar (em 1984 passei aqui com o Júlio e o Teixeira, a gente se desencontrou e eu acampei sozinho, sem saber se eles estavam adiante ou atrás do meu acampamento).

Passo por um local parecido com o lugar onde acampara naquela oportunidade, uma figueira frondosa, um pouco para fora da mata, rodeada por um gramado que vem ate a beira; era um dos poucos locais onde a margem não está tomada pelos juncos.

Vou em frente, já preocupado de não passar da entrada do arroio, pois retornar contra esse fortíssimo vento é quase impossível. Meu curso é entre 90 graus E 30 graus NE e a entrada do arroio Corrientes é pelo meio dos juncos, voltado para SW, bem no contra vento e super difícil de encontrar.

Vejo um pescador entre os juncos na outra margem e vou, no contra vento, falar com ele.

Diz que não passei ainda e que é só ir contornando os juncos da margem leste que verei uma casinha branca próxima da entrada.

 

-          Tu, com esse “pano” (vela) chegarás em 5 min!

 

Não foi bem nesse tempo, mas vi uma entrada para a direita onde poderia ser. A droga é que se não fosse ali, teria de sair no contra vento, iria me ferrar!

Vou entrando pelo meio dos juncos e vejo vários casais de cisne de pescoço negro e um ou dois de gansos; eles são enormes e para voar precisam de um bom pedaço, pois vão batendo as asas e, como se estivessem correndo, vão batendo as patas n’água até ganhar altura, irado!

O máximo que encontro por ali é um banhado com alguns biguás (que emitem um som parecido com grunhidos de porcos), garças, marrecos, e a chorona (um mergulhão que emite um AAAHHH comprido, triste e lamurioso...).

Muitas vezes, com água a perder de vista, longe de qualquer coisa que não fosse água, ouvia este lamento, sem saber de onde surgia, parecia uma assombração...

Já são 15 h e ainda não comi:

-          Come depois de encontrar o canal, ali tu acharás local abrigado na mata nativa para acampar e já faz a janta!

Este era o plano, acampar nas matas do canal antes de entrar na Lagoa dos Patos.

MERDA! Não era ali naquela entrada dos juncos o canal; baixo a vela, desço a terra e caminho pelos juncos, tentando ver algo.

Que difícil para caminhar! Uma lama visguenta e cinza gruda na bota de neoprene, mas não tem canal nenhum.

 Não vejo a tal casa branca que o pescador falou, apenas um mar de juncos, nada mais!

Volto para o caiaque e demoro em limpar a bota daquela lama visguenta antes de entrar no barco; depois vou seguindo entre os juncos, já com a vela arriada.

 

O ARROIO CORRIENTES

Encontro uma pequena passagem, com menos de 10 m e vou entrando pelo meio dos juncos; minha única referência agora é a bússola e percebo que estou voltado para SW, parece que estou voltando, mas a verdade é que estou voltando por um caminho diferente, pelo meio dos juncos. Que é um canal, é!

Para meu desespero, ele segue bem contra o fortíssimo vento que forma ondas de proa, horrível!

Tenho que remar com muita força e sem descanso, pois se descanso, as ondas e o vento nos jogam para trás, em segundos, o que avancei com tanto sacrifício no contra vento.

Para “ajudar”, a prancha ficava dando trancos para trás, como uma mula teimosa.

Tive que arriar a vela do caiaque e, mesmo enrolada, ela atacava o vento e contribuía para dificultar meu avanço.

Quase não saio do lugar. O desespero, aliado ao estresse físico e à fome, explode naquela raiva histérica acompanhada de fúria galopante. Começo a xingar o vento e as ondas de tudo que é nome que tenho no meu “repertório” enquanto remo com mais força ainda, só para mostrar para eles que não irão me deter e que não estou morto; parece que tem alguma coisa querendo me prejudicar, dificultando, de todas as formas o meu avanço e isso, em vez de desanimar, me dá mais raiva ainda, cheguei a ficar rouco de tanto berrar nomes enquanto remava.

Já perdi a conta de quantas vezes essa raiva me tirou de situações de perigo e adversas, ela tira forças de onde já não mais tenho!

Prossigo nessa louca batalha até me aproximar da curva do rio (depois de uma longa reta no contra vento), onde há uma belíssima mata nativa que ataca o vento.  UFA!

Agora posso curtir o lugar, que lindo! Está cheio de recantos bucólicos. O arroio não tem mais do que vinte metros de largura e vai margeando belíssimas matas nativas cheias de pássaros e animais silvestres, dizem que até o lobo Guará habita estas matas.

Quem conhecia este caminho era o Teixeira e nos trouxe por aqui em nossa viagem de 1983, quando viemos de Rio Grande a Porto alegre, ele e o Júlio de caiaque e eu de windsurf, com a mesma prancha que estou rebocando agora...

Este caminho é mais longo, mas é lindíssimo; nota dez para o Teixeira!

Às 16 h, encontrei pescadores em um barco atracado na margem norte e eles disseram que o arroio desembocaria na Lagoa dos Patos, um pouco adiante. Achei que, antes disso, encontraria um local gramado e abrigado do vento (principalmente).

Cara! Quando vi, estava no fim do arroio, de frente para a Lagoa dos Patos e não havia matas que abrigassem do vento por ali. Fiquei nervoso, pois estava enregelado e na Lagoa não teria lugar tão bom para acampar.

Falei com dois rapazes que estavam em um bote e um deles disse que se eu fosse seguindo pela Lagoa dos Patos, encontraria local bom para acampar a não mais do que 100 m, com mata nativa próxima à margem.

Eram 16:30 h; mesmo sem comer nem beber nada desde que parti hoje de manhã, resolvi seguir logo, pois o frio não me dava a opção de vacilar.

Encosto abro a vela do caiaque (agora o vento está favorável para meu novo rumo, NE) e me vou, Lagoa dos Patos adentro.

Ela parece mar, deve ter uns 50 a 60 km de largura por aqui...

A costa é formada por um barranco inclinado, diferente das planícies alagadas que me acompanharam até aqui. Um pouco mais para dentro tem matas nativas de pequeno porte.

A margem está repleta de bagres mortos, por que será?

Fui costeando, no rumo NNE, com vento de SW e ondas médias; não sei porque estou tão nervoso, acho que deva ser por causa do frio que estou sentindo, da exaustão, por não encontrar local abrigado para passar a noite ou, talvez, por estar na imensidão da Lagoa dos Patos, tendo consciência da morte certa se um vendaval me afastar da costa. Ninguém resiste a esse frio!

Se eu ficar imerso nessa água, posso morrer de frio em menos de duas horas, ela é congelante e está próxima de zero grau... É fato que uma pessoa, sem roupa, morre em trinta minutos se ficar imersa em águas com temperatura de cinco graus ! Teoricamente, com a roupa de neoprene, suporto um pouco mais.

Marquei um ponto para frente e estabeleci 17:30 h como horário limite para parar e montar acampamento, pois o frio congelante iria ficar mais rigoroso ainda ao final da tarde.

Efetivamente, às 17:30 h parei e arrastei, com dificuldade, os barcos para o alto do barranco, bem junto de umas touceiras que abrigavam do vento sul. Armei a barraca longe dos barcos, ao lado de pequenas árvores que me protegeriam do vento SW.

Estou extenuado e congelado, cansado de tudo, das brigas com a natureza, de passar frio, correr risco de vida etc.

 

CHEGA, DESISTO!

Resolvi encerrar esta viagem assim que chegar em São Lourenço do Sul; amanhã, pelas minhas contas. Estou de saco cheio de passar frio, esperando aquela dor voltar...

Além disto, acho que não dá mais tempo de ir até Porto Alegre (é final das minhas férias, tenho que voltar ao trabalho em Santa Catarina).

Confesso que estou aliviado, não vou mais sentir frio, vou parar de sonhar que estou dormindo em uma cama quente e acordar no meio de tempestades, molhado e congelado.

Já que vou desistir, não economizo gás nem comida, esquento água e coloco na bolsa de borracha (para descongelar as mãos e os pés) e faço uma sopa reforçada com miojo.

São 21: 30 h, só agora, um pouco mais aquecido e alimentado, tive ânimo para escrever; vou deixar para decidir quando chegar em São Lourenço.

 

12/08/2000      Sábado

São 8:45 h, o dia está bonito, sopra o vento sul, mas a barraca está bem mocoseada aqui. A noite não foi fácil, na verdade tu não dorme, pois fica tremendo a noite toda, virando de um lado para o outro e assim vai passando até que faz o café, um pouco antes do amanhecer. Então fico escrevendo o diário e depois vou arrumando as coisas aqui dentro e deixo para colocar a roupa de neoprene, gelada, por último. O fato de a vela ficar acesa enquanto esquento o mingau e escrevo, aquece o interior da barraca em dois graus com relação à temperatura externa, não é muito, mas ajuda.

Menos mal que não chove, já explorei o local, fui seguindo pelo meio do mato, por trilhas belíssimas e dunas pequenas mais para o interior, onde começam os campos.

Defronte à barraca, há sulcos profundos na areia grossa indicando que por ali passam tratores e carros de bois. Estou um pouco longe dos barcos, cerca de trinta metros, mas a barraca tinha que ficar abrigada deste vento congelante se foi ruim abrigado, imagina sem abrigo.

Bueno vou fazer uma sopa quentinha agora, pois não pretendo parar até chegar em São Lourenço. Olhei bem para o mapa, defini minha posição e decidi que poderia chegar hoje, só deveria ter persistência e não perder muito tempo com comida, por exemplo.

Parti só às 11 h, com vento SW e curso entre 30 e 40 graus NNE, vento de popa médio, remando no caiaque auxiliado pela vela e com a prancha no reboque.

Calculei que, em 4 h faria o trajeto até S. Lourenço, por isto reforcei no mingau. Pretendia remar direto estas 4 h sem parar sequer para comer; este vento poderia aumentar muito e sei lá...

A costa é toda muito linda, mata nativa próxima da margem ao longo do trajeto e a água está num tom esverdeado, quase transparente.

Com o tempo fui me acostumando com as ondas, sentindo que tudo estava sob controle, pois o caiaque puxava bem a prancha com o vento favorável e a minha velocidade estava próxima de uns cinco a seis km/h.

Tanto estava boa (a velocidade) que um barco a motor demorou mais de uma hora para me alcançar; eram os pescadores a quem pedi informações ontem, no arroio Corrientes. Eles insistem em me dar carona, digo que assim não tem graça, tenho que ir por mim mesmo ou todo o esforço que fiz até agora terá sido em vão.

Aí eles me tentam, dizendo para tomar um café com eles, muito cruel...

Digo que vou tomar café lá pelas 15 h, quando chegar em S. Lourenço, mas o rapaz diz que a cidade está muito longe e que só vou chegar por lá apenas às duas horas da manhã...

Eles dizem que os milhares de bagres mortos ao longo da costa morreram por causa do frio... Pelo fato de a água estar congelante...

Será? Nunca vi peixe morrer de frio, achei que fosse por algum tipo de poluição.

Tiro uma foto do barco deles e cada um segue seu caminho.

Mais uma hora de viagem e estou passando pela foz do arroio da Divisa, onde vi um veleiro entrar um pouco antes; eles pararam em um belo local, à reversa do vento; para fazer um pic-nic, penso eu. Então não vou até lá para não incomodar.

Vou seguindo, admirando o belo visual do local quando o caiaque dá um salto e fica trancado em algo; no mesmo instante a vela gira para o lado e a prancha, que vinha embalada, entra de bico na lateral do caiaque.

Estou preso num tronco submerso e o caiaque quase vira com as ondas que me atingem de través. Consigo arriar a vela no sufoco e, com muito esforço, sair dali.

Foi um belo susto, pois está muito frio e cair nesta água gelada... Nem pensar!

Agora passei a usar o casaco de chuva da moto e os respingos não encharcam mais a roupa de neoprene, além do que o ar quente do corpo fica retido e me isola do vento gelado que sopra.

Já são 13 h, sol gostoso, mas, por incrível que pareça, está saindo fumaça da boca... Bota frio nisso!

O vento fica cada vez mais forte, as ondas maiores, mas, mantendo o curso, posso controlá-las; a ausência do leme do caiaque está fazendo muita falta, pois agora tenho que ir controlando a direção com o próprio remo e isto atrapalha o ritmo das remadas.

Já lá se vão 3 h de remadas ininterruptas, as pernas começam a formigar, a região atrás do pescoço incomoda e a bunda dói, é um saco!

Posso ver S. Lourenço, mas não vejo a entrada do canal onde há o Iate Clube de S. Lourenço. Estou meio afastado da costa, mas, para não ficar no contra vento, só vou me aproximar quando enxergar o canal.

Procuro por uma bóia de sinalização que há na entrada, mas não vejo nada, pois estou há 3 km da margem. As ondas estão enormes, o vento aumentou mais ainda, ficou de rajadas e a prancha começa a me irritar ao dar trancos e vir para cima do caiaque.

Fora os dois ou três dias que a utilizei, no resto ela só me atrapalhou, foi um atraso de vida! Foram cerca de 400 km rebocando...

A prancha parece que sabe que vou me livrar dela e atrapalha mais do que nunca. Parece que faz de propósito... CORNA!

Acho que estou vendo a entrada do canal e viro para lá, a favor das ondas.

O cabo que une os barcos é uma espécie de borracha; então o caiaque pega “jacaré” nas ondas, ganha velocidade e o cabo estica, pois a prancha está trancada na onda, daí o caiaque pára, a prancha ganha velocidade, pega jacaré e vem por cima de mim.

Vai batendo com força no caiaque, passa a meu lado, bate no meu corpo de raspão, pois estou sempre cuidando a corna e desvio no último instante, antes que ela me acerte.

 

-          Espera só mais um pouco, sua maldita. A tua hora vai chegar!

 

Numa onda enorme, cuido para que a vela não fique no contra vento e a prancha, aproveitando minha distração, veio com tudo e o bico dela me acertou em cheio nas costas...

 

-          DESGRAÇADA! XUNRHEHJKDMM,,,,,(cobras, lagartos e toda a série de nomes feios que posso lembrar...)

 

O sangue subiu e explodiu; foram 18 dias de uma decisão errada que explodiram na chegada em S. Lourenço, fiquei quase cinco minutos, berrando a todo pulmão, toda sorte de impropérios contra a prancha, cheguei a ficar com dor de garganta de tanto dizer nome...

 

-          Daqui tu não passa, maldita!

-          Deu pra tua bola, vai pra...

 

E ela, para me deixar mais irritado ainda, vinha para cima de novo, de novo, de novo...

 

-          Cara! Quase quebrei o remo, ia dar uma porrada nela, só não dei porque o remo é do Aldo.

-          Que esforço supremo para me controlar neste momento de fúria.

-          Se ela fosse um ser vivo, seria capaz de matá-la...A facadas.

 

SÃO LOURENÇO

E assim, “alegre e contente”, fui entrando no canal. Algumas pessoas me observavam de muito longe, espero que não tenham escutado nada, como explicar a loucura? Só rindo de mim mesmo!

Desviei de umas rochas submersas e encostei no Iate clube, eram 15 h, tal qual planejara...

Vou até a portaria, falo com o Senhor Vandir, que conhece o Teixeira (inclusive se hospedou na casa dele em POA) e também com Clenice, que me oferece um chá quente ali na portaria.

Peço desculpas, pois estou pingando e molho todo o chão, além do mais, começo a tremer, pois está fazendo uns seis graus agora.

Ela liga, a cobrar, e consigo falar com o Paulo; foi tri legal ter falado com o “brody”, ele diz que vem hoje mesmo para S. Lourenço.

Vou até os vestiários do clube, tomo um longo e demorado banho quente... Que delícia!

Pego uma carona com o Sr. Luís Mesquita (médico) até o centro; lá, compro gás e sopa num supermercado que ele conhecia. Ele é muito legal e me traz de volta para o Iate Clube.

O Senhor Élvio (que estava naquele veleiro lá no arroio Divisa) diz que eu vim bem rápido, pois eles saíram de lá um pouco depois de mim, mas não conseguiram me alcançar.

 

PEIXE MORRE DE FRIO?

Ele diz que os peixes mortos ao longo da costa morreram devido a água gelada e que, este, está sendo o inverno mais rigoroso de que todos conseguem se lembrar.

É muito frio. Cacilda!

Puxo minhas coisas mais para um canto e vou assistindo TV com Vandir na guarita, à espera do Paulo.

 

O CALOR DA FAMÍLIA

Tomamos um café para esquentar um pouco e, pelas 22 h, eles chegaram.

Cara! Foi muito bom. Que alegria rever meu pessoal, Paulo, Helena, Gabriela, Luigi e a mãe...

Depois de todo esse sufoco... Foi demais!

Fomos para o Hotel das Figueiras, onde havia uma milagrosa lareira. Ficamos ali, recostados no fogo, conversando e assistindo a fita do dia da partida lá em Santa Vitória do Palmar.

Eu quase não tirei o traseiro da frente do fogo, que coisa mais gostosa sentir o calor depois de tanto tempo.

Saímos para comer uma pizza (Tropicália) e um strogonoff, depois voltamos ao hotel, perto de meia-noite e fomos dormir.

 

13/08/2000   Domingo      -   Dia dos Pais  -              Terceira semana

 

Falamos com o pai hoje cedo, o véio Jorge está em São Paulo. Depois ficamos na sala de espera, ao lado da lareira, assistindo a corrida de fórmula 1 na TV. Passeamos em frente ao hotel, que fica às margens da Lagoa, adornada por centenárias figueiras e passeios onde as pessoas namoram e desfrutam da paisagem. A cidade mudou muito desde a última vez que estive aqui, está muito mais bonita, com bucólicas avenidas paralelas às margens da Lagoa, muitas casas bonitas, além de bares e restaurantes.

Fomos almoçar em um restaurante próximo à margem (Casa Nostra), uma comida deliciosa e barata. Depois passeamos pela cidade; muito astral, por sinal.

Não muito longe do Iate Clube, fomos visitar um casarão histórico, na verdade um sobrado com cerca de 200 anos, do tempo da guerra dos Farrapos. É uma construção fortificada, feita por escravos, com paredes de um metro, com vigias em pontos estratégicos com pequenas fendas por onde os ocupantes atiravam, se necessário fosse. Agora, funciona como um hotel fazenda.

Os móveis, as enormes portas e janelas lembram de coisas e fatos que nos transportam a um passado não muito distante, de estórias de guerra e de bravura, de um povo que nunca se entregou e que soube escrever o próprio destino, que todos nós, gaúchos, veneramos com orgulho.

Ao longo das margens da Lagoa dos Patos há centenas de estórias de batalhas que aqui se desenvolveram, é fascinante estar trilhando terras tão sagradas.

 

ADEUS À PRANCHA DE WINDSURF

Depois voltamos ao Iate Clube para colocar a prancha no reboque (já foi tarde) que o Paulo trouxe e eu fui tentar arrumar o leme quebrado do caiaque com durepoxi.

Fomos jantar do outro lado do canal, em ritmo de despedida. A mãe ameaçou chorar por estar muito frio e por eu estar voltando para a luta, mas eu não podia deixar a peteca cair.

Eu me dispus a realizar alguma coisa, sabia que iria me ralar, sabia o que iria enfrentar. É desagradável a idéia de retornar à luta depois deste dia maravilhoso, mas tenho que seguir meu destino.

Depois da janta, meu amigão, “brody” Paulo já estava rateando de sono, até fiquei preocupado com eles. Às 22 h eles me deixaram na entrada do clube e, depois das despedidas, se foram para Porto Alegre, levando consigo a prancha, minha ex-companheira de tantas aventuras aqui na Lagoa e no Rio de Janeiro, mas nessa viagem mais atrapalhou que ajudou.

É gozado, o carro some na curva e só permanecem as estrelas...

 

DORMINDO NO VELEIRO

O Senhor Vandir arrumou lugar para eu dormir na cabine apertada de um pequeno veleiro atracado no canal. Cara, não podia ser melhor, dormi num colchonete, ao lado da bolina do barco, com o teto a menos de 20 cm da cabeça, com um grosso, pesado e quente poncho que o Senhor Vandir me emprestou; que baita amigo!

Nem preciso dizer o quanto ele foi legal comigo.

O Sr. Sérgio foi outro amigo que já me conhecia da outra viagem que fiz com o windsurf do Chuí para Porto Alegre; como agora, no inverno.  Inclusive ele tem a reportagem do jornal que saiu naquela época.

Gosto muito de S. Lourenço, o Sr. Antônio Moreira, ex-comodoro e que me hospedou em sua casa na viagem de Wind, esteve no clube hoje pela manhã me procurando, mas eu estava passeando com a família. Valeu; depois ligo para o amigo.

 

14/08/2000  Segunda-feira

Agora são 8:20 h, estou há pelo menos uma hora escrevendo aqui no veleiro. Agora vou sair, tentar montar o leme que reconstruí com durepoxi (não sei se vai resistir), arrumar as coisas da prancha no caiaque e partir.

Faltam 200 km e tenho mais dez dias, levei vinte dias para fazer 400 km, então terá que dar, agora que vou só com o caiaque. Posso até seguir no contra vento.

Foi um final de semana muito especial, fiquei preocupado com o “brody”, pois ele estava com sono quando partiu.

É difícil retornar para o campo de batalha depois do carinho dos familiares, mas tenho uma missão para terminar.

Demorei, mas consegui consertar o leme; tive que retocar, à faca, o conserto que fiz ontem com o durepoxi, no fim deu certo, as peças de madeira do leme se encaixaram e ele parece estar funcionando como antes.

Os cães haviam sumido com uma luva e uma bermuda que deixei secando com minhas coisas, procurei um monte até achar o local onde eles roeram minhas coisas. Tudo bem.

O Senhor Vandir Cath também tinha a reportagem da viagem de windsurf e ainda se lembrava de mim.

Fui na portaria me despedir dos amigos e dei uma ligada para a casa do Sr. Antônio Moreira, ele deu um jeito de aparecer antes de eu partir e trouxe sua filha, a Luciane. Ela não mudou nada, continua bonita.

Falei com dona Guiomar por telefone, ela é esposa do Sr, Antônio e foi muito legal da vez que fiquei hospedado na casa deles.

Adoro S. Lourenço, todos são hospitaleiros e é um lugar lindíssimo. Luciana tinha que voltar para o trabalho bati uma foto e depois eles se foram.

Acabei partindo sem ter ninguém para dar um adeus final. A barraca ficou acomodada sobre o compartimento da popa, enrolada na lona plástica (para não molhar com os borrifos das ondas e nem com a chuva); a mochila ficou acomodada sobre o compartimento da proa e não atrapalhava muito, apenas quando as ondas de proa passassem por cima trancariam ao bater na mochila.

 

VOLVENDO A LA PELEA  -  SEM REBOQUE

Saí às 11:20 h, com fraco vento contra, fui contornando a avenida que margeia a Lagoa e passei defronte do hotel das Figueiras.

Que diferença, mesmo contra o vento e as ondas, o caiaque vai bem rápido agora que não tenho a prancha para rebocar. E o leme funcionando me permite remar igual, sem ter que fazer força de um só lado para corrigir o curso, isto sobrecarrega a musculatura das costas; para corrigir o curso é só direcionar o timão, nos pés, que ele traciona, por cabos, o leme que está na popa. Outra peculiaridade do leme é que ele é retrátil, acionado por uma pequena cana-de-leme, acionada manualmente, quando cruzo por águas rasas ou quando me aproximo da margem.

Eu bolei este leme para o caiaque, observando o leme dos hobby cats, desenhando em um caderninho e depois fazendo, em papelão, as várias peças necessárias. Depois o montei na popa e recortei até que funcionasse. Mais tarde, fui a Porto Alegre onde meu primo, Cláudio, passou os moldes de papelão para madeira em sua marcenaria. O direcionamento do leme era feito pelo timão, acionado pelos pés e ligado ao leme por cabos, a exemplo dos barcos de competição (dois com) onde remei na minha adolescência.

A vela, sustentada pelo antigo mastro de alumínio da prancha e recortado para não ficar muito alto, foi experimentada pela primeira vez na Lagoa da Conceição, em Floripa, com uma taquara no lugar do mastro e um saco de estopa como vela, tudo para ver se o local escolhido aleatoriamente por mim para colocar o mastro era o certo. Era um pedaço de cano de PVC resinado na proa, situado logo a meus pés. Puxadores para as escotas da retranca e uma vela pequena foram boladas pelo Nelson Picollo, era tipo balão e presa nas bordas externas por mordedores sem rolamentos, pois, além de ser práticos, não estragariam com a areia. Desse modo eu poderia velejar, direcionar o caiaque e, ao mesmo tempo, seguir remando.

Queimei muitos neurônios e grana para bolar tudo isto, mas o conjunto funcionava legal, como eu já percebera em mar aberto, indo do Rio de Janeiro até S. Paulo (divisa).

Como eu nunca tive um caiaque na minha vida, fiz muitas escolhas erradas, ele não era o ideal, tinha só 3 m (os de longas travessias têm cerca de 6 m), era ultra pesado e os flutuadores colocados ao lado (para o caiaque não afundar, mesmo inundado) davam um arrasto terrível; além disto, o fundo dele era chato, quando deveria ser em VÊ, assim cortaria melhor as ondas... Enfim, coisas que só percebi bem depois.

Quando eu bolo uma viagem não fico pensando muito, simplesmente vou, o que me importa é a adrenalina, a aventura. Velocidade e recordes não são para mim, meu negócio é... AVENTURA  BRODY!

Chego na ponta do Quilombo e dali traço uma reta para o último ponto de terra que posso ver no horizonte, o tempo está esquisito e tenho medo de que venha alguma tempestade.

Felizmente é só um chuvisqueiro, o vento continua contra, mas deu uma calmada. Enquanto sigo, vou beliscando o almoço, para não perder tempo. Hoje não tomei café, pois estava pondo o diário em dia ali naquele veleiro.

Após 2 h de viagem, começa a chover forte, mas coloco a jaqueta de chuva e continuo numa boa. Não está muito frio, então vou seguindo em frente. Mais uma hora de viagem e resolvo encostar para esticar as pernas por 10 min; logo vou em frente, pois tenho que fazer, pelo menos, 20 km/dia, para chegar em Porto Alegre antes que finde minhas férias.

A chuva continua, mas tudo bem, estou meio perdido, mas vou tocando em frente sem muita preocupação, pois a costa é repleta de matas nativas e não terei dificuldade de encontrar local abrigado para acampar.

Passo por um local onde muitos gaviões pequenos estão se empanturrando com os bagres mortos pelo frio.

O tempo está meio feio, mas tudo bem, sigo até às 16:50 h e paro para acampar em um local já utilizado por pescadores anteriormente, há mesas, bancos e um pouco de lixo, mas é bem mocoseado entre as árvores.

Arrasto o caiaque até uma parte mais elevada, longe da margem, mas também do acampamento.

A barraca chegou sequinha, apesar da chuva, enrolada que estava na lona plástica. Beleza!

Pego o mapa e tento me situar; a única certeza é de que ainda não passei pela foz do rio Camaquã, mas acho que estou muito próximo.

Agora são 19:23 h, escrevo à luz de vela, um silêncio quebrado apenas pelas marolas da Lagoa e dos pingos que, ocasionalmente, escorrem das folhas e batem na lona da barraca.

Estou seco e não está muito frio, acho que vou dormir sem tremer esta noite. Que bom!

Foram 5:30 h remando quase direto e estou cansado. Parece que a viagem começou agora; é completamente diferente viajar sem reboque. Andei todo o dia no contra vento e com calmaria, mas o avanço do caiaque foi satisfatório.

 

 

15/08/2000    Terça-feira

Bom dia conseguiu falar com o Paulo e a Helena, apesar do fraco sinal. Não está chovendo e dormi muito bem, sem tremer.

Perto da barraca encontro um crânio de capivara pela metade, mas com os enormes incisivos. Vou levar como “recuerdo”.

Arrumo as coisas mais cedo e parto às 9:05 h. A exemplo de ontem, a água está cristalina, meio esverdeada, parece mar. Ontem passei por uma parte rasa, com 1,80 m e podia ver o fundo nitidamente, parecia que o caiaque estava no ar!

O vento, um SW fraco e favorável, me convence a içar a vela e vou ao curso 90-110 graus NNE e tiro uma reta com o último ponto da costa que posso ver a boreste.

Está meio frio, mas vai esquentando; vejo a costa ao longe e o vento vai aumentando de intensidade. Resolvo encostar depois de 2 h, parando exatamente na foz do rio Camaquã.

Droga pensei que já tivesse passado da foz... Pelo menos agora eu tenho certeza da minha localização em relação com o mapa.

Foram só uns dez min e resolvo prosseguir para aproveitar o vento favorável. Como o leme está funcionando bem, posso recolher o remo, manter o curso com os pés e comer meu almoço enquanto o caiaque vai em frente, rumo à ponta do Vitoriano.

Como tirei uma reta em direção ao último ponto da costa, estou, na real, há mais de duas horas de remo em relação à margem.

 

TEMPESTADE!

Tudo bem, nada de anormal, apenas o vento começa a aumentar demais, as ondas crescem, um pressentimento ruim vai tomando conta de mim e resolvo olhar para trás.

 

-          Lagoa dos Patos, sua traiçoeira!

 

O horizonte atrás de mim está num tom quase roxo, nuvens passam rápidas escondendo o sol esporadicamente enquanto o pior não chega.

E agora? Não tenho como escapar estou muito longe da margem...

Puxa vida, eu sempre cuidei para não ficar nessa situação no inverno...

-          Se o caiaque virar aqui, acho que não vou resistir por mais de duas horas nesse gelo...DROGA!

-          CALMA CARA! Mantém o curso em 90 graus (eu estava indo para NE), no sentido das ondas, convergindo para a margem; não deixa o caiaque mudar o curso de jeito nenhum. Assim tu sais dessa!

 

A ponta do Vitoriano, para onde me dirigia, ficava mais à direita, mas a prioridade é ficar vivo e buscar abrigo; nessa ordem.

Para isso, o caiaque não pode virar de jeito nenhum, ninguém vai me ajudar a não ser eu mesmo.

Puxo o capuz do casaco sobre a cabeça e não sinto muito o vento que desvia nele, vindo pela popa. Para ir mais rápido, deixei a vela içada a todo pano. Ela já está molhada pelos primeiros pingos da chuva.

O tempo parece não passar, a costa continua distante e o vento está numa intensidade de forte a fortíssimo; pior, não tenho mais as mínimas condições de tentar arriar a vela, agora é cada um por si.

A vela parece que vai rasgar e o mastro ameaça entortar.

-          CHEGOU!

Chuva de rajadas batendo no capuz por trás da cabeça e me deixando quase surdo, como a vela está na proa, a força do vento empurra o bico do caiaque para baixo das ondas enormes e ele vai mergulhando, de bico, até as águas passarem por cima da mochila da proa, para meu espanto.

De repente, o bico emerge, o caiaque expulsa as águas para os lados e ganha uma velocidade tão forte que chega a jogar meu corpo para trás, até que entra de bico na onda da frente e enterra de novo. Ao mesmo tempo em que ele trava, as ondas que vem pela popa invadem o caiaque por trás até se chocarem nas minhas costas e desviam para os lados.

Minha única função agora é não deixar, de jeito nenhum, o caiaque virar, nem mudar de direção.

Lembrei dos meus amigos de farra do segundo grau quando, certa vez, seguíamos de carro, velozmente, por uma estrada de terra, querendo tirá-lo do chão a cada subida; era uma estrada cheia de lombadas e curvas acentuadas. Nós íamos cantando:

 

-          Se essa porra não virar, olê, olê, olá... Eu chego lá!

 

No final dessa estória o carro levantou vôo e quando aterrizou havia uma curva para a esquerda e, fomos derrapando estrada afora e pelo meio de um banhado até parar ao lado de um canal. Só quando a poeira baixou foi que vimos que as duas rodas dianteiras estavam no ar...

 

Ë uma luta para manter o curso, pois minhas inimigas (as ondas) querem virar o caiaque de lado para engoli-lo, mas não farão isto sem luta... Suas bugras!

Passa a primeira hora e a costa está mais perto.

 

-          É isso aí, cara! Agüenta só mais uma hora!

A coisa está praticamente incontrolável.

 

EXPERIÊNCIA ANTERIOR

De tempestades aqui na Lagoa, já tenho muita experiência.

Há 16 anos fui salvar o Júlio, meu companheiro de viagem que estava no caiaque, de uma tempestade que vi se aproximando.

Se ele virasse com o caiaque, não conseguiria desvirá-lo e voltar para dentro na confusão das ondas, ainda mais que era um caiaque fechado.

 Eu estava de windsurf e imaginei que, se chegasse até ele, poderíamos amarrar uma embarcação ao lado da outra; assim daria para suportar a tempestade fora d’água, até calmar... E seguir depois.

Acontece que ele já havia ido para a beira e eu não percebi, pois a última vez que o vira, ele estava mais afastado da costa, há uns quatro ou 5 km de mim, difícil de precisar, pois o caiaque é difícil de se ver de longe, só os remos, quando o reflexo deles aparece.

Fui direto para um ponto há 5 km da costa e lá a tempestade me pegou; praticamente voei junto com a vela do windsurf quando violenta rajada de vento me arrancou da prancha e fiquei preso a vela, pelo trapézio feito com um galho. Bebi muita água preso por baixo da vela, foi um sufoco!

Para resumir, fiquei 5 h amarrado à prancha, rezando Pai Nosso e Ave Maria sem parar enquanto as ondas passavam por cima de mim. Só me salvei, porque não suportava mais o frio e consegui trocar as velas em plena tempestade. Daí fui me orientando pelas estrelas e, mais tarde pelas luzes de Arambaré e a primeira coisa que ouvi foi o padre da igreja dizendo no alto-falante:

- GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS!

Fosse no inverno, como agora, não teria resistido por causa do frio.

Já estou com dor nos ombros pelo esforço feito com os remos para impedir o caiaque de virar ou mudar a rota.

Com uma violência total e incomum, fui me aproximando do mato de eucalipto que usei como referência para o curso e ponto de possível acampamento.

A vela esticadíssima e um mar violento nas águas rasas, aliado à velocidade impressionante, me deixavam preocupado em como chegar na margem sem deixar quebrar nada, pois estava longe de terminar a viagem.

 

-          E na beira, como é que faço?

-          Entra de bico mesmo! Azar!

-          Mulheres e crianças primeiro!

-          Preparem-se para a abordagem!

 

Duas, três, quatro ondas ferozes passam por cima do caiaque, mas a tripulação não deixou que ele virasse de lado para elas e emborcasse. Entramos em alta velocidade e de bico na areia, onde eu pulo rápido e o puxo mais para cima, que loucura!

Um barulho ensurdecedor de ondas ferozes, vendaval e árvores que balançam perigosamente, algumas já cairam, não sei se foi agora. Foram duas horas de sufoco, mas parei cedo, são apenas 13 h.

Aquela frente escura passa por cima como uma nave alienígena gigantesca e se desloca para o norte, mas o vento SW cavalar e as ondas furiosas permanecem.

Resolvo explorar o local e tento ir, a pé, pela margem, até o Pontal do Vitoriano. Quero verificar se falta muito para chegar lá. Descobri que faltam menos de 2 km; do outro lado estaria à reversa do vento e talvez pudesse ter prosseguido. DROGA!

 

-          CALMA SEU BOSTA! Quer estragar o equipamento ou terminar a viagem?

 

É verdade, tenho que parar com essa mania de: “hoje tenho de fazer tantos km”.

Isso é besteira! Tudo tem o seu tempo.

Aqui, quem manda é a natureza e só é possível dizer três coisas:

-          Sim senhor! Não senhor! Quero morrer!

É só isso que os recrutas podiam falar no Grupamento de Fuzileiros Navais, em Rio Grande, nos meus tempos de serviço militar na Marinha do Brasil.

Montei acampamento bem mocoseado entre as árvores; coloquei as roupas de neoprene para secar, fiz um mingau, escrevo o diário (17:29 h) e já estou aqui na barraca, em terra firme, seco e abrigado.

Assim tem que ser, amanhã será outro dia. Não foi hoje!

O vento diminuiu um pouco, mas ainda está forte e as ondas estouram sem parar.

Aqui é assim, tu estás numa bela calmaria, a Lagoa, espelhada, só falta ter uns patinhos, nada mais bucólico; de repente, ela se transforma num monstro devorador de gente. Brinca com ela...

O que já morreu de gente assim... Até mesmo os pescadores profissionais são surpreendidos e o preço da distração, a mais das vezes, é a morte...

Aqui perto há vários ninhos de cocotas, alguns caíram com os vendavais, eles são enormes e pesados, devem ter uns 15 kg e são formados por milhares de gravetos. A entrada é na parte inferior, ele deve abrigar bem os filhotes contra os predadores e do vento.

Este mato vai até a margem e muitas árvores tiveram suas raízes expostas pela força das águas que removeram a terra que ali havia.

Estou acampado sobre as fundações de uma antiga casa, há campos mais para o interior e muitos capões de mata nativa, aqui do lado tem bergamoteiras e laranjeiras, além dos eucaliptos, que são muito ruidosos em dias de vendaval; faz o dia parecer pior do que realmente é!

O tempo está instável, mas vamos ver; a temperatura caiu de 18 para 12 graus em questão de horas, mas ainda está bom em relação ao frio que já passei. Isso garante uma noite de sono normal, sem tremer.

A roupa de neoprene já está seca e vai por baixo do saco de dormir; o travesseiro faço com o colete, plásticos e uma camiseta.

É isso aí brody, já tenho alguns créditos na poupança (são todos os km ou milhas náuticas que já fiz).

 

FOGO DE CHÃO

Resolvi fazer um fogo de chão para me aquecer, fui catar lenha que coloquei um pouco próximo da barraca. É a primeira vez que faço fogo nesta viagem, mas estava bom ali ao lado, observando as diferentes formas das chamas e o colorido do braseiro que se formava.

Achei estranha uma luz bem vermelha entre as árvores, lá próximo de onde estava o caiaque.

-          Ué! Será que tem gente?

Vou a direção da luz, por entre as árvores e ela parece dançar entre os galhos. Tri estranho!

Cara, era a lua cheia surgindo no horizonte (para leste). Que coisa linda!

Estava bem avermelhada, ficou laranja e, quando subiu no horizonte, ficou prateada.

Para completar o show, o reflexo prateado na Lagoa se estendia até o pontal do Vitoriano.

Agora o céu está estrelado, volto para perto do fogo e, depois, vou dormir.

 

16/08/2000     Quarta-feira

Bom dia é 7:30 h, faz seis graus, mas vai esquentar; vou tomar o mingau (com dez colheradas agora, antes eram seis) e partir.

Arrumei tudo e parti às 9:40 h, rumo ao Pontal do Vitoriano, aonde cheguei em 40 min. É um local típico daqui, bancos de areia, que se estendem por até 30 km em direção do centro da Lagoa dos Patos, apontam para o leste e são tomados por centenas de gaivotas pequenas e brancas que ficam na areia, de frente para o vento.  A costa oeste da Lagoa parece ser em forma de três ou quatro meias luas gigantes, os extremos são formados pelos pontais e bancos de areia (perigosíssimos para os navegantes) que se estendem por dezenas de quilômetros, para leste.

As gaivotas nem se importaram com minha presença, mesmo quando me aproximei mais, para tirar algumas fotos. Que lugar diferente!

Resolvo seguir em frente, tocando direto no rumo NNE, entre 30 e 40 graus, antes do pontal eram entre 80 e 90 graus, mais para leste.

O vento está de través, mas fraco, o que me deixa a vontade para seguir afastado da costa; o dia quase não apresenta nuvens e nada aparece no horizonte.

Passo por algumas tartarugas que mergulham bem rápido com minha aproximação. Uma delas, mais desavisada, emerge bem ao lado do caiaque e não me vê a princípio. Levou um baita susto e mergulhou rapidinho!

 

PERDA DO REMO RESERVA

Já estou remando há duas horas quando o vento parece ficar de través, quase de popa. Resolvo tirar o mastro para desenrolar a vela (ele é apenas encaixado), mas não é fácil, pois o caiaque quase vira quando eu desloco o corpo para a proa tentando sacar o mastro. É uma função ali no meio e não percebi que o remo reserva (que estava sobre o volume da barraca na popa) se desprendeu.

Só fui perceber sua falta depois de uns dez min da retirada do mastro, tentei refazer a rota no contravento, mas nem sinal, já era !

Isto aconteceu ao largo, quase defronte ao moinho do IRGA, onde há uma enorme torre que funciona, também como um ponto notável; isto a uns 2 km da margem; agora tenho que cuidar em dobro do remo, senão...

Não conseguia sequer manter o curso em 30 graus e por isto arriei a vela, tirei o mastro de novo e enrolei-a; foi pura perda de tempo (e do remo reserva).

 

MAIS UMA BRIGA  COM A LAGOA

Bueno, o vento foi aumentando de intensidade e de proa; ruim, porque eu estava há duas horas da margem (que nem ontem) e as ondas contrárias começaram a me massacrar...

 

-          INFERNO!

 Ondas, aliadas ao vento contra... Eu remando já há quatro horas...

Além disto, meu curso era direto para o pontal de Dna. Helena, praticamente direto contra as ondas.

 

-          Aí não dá, “meu amigo!”.

-          Vai te ralar, cara. Quer acabar comigo? Remando contra essas ondas por mais umas quatro horas?

-          Fica querendo cortar caminho e eu que me ralo?

-          Marca já o telhado daquela casa, mais a bombordo (que fica mais próximo) e deu! Só para ir até lá serão mais duas horas neste mar.

 

Cara, o esforço para avançar resultou em uma dor entre os ombros, além do pescoço. Para “melhorar”, o vento contra ficou fortíssimo, de rajadas.

 

-          Merda, vento desgraçado!

-          Tu vai ver só se eu vou me mixar para ti!

 

Aí me deu aquela raiva assassina, acompanhada de loucura galopante que me fazia remar com mais força ainda. 

De raiva, direcionava o caiaque para ele bater de frente contra as ondas que trancavam na mochila da proa, só para mostrar para as cornas que eu estava longe de me dobrar.

Só assim mesmo! E depois aparece um panaca dizendo que é fácil... Vou ter que me controlar para não dar um murro no sujeito.

Quantas vezes minha vida esteve por um fio? Pensa que estes km todos são feitos num estralar de dedos?

Tem que remar brody... E muito!

É vento, é tempestade, é frio, tem que ter coragem para remar longe da costa, arriscando-se à uma tempestade, tudo isto faz parte do jogo, mas não é fácil não!

Neste jogo, a minha vida faz parte da aposta...

Mais uma hora e meia de duríssimas remadas se passou e o vento só fazia aumentar, parecia querer me deter, me matar no cansaço:

-          Isso seu desgraçado, aumenta que eu vou te mostrar que não estou morto!

E, de propósito, remava raivosamente contra as ondas para ouvir os estouros das ondas na proa, como se o caiaque estivesse esbofeteando-as ao invés de, na realidade, elas estarem me massacrando cada vez mais.

-          Toma maldita e tu também e mais tu... Desgraçadas, vento corno!

Agora parecia que não queriam que eu chegasse no ponto que marquei na costa e isso me irritou mais ainda, virou questão de honra.

-          Pragas! Vocês vão ver como vou chegar EXATAMENTE no ponto onde quero e nem vocês nem esse vento filho da... Vão me impedir.

Ao longe, um pouco à esquerda de onde eu estava me dirigindo, vi pescadores acampados fazendo sinais frenéticos para que eu fosse na direção em que eles estavam; seria mais fácil ir naquela direção, onde havia um arroio que daria excelente abrigo; talvez até pudesse comer uma comida de verdade com eles.

Eles pareciam muito preocupados ao ver minha luta contra as ondas que tentavam me afastar da costa. Devia ser interessante olhar de onde eles estavam, ver aquele caiaquinho na luta incessante e desigual.

Eu não poderia desistir, pois se parasse, as ondas me levariam embora, mas esse gostinho as cornas não iriam ter. Eu estava tão alucinado com essa luta insana que resolvi não ir na direção dos pescadores, mas sim na direção do telhado que marquei lá de longe.

Mudar o rumo soava, para mim, como “pedir o penico” e isso não; antes morrer do que baixar a cabeça e pedir arrêgo!

Depois de seis horas, consegui chegar EXATAMENTE no telhado onde eu queria, era a fazenda Flor da Praia. Dali, fui paralelo à costa, ainda no contra vento, mas com menos ondas, até chegar numa frondosa figueira que vi um pouco adiante, eram 15:40 h.

Puxei o barco, armei a barraca sob a figueira, (ir adiante é besteira, com esse vento contra) num local onde o mato rasteiro atacava este vento assassino.

A figueira é linda, há bancos de madeira onde estendo as roupas para secar e agora (17:20 h) estou deitado na lona, no gramado ao lado da figueira, à reversa do vento, tomando sol e comendo chocolate.

 

-          Não é fácil brody, o cara tem que ser meio (?) louco para agüentar o tranco e ficar nessa loucura diária, sozinho, por 30 ou mais dias.

-          Agora... ajoelhou... Tem que rezar!

 

Achei um crânio enorme de capivara, mas é muito grande para levar; além disso, alguém pode me acusar de ter caçado o bicho.

Dei uma explorada pelo local e encontrei dois homens, depois mais um (Ricardo), um mulato gordo e simpático daquela casa ao lado (fazenda Flor da Praia), muito linda, por sinal.

Vários barcos de pescadores vão para aquele canal, de onde os caras faziam sinais para mim, ali seria um bom abrigo, mas aqui também está ótimo.

A saída do arroio foi modificada, daí minha dúvida inicial, antes a saída era a leste da fazenda, agora é a oeste. Subi na figueira e tirei uma foto do por do sol ali de cima, com as barbas de pau em primeiro plano.

Devido ao cansaço, acabei dormindo mais cedo e despertei às 21 h. Tentei falar com o Paulo, mas o sinal é fraco. Tomo a decisão de subir na figueira para ver se melhorava a recepção; até que não foi difícil subir no escuro. Ali do alto consegui falar com o Paulo e a mãe; mais tarde falei com a Marlene, esposa do Aldo, com o França, Pixaim e com seu Vanderlei, pai do Rojas.

Foi legal ter conversado com os amigos; enquanto eu falava do alto da figueira, vi um gambá ou zorrilho se encaminhar para o lado da barraca cheirando em volta, o metido!

 

17/08/2000         Quinta-feira

Bom dia, são 7:27 h, o dia está claro, algum vento e faz 12 graus; consegui dormir bem. Já fiz o mingau e agora vou arrumar as coisas.

O valente bujão de gás acabou (usei-o desde a Lagoa Mirim). Junto com o mingau, vou tomando três pílulas de vitaminas que os tios Rojas e Bello me deram, lá em Floripa. E aí brody Rojas? Teu pai falou que estavas em Gramado.

Ontem a noite, foi muito legal observar a lua cheia do alto da figueira e seu belo reflexo prateado sobre a Lagoa; afora isto, foi o entardecer entre as barbas de pau e, depois, as estrelas, pelo mesmo ângulo... É, são por estes pequenos detalhes que tudo vale à pena!

Parti às 8:55 h, depois de conversar com um rapaz que manobrava um trator.

Um fraco vento de través, quase popa, me convence a parar e içar a vela; ele aumentou e vai me ajudando no curso entre 80 e 90 graus E.

A margem vai desfilando lindíssimas matas nativas a menos de 5 m da beira enquanto navego paralelo a ela, rumo à ponta de Dna. Maria, uns 15 km adiante. Espero chegar no pontal em cerca de três horas.

Nas duas primeiras horas o vento até ajudou, mas ainda estou desconfiado deste maledeto que quase me matou no cansaço, ontem. Depois deu uma calmada e foi aumentando até eu chegar no pontal de areias grossas e amareladas, desprovidas de vegetação, com pequenas passagens entre os bancos de areia.

Bati algumas fotos com o tripé e resolvi seguir, pois o vento estava rondando e eu não sabia para que lado iria ficar.

Agora o curso era entre 330 a 340 graus NNW, paralelo à meia lua gigante, que é a costa da Lagoa dos Patos, quando um vento forte chegou de repente, de rajadas, me jogando para longe da margem enquanto eu estava parado ao largo, comendo o salamito.

-          Seu traiçoeiro! Pensa que confio em ti? Seu des...

Peguei a remar com vigor em direção da costa, pois parecia que eu não me aproximava nunca.

Tri estranho, pois o vento era terral, mas as grandes ondulações vinham do centro da Lagoa e quebravam na praia. Dá para entender?

Na dúvida se viria temporal, segui próximo da margem, pois neste vento traiçoeiro não confio nada.

Após 5 h remando, comecei a me sentir fraco, o ombro esquerdo incômodo e os pés congelados. Resolvi, depois de mais uma hora, fazer um mix na margem e esticar as pernas, que alívio!

ATAQUE DE FÚRIA GALOPANTE

Fui adiante e resolvi içar a vela, mas ela “conseguiu” se enroscar numa pequena corda que deixei pendurada num puxador do mastro, quase fora do meu alcance.

 

-          Cara! Que coisa irritante! A corna da corda conseguiu enroscar na adriça da vela e dar um nó... Não acredito, deve haver um ente ruim a bordo querendo me desestabilizar... e conseguiu!

-          MERDA ! Como é que tu aí, apenas pendurada ao vento, consegue enroscar na outra e dar um nó?

-          CORNA!

 

Se eu forço a adriça para erguer a vela a outra estica e a segura como a mão de um monstro do mar que quer me prejudicar, dificultando tudo o que faço.

 Pior... Depois de eu estar a bordo há seis horas...

 

-          GRRRRRRRRRRRRR!

 

Já não sou eu que estou ali, é um possuído que pegou a faca sem pensar e atacou aquela “mão do monstro” (a corda enroscada).

Ele esfaqueia, corta em pedacinhos e morde, seguidas vezes, o que sobrou da corda... Até que ela não se mexa mais!

Depois joga os pedaços da vítima para as ondas, longe de seu barco.

Quando saio do transe, percebo que estou à deriva e que o vento assassino levou o único remo (que tenho agora), para longe do barco. Além de tudo, está me afastando da costa...

 

-          É BRINCADEIRA! GRRRRRRRRRRRRRRRRRR!

 

Sou obrigado a remar com as mãos, cego pela raiva, sem perceber que se não alcançar aquele maldito remo eu posso morrer... Além do mais, ele pode afundar antes que eu o alcance. Para piorar, o corno ficou no contravento, difícil de alcançar.

Agora, remando com as mãos, não deixei de lembrar de mim na cadeira de rodas, fazendo o mesmo movimento...

-          Êta vida gozada!

Aí eu caio na real e começo a rir sozinho lá no meio... Às gargalhadas, até recuperar o remo!

-          Continua brincando, seu DOIDO!

-          Nós ainda vamos morrer...

 

RUMO A ARAMBARÉ

Resolvi seguir mais afastado ainda da costa, sempre com um forte vento SW empurrando o caiaque no curso NNE.

Junto à margem, paralelo a ela, havia uma estrada de terra onde os carros passavam rápidos, muitos estavam parados ao lado de uma ponte sobre um canal que desaguava na Lagoa. Ali havia um pontal de terra, na verdade um banco de areia, onde alguns se aventuravam para lançar as linhas de pesca.

Cumprimentei o pessoal e fui em frente, agora com o vento bem mais forte e gelado, acompanhado das ondas que vinham de través e iam, furiosas, rebentar na praia, ruim para desembarcar.

Menos mal que na última parada eu colocara o casaco impermeável e não sentia o vento e nem as ondas que respingavam.  

Fui chegando em Arambaré, sem saber se parava na city ou não, porque, apesar do forte vento e das ondas, tudo estava sob controle e eu poderia seguir por mais uma hora, mas acamparia no mato. Por outro lado, poderia ver gente, comprar batatas fritas e outras guloseimas, além do que estava há SETE HORAS remando...

Fui passando pelo local onde acampara em 84 e 85 e vi, adiante dali, a sinalização para a barra de um arroio (onde era o antigo camping). Estava muito difícil para desembarcar naquela rebentação furiosa e se eu entrasse naquele canal, poderia encostar na margem ou achar um local para acampar em uma mata nativa, abrigado do vento.

O caiaque venceu facilmente as ondas que nos empurravam pela pequena barra enquanto eu arriava a vela e a prendia.

Que surpresa agradável! Um clube náutico cheio de barcos à vela atracados num trapiche ao lado da sede.

Vou me aproximando e me convenço de vez que estou ficando louco:

 

VISÃO DO PARAISO

-          Vocês acreditariam que, com todo o vento e esse frio eu vi uma FÊMEA de biquíni, fazendo um ensaio fotográfico num daqueles veleiros?

-          Nem eu!

-          Fico admirando aquela visão do paraíso e nem penso em me beliscar, pode ser só um sonho...

-          Perturbou minha alma de pecador...

-          Quem sabe eu já morri?

 

Vou me aproximando enquanto ela é filmada e fotografada, nem parece sentir o frio...

 

-          Deve ser o fogo interno !

 

São 16:40 h, falo com o Senhor Arlon; mais tarde chega o Sr. Mário, comodoro do Clube Náutico Arambaré, acompanhado do Sr. Breno, tudo gente boa e hospitaleira!

Depois chegou um amigo camarada e gozador, é o Sr. Pedro, que pergunta se alguém tem corrente:

-          Para amarrar o louco!

 

Estamos ali, de papo, quando chegam uns oficiais da Marinha do Brasil, da Capitania dos Portos, com um forte sotaque carioca, chiando sem parar... Descubro que são de Santa Catarina...

O Sr. Breno foi muito legal, me serve um delicioso café quente e consegue um baita colchão. Vou dormir num banheiro desativado do camping, mas com um belo colchão macio por baixo. Beleza!

Saí, já noite pelas ruas de Arambaré, notável por suas figueiras centenárias, muitas delas às margens da Lagoa até chegar em dois supermercados onde comprei mais velas, pão, todinho e... Batatas fritas, YES!

Agora são 20:42 h, deve estar fazendo uns 10 graus, mas aqui no banheiro está legal. Estou me dando ao luxo de escrever iluminado por luz elétrica, que chique! Aproveito uma tomada e carrego as duas baterias do celular.

Já falei com o Paulo, mas a bateria dele acabou. Ouço barulho de curicacas (assim eram chamadas no pantanal) e corujas.

O clube está situado ao lado de uma ponte sobre o arroio que entrei; é uma ponte estreita e peculiar, pois só permite a passagem de veículos num sentido de cada vez.

 

MORTE

-          É brody, a coisa aqui não é fácil mesmo! O Sr. Breno, o Mário e o Pedro contaram a estória de dois caras que estavam viajando de caiaque aqui na Lagoa.

-          Um deles desapareceu... Não acharam nem o cara nem o caiaque.

-          Quando dá uma tempestade por aqui, o negócio é violento! Isto só reforça a sorte que tive naquela tempestade que fiquei cinco horas, de noite, amarrado na prancha.

-          Marcou bobeira, dançou...

-          Eu vou em frente, rumo ao meu destino, se for para morrer, não será sem luta. Esta Lagoa vai encontrar um guerreiro à sua altura.

-          Aqui, o furo é mais embaixo!

-          Já estou ficando fraco, mas na hora da peleia tiro forças sabe lá de onde, bebo um litro de adrenalina e não fujo da luta; ao contrário.

-          Buenas noches!

 

18/08/2000    Sexta-feira

Bom dia é 6:20 h e aqui no banheiro (prefiro chamar de suíte) está fazendo 10 graus; vou me preparar psicologicamente para colocar a roupa de neoprene. Era azul, mas já está ficando verde de limo, pois não seca nunca; é uma das coisas mais chatas que faço todos os dias.

O Sr. Breno ficou de fazer um chimarrão antes de eu partir, por isto fiquei esperando por ele depois de arrumar o barco. Ele chegou às 8 h, mas não havia erva para o mate, então, sem mais delongas me fui porteira afora às 8:20 h. Eu pensei em seguir costeando, mas havia um vento fraco na direção do Pontal de Sto. Antônio, uns 15 km adiante, isto demandaria em três horas de viagem.

Logo que saí do arroio, um pouco adiante, mais à esquerda, havia uma réplica de uma das caravelas de Pedro Álvares Cabral, em homenagem aos 500 anos de sua chegada ao Brasil. O detalhe é que a caravela estava pintada de branco... Havia três velas com a cruz de Malta desenhada em cada uma delas.

Fui me afastando da margem, tirando uma reta para o pontal, nem me preocupei muito com as dificuldades que passei antes ou mesmo com a estória dos caras que morreram... Não posso me dar ao luxo de ficar com medo de balas perdidas se estou no meio do tiroteio e não tenho como sair.

Se eu ficar com medo, tenho que controlá-lo e seguir em frente, caso contrário, vou virar “aparador de junco” (costeando a margem sem correr riscos) e levarei dois anos para fazer o percurso.

Navegando longe da margem, com pouco vento e ondas, tudo fica monótono, o cara vai remando automaticamente, entra em alfa e liga o piloto automático. É nestas horas que o espírito deixa o corpo fazendo força e vai viajando por estradas da mente que me levam ao futuro, passado, presente e fantasia. É muito irado!

 

LENDAS E FOLCLORE

Minha distração era seguir com o caiaque sobre uma trilha de espumas formadas na direção do vento ou mesmo olhar a costa ao longe e lembrar das estórias de tesouros enterrados em panelas ao pé das frondosas figueiras por padres jesuítas que fugiam dos portugueses que queriam escravizar os índios das missões.

Eram as estórias sobre as famosas “panelas de ouro!”.

Basta uma roda de chimarrão ao pé de um fogo de chão, ou mesmo um papo tranqüilo com os moradores do local e ficarás sabendo de várias lendas locais e históricas sobre as redondezas da Lagoa.

 

ASSOMBRAÇÃO

O Júlio passou por uma experiência de “assombração” bem próximo daqui que foi a coisa mais terrível e hilária ao mesmo tempo. Depois que um temporal separou ele, o Teixeira e eu, ficou cada um por si, nenhum de nós sabia onde estava o outro.

O Teixeira já havia chego em Arambaré, antes da tempestade, eu estava no meio da Lagoa, em plena tempestade, amarrado à prancha e rezando sem parar.

O Júlio desembarcara numa região deserta, cheia de juncos e dunas. Seguiu pelos campos, a pé, até que encontrou uma fazenda onde os peões lhe deram de comer.

Preocupado com os colegas, ele recusou o convite para pousar por ali e voltou pelos campos e dunas, já noite, tentando encontrar seu caiaque.

Quando já estava próximo do barco, uma “coisa” de uns dois metros, cabeça triangular e fosforescente começou a “deslizar” sobre as dunas em sua direção, dando berros estridentes...

O Júlio “riscou” em direção do caiaque, berrando igual à coisa. Acho que entrou no caiaque de barriga mesmo e remou com as mãos...

 

Quando me dou conta, estou no centro da Lagoa dos Patos, sozinho, rindo sem parar, que nem uma besta, das recordações para onde o espírito me levou. Os olhos se encheram de lágrimas...

Essa estória de ficar sozinho... Na verdade não existe!

Tu nunca estás só, as recordações da vida passada, família e amigos, são tão fortes que parecem de verdade, até mesmo as fantasias criadas em sonhos consomem estes momentos de calmaria e introspecção.

E assim fui indo até chegar no Pontal de Sto. Antônio, três horas depois. Desci para esticar as pernas, bater umas fotos e planejar o que fazer.

Resolvi tirar outra reta, desta vez até o Pontal de Tapes, mais perigoso ainda, pois se soprasse um vento do quadrante NW ou NE, eu iria ficar em maus lençóis, seria jogado direto para o centro da Lagoa...

 

Como eu dizia quando viajei de bicicleta pela América do Sul:

 

-          Posso apostar diversas vezes com a vida, vou ganhar infinitas vezes; terei de recompensa as imagens, as viagens, aventuras sem fim, a sensação de ter vivido intensamente cada minuto.

-          A vida não vai, simplesmente passar entre meus dedos, vou queimá-la até a última ponta...

-          Quando perder será uma única vez!

Vocês já viram um jogo onde a estatística é tão favorável para com o apostador?

 

Vento quase parando, super estranho, mas não dava mais para vacilar.

Parti ao meio-dia, remando forte, pois o vento parando podia significar mudança de direção, altamente perigoso para a travessia.

Já fiz travessias maiores que esta de uns 12 km, mas o fato é que seriam 12 km se eu conseguisse chegar no pontal.

Mais à direita eu não encontraria nada, seriam cerca de setenta km até a outra margem. O certo era entrar um pouco mais à esquerda, dentro do saco de Tapes, para fazer a travessia com segurança.

Acontece que eu tenho um espírito ruim que vive pondo meu corpo à prova e que sempre quer me ver em perigo, depois diz: - Te vira, cara!  E nos tira daqui...

Após uma hora de remo, o vento começa a surgir, fica de través, quase contra...

-          Xi! Rema rápido cara, acho que vamos nos ferrar!

Os músculos se retesam, os dentes trincados, olhar fixo no Pontal, como se lá fosse o paraíso e o horizonte longínquo o inferno! O cara nunca fica sem aquela dose de adrenalina.

E dá-lhe remo.

Já esgotado, depois de duas horas cheguei nos juncos do pontal, onde havia grandes bóias de navegação.

-          Foi arriscado, mas fazer o quê?

Andei mais 45 min, contornando os juncos, e parei para descansar e esticar as pernas, estou exausto!

Estas duas horas de remada forte consumiram o resto de minhas forças.

Descansei um pouco e retornei para o caiaque, remando burocraticamente, sem força alguma.

Fui passando ao largo de um mato de pinus, mas eram árvores pequenas e o terreno era muito irregular (dunas) e afastado da margem. Parei mais duas vezes, mas os locais não eram bons para acampar.

Segui até um local só de dunas, onde não havia quase vegetação. Desci novamente e fui olhar a paisagem do alto das dunas. Que maravilha pude ver o saco de Tapes do outro lado do Pontal, pois neste ponto ele tem só uns dois km de largura; também pude ver a cidade de Tapes.

Voltei o olhar para onde eu me dirigia, uma costa plana, mas de margens com dunas e, mais adiante, tomada por plantações de pinus.

Havia um ponto, cerca de 8 a 10 km adiante (as árvores pareciam ser maiores), onde o mato terminava num pontal, praticamente direto na Lagoa.  Seria o ideal para amarrar o caiaque, ter abrigo contra o vento e com o terreno mais plano.

O vento parou totalmente e a Lagoa virou um espelho; peguei a remar com força para chegar lá ainda de dia, mas o esforço foi em vão, pois o tempo foi passando e o sol se pôs, às 18 h.

Cheguei no local às 18:10 h, QUASE DEZ HORAS REMANDO!

Mosquitos me cobriam enquanto, já no interior do mato de pinus, eu tentava armar a barraca no escuro. Ouço o latido de um graxaim (uma raposa) para interior. Sem o vento sobra um silêncio mortal por tudo, até a Lagoa está silenciosa.

Depois de armar a barraca, desço um barranco entre as árvores para prender o caiaque ali na beira, onde há umas malhas de argila cinza por dentro d’água.

Tentei contato com o Paulo, mas o sinal é fraco e nem dá para falar.

 

ESTAFA!

Agora são 21:22 h, já tomei a sopa reforçada com o miojo, comi caju (me dei de presente) e agora as ondas estão batendo forte. Fui até o caiaque, mas as ondas estão longe dele.

Desde que dobrei o pontal, já podia ver o morro da Formiga, a mais de 60 km dali... É lá o final da Lagoa dos Patos, a “foz” do Rio Guaíba, que alguns chamam de “lago”.

Quando chegarei lá?

Não sei, estou me sentindo fraco, extremamente cansado, com dor nos ombros... Acho que estou no fim!

Amanhã é outro dia.

NÃO TE ENTREGA COMPANHEIRO!

Boa noite!

 

 

19/08/2000       Sábado

Bom dia são seis h. Acordo com o barulho das ondas que estão pegando de frente cheguei a sonhar que as ondas tinham levado o caiaque.

Mesmo sem olhar a direção do vento nem as ondas, já disse para mim mesmo que não iria prosseguir. Depois fui lá fora e o vento não está tão forte assim, é o barulho nos pinus que faz com que pareça que o vento sopra mais forte do que realmente é, além disto, as ondas estão de través.

Deixei a roupa de neoprene secando, pendurada nos galhos e mesmo sem ela dormi super bem, pois o chão é forrado pelas folhas (?) dos pinus que isolam do frio que vem do chão. É super seco e isola do frio, além do que, este mato funciona como uma barreira contra o vento; aqui é muito bom!

Por isto, ontem, fiz este esforço danado para vir até aqui, pois eu sabia que um mato deste me daria abrigo contra o vento e o frio, além de ser macio, Valeu!

Esta experiência eu devo ao meu amigo Fernando, quando fomos, de bicicleta, até Cambará do Sul (três dias), para escalar o canyon da Fortaleza em pleno inverno. Descemos o canyon com bicicletas e tudo durante oito dias, até chegarmos em S. Catarina, depois retornamos pela beira do mar até Cidreira e dali até Porto Alegre (mais três dias), foi outra baita aventura. Na ida, o frio estava de “repartir o bigode” e nós acampamos dentro de um mato de pinus como este e descobrimos que era excelente contra o frio. Pena que neste tipo de mato quase nada da fauna se crie, tão pouco outras espécies de plantas. É um verdadeiro deserto verde e marrom!

Estou muitíssimo cansado, hoje vou só na manha, até onde der...

Não tá fácil, quando o cara vai chegando, vai passando a tensão e o corpo  “véio” relaxa. Vou diminuir o ritmo para dar condições de remar até o final.

Falei com o Paulo, mas o sinal é muito ruim.

 

São 9:13 h, resolvi ficar deitado mais um pouco, isto é quase uma estafa! Não tenho ânimo para partir, o local onde estou é excelente, além disto o vento e as ondas aumentaram ainda mais.

Anteontem dois caças da FAB passaram na direção do mar... É legal de vê-los passar.

A temperatura está agradável e talvez eu faça uma pequena excursão até o lado de dentro deste pontal que aqui deve ter, no máximo, uns 3 km de largura.

 

PASSEIO TERRESTRE NO PONTAL DE TAPES

Está decidido! Fui lá na beira, o vento é totalmente contra e forte. Cansado como estou, seguir em frente será apenas para me ferrar.

Vou preparar a mochila e fazer uma excursão até o lado de dentro, que aqui deve ficar quase que de frente para Tapes. Levo o celular, máquina fotográfica, comida (incluindo uma copa deliciosa que o brody Paulo me deu em S. Lourenço) e o resto fica aqui.

Amanhã já estarei melhor e me mando bem cedo.

Vai ser legal (o passeio), marco um curso na bússola e me vou por dentro do mato.

 

Agora são 11:57 h, caminhei não mais do que 40 min e cheguei do outro lado do pontal; Tapes está a 310 graus NNW, estou sentado em uma árvore caída na beira da Lagoa, sem aquele barulho enorme de ondas e vento que há do outro lado, de onde vim. Apenas o som suave do vento na copa dos pinheiros.

A cidade é visível daqui, está há uns 10 ou 15 km, do outro lado desta enseada; há uma torre de celular quase na beira e o sinal é excelente.

Consegui falar bem com a Helena e o Paulo; depois falei com a mãe (o véio Jorge ficou na cadeira de balanço, com a gata no colo, e nem me deu um alô). Ligo para Floripa, mas o Rojas não atende, tá difícil de falar com o brody. Ligo para Biguaçú e falo com o brody França (Cida, dos índios) e a bateria acaba.

Resolvo almoçar a copa que o Paulo me deu (deliciosa) mais um pedaço de queijo defumado, além do chocolate.

Vindo para cá, não pude deixar de relembrar quando eu, o Júlio e o Teixeira cruzamos, por terra, este pontal, pois daquela vez acampamos no camping de Tapes, bem no fim da enseada e para contornar o pontal seriam cerca de 70 ou mais km.

Eu segui arrastando a prancha como uma maca indígena e o Júlio e o Teixeira transportavam os caiaques nos ombros até uns 200 m, voltavam pegavam o outro e assim iam revezando enquanto eu seguia devagar. Gastamos um dia de viagem nesta função, mas chegamos do outro lado. O Teixeira se realizou neste dia:

-          Cem passos, trocar ombro. Mais cem passos, trocar ombro!

É, o velho sargento... Deve estar com uns 70 anos, espero que esteja com aquela saúde de ferro.

Lá do outro lado outra tempestade me pegou e o Júlio (O Teixeira já havia chego em Tapes e foi, de ônibus até Porto Alegre, ver sua família) e eu acabamos chegando em Tapes (no camping) durante a noite e dormi na praia, embaixo da vela, ao lado da prancha enquanto chovia. Ossos do ofício!

Fiquei pensando no cara que morreu e não acharam... Deve ter afundado junto com o caiaque, para não encontrarem nenhum dos dois.

 

-          Capitão Kirk para tripulação:

-          Mantenham velocidade DOBLA UM!

-          Eu, mais Dr. Nelson e Senhor Spock vamos ser teletransportados para investigar se há vida neste planeta estranho!

-          Mas é o pontal de Tapes, senhor!

-          Marujo! Quando quiser opinião, eu ordeno!

-          Sim, senhor!

-          OK! Vamos!

-          (Dr. Nelson)   Ui! Senhor, este caminho é inóspito; só tem estas árvores esquisitas, o chão marrom e nenhuma vida! Ali tem um banhado para cruzar...

-          (Spock)            Doutor, não se deixe levar pelas emoções, é lógico que há vida aqui!

-          (Kirk)               Vamos à direção daquele banhado, vi algo se mexendo...

                                 Preparem os frazers!

 

É isso aí, ainda estou sentado na árvore, hoje é Sábado, mas acho que o banho já era, pois o vento nordeste aumentou e filho do meu pai não vai entrar nesta água gelada, muito menos com vento.

A margem é tomada por juncos e árvores nativas debruçadas sobre a areia, escuto siriris e bem-te-vis. Há um gavião pousado no alto de um pinheiro e uma garça passeia entre os juncos, pescando pequenos peixes. Uma pomba do mato faz uhú, uhú ao lado; fora isto, é um silêncio só.

Depois de uma hora de contemplação, auto análise, avaliação dos prós e contras, crio coragem e resolvo tomar banho!

Tem que ser macho! Que água gelada! BRRRR...

 

Enquanto isto no FORTE APACHE:

 

-          Sargento O’Hara!

-          Sim, senhor!

-          Mande Rusty e Rin-tin-tin se abrigarem, vamos ser atacados! Acho que a nação Sioux inteira vai nos atacar!

-          De que lado eles virão, senhor?

-          Do NORDESTE (o vento)!

-          IH!  Cortaram nossa rota para o forte da PONTA DA FORMIGA. Isto decreta nossa sorte, ninguém poderá nos salvar!

-          Mande mensageiros.

-          Já mandei quatro, senhor. Todos mortos!

-          Só há um entre nós que poderá chegar lá...

-          Quem, senhor?

-          O SUPER TENENTE ISSI! Mas não gosto muito dele...

-          Porque, senhor?

-          Por que matou três dos nossos melhores homens num duelo a faca...

-          Aqueles homens não prestavam, eram assassinos cruéis! Degolavam mulheres e crianças...

-          Mas eram eles que nós mandávamos para as missões mais difíceis. Vá chamá-lo!

-          Sim, senhor!

-          TENENTE ISSI... Ops! Desculpe senhor, não sabia que estava acompanhado...

-          SENHOR! A filha do Comandante...

... E o nosso herói colocando mais uma marca em sua faca (mais uma virgem abatida):

-          Fale logo Sargento!

-          O Capitão quer que o senhor enfrente a nação Sioux que vem do nordeste e parta para o forte da Ponta da Formiga!

-          Afirmativo, positivo e operante! Diga que parto amanhã cedo!

-          Quatro já morreram, senhor!

-          Esse é o meu serviço Sargento. Vá cuidar do seu !

-          SIM, SENHOR!

E o Sargento sai dali, orgulhoso de ter um taura gaúcho, macho e gremista lutando a seu lado...

 

REFLEXÕES

É isso aí, no caminho de volta achei uma caixa plástica, dessas tipo engradado de bebidas. Estou utilizando-a como banco, recostado no pinheiro onde agora escrevo, já de volta ao acampamento.

À minha direita está o caiaque, um pouco abaixo do barranco. As ondas estão mais fracas, assim como o vento.

Atrás de mim está a barraca. É um final de tarde tranqüilo... Como toda véspera de uma batalha!

Amanhã me mando para a Ponta da Formiga, já de banho tomado e um pouco mais descansado. Ela está há uns 40 ou 50 km daqui. Já vejo, inclusive, o Morro de Itapoã, do outro lado, onde está o farol...

Os dois montes determinam a divisão entre a Lagoa dos Patos e o Rio Guaíba e parecem duas sentinelas dos pampas para quem entra ou sai da Lagoa dos Patos.

O dia foi de sol; eu e meus soldados estamos prontos para a batalha de amanhã...

Será apenas mais uma!

Eu, no peito, em vez de medalhas, trago cicatrizes de batalhas; brutas e feias, foi o que sobrou para mim...

Sabe? Isso tudo está terminando, mas fui marcado a ferro e a fogo nesta campanha.

As coisas lindas que vi e vivi, as distâncias infinitas que meus olhos me mostraram, as dezenas de batalhas de vida e morte por que passei em todas as viagens de minha vida... Jamais vou esquecer!

Cada viagem foi assim, por maior ou menor duração, estão todas vivas dentro de mim. Esta foi minha quarta viagem por estas paragens e vivi as três anteriores de novo.

Serão fantasmas do passado?

Sei lá! As tempestades, frio, companheiros, nada morre!

Tudo é para sempre na memória!

Lembrei de pessoas que já morreram e foi como se elas estivessem vivas. Parece uma fita de vídeo que se repete, repete...

Por exemplo: O tio Nei (já falecido); catei imagens de quando eu tinha quatro anos, na minha infância na Avenida Padre Cacique. Ele apareceu de lambreta e me levou para dar uma volta.

Lembrei dele, de jipe lá no Caí; do meu irmão Paulo e de nossa infância atribulada; do seu Pineda, meu treinador de remo (também falecido) gritando nas competições de remo:

-          Vamos lá gurizada. Só faltam 100 m, força no remo, não puxem no saco, vamos...

Tio Laerte de botas Vulcabrás caçando perdizes no Caí, Claudio, Milico, Clóvis, Luiz, praia do Cassino e por aí afora...

A gente se dá conta que, na verdade, tudo segue pulsando na memória, apenas nós é que mudamos um pouco.

Tudo volta a viver quando os olhos brilham...

A vida é gozada!

São 15:30 h, um casal de pombos do mato (que são muito ariscos) está pousado quase a meu lado e fica me observando.

 

20/08/2000   Domingo        Quarta semana

Bom dia é 6:24 h, está mais quente, 13 graus. Já fiz o mingau e vou me preparando. Percebo que tem ondas na Lagoa, mas não sei de que lado elas vêm, nem a direção do vento, mas isto não importa mais, pois tenho que chegar no Forte da Ponta da Formiga até amanhã ou meus companheiros irão morrer de ansiedade.

É isso aí, vamos nessa companheiros.

-          No está muerto quien pelea!

 

Voltando ao Forte Apache:

-          Senhor! Ops! Acompanhado de novo...

-          Sargento O’Hara! Pare de espionar e fale!

-          Eu trouxe o Cabo Graxaim para acompanhá-lo...

(Cabo Graxaim) – Ei, Tenente Issi, o senhor não é o famoso Homem de Virgínia?

-          Soube que depois que o senhor esteve por lá, a cidade trocou de nome.

-          Sabe, Sargento? Não sobrou nenhuma virgem por lá...

-          Agora a cidade de Virgínia, que fica próxima de Tombstone (a cidade dos pistoleiros), mudou de nome...

-          E como se chama agora?

-          Não tenho certeza, sargento, mas parece que o nome ficou sendo Sharonstone...

-          Sargento, o Cabo Graxaim está dispensado! Ele fala demais!

-          Mas quem vai acompanhá-lo?

-          O renegado FACA PRETA, companheiro de outras aventuras e REMO, aquele Cabo maluco que diz que foi criado por uma loba (parece que tem um irmão na Itália, Rômulo), inclusive ele perdeu um primo (o remo reserva) dois dias atrás, caiu do barco, mas a tripulação não conseguiu encontrá-lo...

-          Ah! Senhor, peço que leve consigo a senhorita BÚSSOLA ANDREWS.

-          Ela pode orientá-lo no caminho e quer sair deste forte.

-          Como ela é?

-          Bonita, loura, uma pele muito clara, meio acinzentada, olhos azuis, seios...

-          CHEGA! Está bem, ela vai!

Sempre tem uma mocinha na estória...

-          Senhor, como vai furar o cerco?

-          TOURO EM PÉ e seus guerreiros estão sabendo que irá outro mensageiro. Vou até aquela curva do rio e navegaremos, de caiaque, pelo LAGO SEM FIM.

-          MEU DEUS! Ninguém voltou de lá para contar a estória. Dizem que, quando menos se espera, tempestades e ondas gigantes esmagam e engolem os viajantes...

-          É um plano muito ousado...   QUE DEUS OS ACOMPANHE!

 

 Nossos amigos partem às 7:55 h e logo de saída topam com lontras brincando n’água. Os Navajos (pescadores) não gostam muito das lontras, pois elas capturam os peixes presos em suas redes e só comem a cabeça, principalmente as traíras, que são os melhores peixes.

 

Tudo parece tranqüilo, mas o Tenente Issi parece muito cansado e Remo pergunta:

-          O que houve?

-          Fiquei DEZ HORAS com a filha do Comandante (remando) e agora estou exausto!

Após duas horas eles param para descansar à sombra de uma árvore caída e seca ao lado da margem.

 

Que lugar bonito! Tirei fotos do local, com as árvores em primeiro plano.

Após mais duas horas de remo encosto de novo e o mato acabou, inicia uma paisagem de dunas e campos desolados e sem abrigo daqui para frente. Vou seguindo um pouco afastado da costa e vejo, mais para o fundo, barcos de pescadores revisando suas redes demarcadas por bandeirolas pretas amarradas em pequenas bóias. É um local bom de pesca, pois há muitas redes nesta região.

Estou navegando no local onde a Lagoa é mais larga, de 70 a 80 km até o outro lado. Eu pretendia atravessar a Lagoa bem aqui, mas o tempo é curto. Quem sabe noutra oportunidade?

Pela média que estou fazendo agora, seriam três dias ininterruptos no caiaque até o outro lado... É mole?

Como acontece quando o dia está calmo e longe de tudo, escuto o lamento do Chorona (AHHHHHHH) que parece brotar das profundezas, como uma alma penada que vagueia sob as águas, procurando companhia...

 

-          Eu hein? Nem pensar!

-          Deu pra ti, baixo astral! Vou pra Porto Alegre, Tchau!

 

Um barco de pescadores curiosos se aproxima (Cavalo de Aço). Eles ficam apavorados ao saberem de onde venho e por eu ter suportado este rigoroso inverno e as tempestades. Foi bom ter conversado ali com eles.

Logo vão embora, mas uns dez minutos adiante retornam, querem me ajudar dando carona que eu recuso;

-          Então leva um peixe para assares depois!

O tenente agradece, mas já tem sua ração certa e que não necessita de fogo para comer; além disto, os Sioux podem ver a fumaça.

 Remo pergunta:

-          O que tem para comermos, senhor?

-          O de sempre, queijo e salamito!

-          O que você acha, FACA PRETA?

-          UGH!

São quase trinta dias comendo isto!

BÚSSOLA ANDREWS está sentada de frente para o Tenente Issi, como sempre muito calada e tranqüila. Ele fixa o olhar em seus belos olhos azuis e cílios brancos...

-          Como faz para se orientar, senhorita?

-          Atração magnética, Tenente!

 

Após mais 1:40 h, nossos amigos aportam junto a um solitário eucalipto que teima em crescer bem na margem, onde só há dunas sem fim. Funciona como um ponto notável e é chamado por todos de “pinheirinho”.

Dali já é possível ver a Ilha do Barba Negra e o Morro de Itapoã.

Na viagem de Wind, cheguei aqui, já noite, e dormi sob uns arbustos nas dunas, sem armar a barraca; deitei nas dunas em pelo, pois estava muito cansado. Durante a noite, um gambá pulou por cima de mim e levou um susto igual ao meu. Ficamos nos olhando no escuro e depois ele foi embora...

 

REMO se afasta do grupo e é feito prisioneiro.

O tenente Issi vai salvá-lo, mas é feito prisioneiro também.

É um bando de renegados da tribo BIGUÁ (mergulhões):

-          Para ganhar a liberdade, cara-barbuda terá que lutar, à faca, com nosso mais forte guerreiro!

REMO não se contém e começa a rir:

-          O Tenente é muito bom na faca...

Os índios, desconfiados, resolvem trocar a prova.

-          REMO, você fala demais, agora terei que enfrentar a prova máxima!

-          Prova máxima, senhor?

-          Sim, grande guerreiro terá que transar com a índia mais feia da tribo e deixar ela cansada...

-          REMO, se passar desta, acerto as contas com você depois.

No final da prova, extenuado, o Tenente pergunta:

-          Era virgem? Então vou colocar três marcas na faca, eu me superei!

 

Depois do pinheirinho, fui em direção das dunas gigantes, já com o final de tarde se anunciando. Não me lembro mais exatamente onde era o local mais próximo das dunas. Resolvo seguir em frente, em busca de um local para acampar. Há muito junco na margem e uma enseada adiante.

Vejo muitos barcos de pesca reunidos mais ao fundo onde há uma pequena casa de madeira. Resolvo seguir na direção do acampamento deles que me olham com curiosidade. Peço informações e recebo o convite para ficar por aqui mesmo.

Eram 18:10, estou remando há MAIS DE DEZ HORAS...

A casinha tem um televisor e fico sabendo de um submarino russo (KURSKY) que explodiu, está em águas profundas e tem sobreviventes que não foram e não serão resgatados...

O televisor funciona com bateria de carro, agora passa um programa chamado NO LIMITE, mas é um limite bem soft, abobrinhas para dar audiência...

O local aqui fica situado ao pé das dunas gigantes e se chama “panelinha”, muito quente no verão e frio no inverno.

Os amigos me servem um excelente arroz de carreteiro com carne de capivara, capivara assada e frita, uma delícia. Depois de tudo, vinho, chimarrão e café...

Nem vou precisar armar a barraca, basta estender o saco de dormir sobre uma lona por aqui mesmo, assim posso partir mais rápido amanhã.

 

NO CAMPO DE BATALHA – OS MORTOS

O papo flui ao natural e fiquei sabendo de mais detalhes dos caras que morreram, foi bem aqui em frente... Além deles, na mesma tempestade virou um barco de pescadores e seus quatro ocupantes também morreram.

Os caras do caiaque não conheciam estas bandas e, após passar a Ponta da Formiga, eles deveriam ter contornado o morro e não seguir direto há umas quatro horas de remo da costa, mas isso é fácil de falar agora.  Na verdade foi uma fatalidade!

Como eu já disse em outras oportunidades: - Às vezes, o caminho é o das estrelas...

O tempo está super estranho e parece que prenuncia uma tempestade.

Edevir, Paulo, Nelson, Osmar e Gilmar são de Guaíba e muito legais, como todos os pescadores. Esta comida reforçada, o vinho e tudo mais foi uma baita mão na roda e me ajudou demais neste momento de extremo cansaço físico.

Sou muito agradecido a eles.

Deito sobre a lona, assistindo TV. Os amigos se ajeitam em suas camas e a casinha vira uma sinfonia de roncos, peidos e tosse, enquanto a TV permanece ligada em um volume considerado alto para mim que sempre dormi só, nos banhados.

Tudo bem, eu sempre me adapto às circunstâncias quando estou nas viagens.

Para completar, um rato sobe para a lona onde estou, mas minha faca preta o afugentou.

 

21/08/2000   Segunda-feira

Despertamos cedo, tomamos um delicioso café, vou dar um rolê para conhecer os arredores. Aproveito para encher o meu galão com água daqui. A água é retirada de um buraco cavado na areia, é barrenta, mas, segundo eles, “filtra” ao passar pela areia.

Tudo bem, se não mata, engorda...

Amanheceu com uma neblina terrível; da Lagoa só se vê até os primeiros juncos, os próximos da beira. Dali para frente há uma barreira impenetrável que nem os olhos mais persistentes conseguem transpor.

Os pescadores que iriam sair bem cedo desistiram, é praticamente impossível de se orientar, além de muito perigoso.

Pergunto a eles, qual a direção provável da Ponta da Formiga. Eles apontam para o branco da neblina e eu marco na bússola; dá, aproximadamente 90 graus, Leste.

Inevitavelmente surgem estórias macabras entre eles, mas às 8:40 h nosso herói resolve partir, agradecendo a todos pela maravilhosa acolhida, foram todos muito bons.

Todos estão receosos, mas nosso herói não tem medo e vai ao rumo de seu destino.

 

-          É muita coragem. Ele, grande guerreiro!

 

Os remos deslocam pequenos redemoinhos que vão girando na água até sumir na neblina. Já saí dos juncos e a sensação de ir em frente é a de que estou indo em direção do centro da Lagoa, longe de tudo e todos.

Sempre fica a dúvida se não estou indo muito para fora, em direção dos 70 km sem nada.

Tudo começa a ficar automático, as remadas, a água passando suave ao lado e o espírito no compasso de uma espera enervante.

Nosso herói não desgruda os olhos de BÚSSOLA ANDREWS (que já está ficando apaixonada) e fica com os olhos doendo na tentativa de ver alguma coisa, mas nada se vê a mais de 50 m.

É só a neblina e o silêncio ao redor...

Deve ser homenagem aos que aqui morreram, é campo de batalha...

Quem sabe o tempo não estava assim no dia que eles se foram? De repente uma aragem e logo uma violenta tempestade.

É inevitável estar no mesmo local (com o mesmo tipo de barco) onde os caras morreram, imaginando o que possa ter ocorrido...

Este silêncio enervante, a neblina que não deixa ver nada, a possibilidade de estar indo para lugar nenhum, o tempo passando... Deixa qualquer um em estado de alerta máximo, aquela sensação de perigo de vida, quando todos os sentidos e músculos estão preparados para situações extremas. Vira questão de sobrevivência e revela o lado animal, o de querer permanecer vivo...

Ainda por cima tem a estória dos caras que vão morrer no submarino russo, tudo envolvendo água.

Uma hora se passou, tudo como dantes na terra de Abrantes.

Duas horas...  Só o silêncio ao redor. REMO e FACA PRETA não movem um músculo sequer.

Começo a ficar impaciente, será que eu estava tão longe ou longe estou ficando?

-          Aí brody, ou tu te manténs no curso que determinou, ou tu vais de um lado para outro sem achar coisa nenhuma.

-          Se bem que, se não estiveres no curso correto, irás te ferrar igualmente...

Sabe aquele momento de dúvida quando tu achas que entrou numa fria, num beco sem saída?

-          Lembra quando tu estavas num porto seguro e deixou a empolgação e a ansiedade de chegar superarem a experiência e o bom senso?

-          Pois é cara, olha onde nós estamos, dá para ver?

-          Estamos há três horas nesta neblina, arriscando o pescoço porque tu não quiseste esperar, como fizeram os experientes pescadores...

-          Deu!

-          Chega, seu espírito bunda mole.

-          Primeiro tu me coloca nestas situações, depois me vem com esse papo de “profeta do acontecido”.

-          Agora fica aqui, junto comigo, e enfrenta essa situação!

-          Estás certo, tens razão!

-          Estou contigo e não abro.

-          Então mantém o curso que “nós” determinamos; vou assumir contigo o “pepino”.

-          Então tudo bem, meu “fiel” espírito!

-          Vou manter este curso; se vamos morrer, vamos morrer em uma única direção e nada de ficar alterando o curso.

Já se passaram eternas três horas e meia, há um princípio de motim a bordo quando, de repente, na frente de nossos amigos surge a face oeste do morro da Ponta da Formiga.

Parece um toque de mágica, a neblina parece que ergue seu véu, como uma noiva prestes a se entregar para seu amado, vencida que foi pelos nossos heróis.

Os guerreiros Sioux só agora podem ver os mensageiros da vitória, mas não há nada mais que possam fazer,

TOURO EM PÉ  ficou esperando em vão.

Diz a lenda, que por causa desta longa espera, passou a se chamar de  TOURO SENTADO!

A nação Sioux ainda joga algumas flechas (vento contra), mas a vitória do TENENTE ISSI  é inevitável.

Assim os nossos heróis, depois de quatro horas, chegam no Forte da Ponta da Formiga.

-          ABRAM OS PORTÕES!

 

Muita festa, ele fala dali com seus velhos amigos, Tenente Paulo e Tenente Rojas.

 

O RIO GUAÍBA

A PONTA DA FORMIGA parece não ter fim, é formada por pedras e muitas figueiras debruçadas sobre as águas, além disto, parece um jardim tropical com variados tipos de bromélias, parasitas, barbas-de-pau, flores de diversas cores, dentre elas a mais linda é a das corticeiras, alaranjada e com tons de vermelho.

Há muitos lagartos tomando sol nas enormes lajes, além de tartarugas, garças e pássaros silvestres.

Subi numa encosta de rochas tomadas por musgos que mais pareciam ser um pequeno campo gramado, muito lindo.

Dali posso ver o outro lado, onde tem Itapoã, o farol, a ilha das Pombas, ilha do Junco e belíssimas praias entre as rochas do morro de Itapoã. Vou até outra praia encravada nas pedras que avançam pela água, é lindo demais! Nesse local há uma sepultura que encontrei na viagem de 1984 e que ainda permanece em bom estado. Há uma lenda de que aqui, mais para cima do morro, escondidas na mata, existem restos de construções jesuítas e que se podem observar rastros de enormes carretas, além das inevitáveis estórias sobre tesouros escondidos... As panelas de ouro, cheias de moedas.

Sopra um vento forte agora, mas estou bem mocoseado na praia da tumba.

Pois é, descansei mais de uma hora, comi chocolate e parti às 13:10 h rumo à Ilhota, observando enormes navios passarem próximos do farol de Itapoã, entre a ilha do Junco e o continente.

Em 1983, minha primeira viagem de windsurf, ainda sem nem saber controlar a prancha, entrei na Lagoa dos Patos com vento sul e acabei sendo jogado sobre as pedras, na praia do Tigre, próxima ao farol.

Ralei-me todo, rasgou a vela, rachou a prancha e acabei desistindo. Levei tudo para Porto Alegre e, depois de arrumar tudo resolvi retornar para o mesmo ponto e continuar a viagem, que durou mais de quarenta dias até Rio Grande pela margem leste (aliás, todos estes trajetos que eu fiz, tanto de windsurf quanto de caiaque, eu fui o primeiro a fazê-los), foi a vitória da perseverança, como esta viagem está sendo.

Após duas horas de remo, paro para fazer um alto técnico e esticar as pernas.

O forte vento contra forma muitas marolas que chacoalham o caiaque sem parar, felizmente, está diminuindo.

O local onde descansei e o mesmo onde passei o maior sufoco na viagem de Wind, no inverno de 1986 (Chuí - Porto Alegre margem oeste); estava muito escuro. Extenuado, não conseguia me aproximar da margem e achei que ia morrer.

Agora o final de tarde é agradável, está iniciando uma brisa do quadrante sul. Abro a vela do caiaque e vou seguindo paralelo à margem oeste, procurando local para acampar mais cedo, pois não quero fazer uma travessia de 15 km num final de tarde, é faxina para 3 a 4 horas e prefiro fazer isto mais descansado.

Às 16:40 h (8 h de viagem) encontro um excelente local de acampamento. Está abrigado do vento, dentro de um matinho nativo onde há uma espécie de rancho com bancos e mesas deixados pelos pescadores que, eventualmente, vêm aqui para passar a noite.

Depois de armar a barraca, comer um punhado de caju vou caminhar pela margem, explorando o local. Estou de frente para a ilha do Junco e a NW do farol, agora iluminado pelos últimos raios de sol do dia.

Já estava longe da barraca quando resolvi buscar a máquina fotográfica e voltei correndo para sacar uma foto de um tronco parcialmente submerso nas águas espelhadas e que formava um arco surrealista, pois não dava par precisar onde era o ponto que ele tocava na água, tal a perfeição do reflexo. Bati a foto dele com o sol se pondo entre o arco, foi show!

 

ARANHA

Agora são 20:56 h, escutei um barulho próximo da barraca, peguei a faca e a lanterna e fui para a rua verificar o que se passava. Nisto, toca o telefone. É o Rojas, entro e deixo a porta da barraca aberta. Enquanto falo com ele, uma enorme aranha, quase transparente, com as quelíceras e olhos pretos está no meu joelho...

Cara foi de arrepiar! Peguei a faca e dei uma baita porrada na aranha e a esmaguei, chegou a doer, mas eu não podia vacilar; ela era muito rápida, podia se esconder aqui dentro e me picar durante a noite. Que baita aranha!

Depois falei com o brody Paulo e ele diz que, em Floripa, também vou encontrar muitas aranhas...

Buenas noches, adeus LAGOA, já posso dizer que estou no Rio Guaíba...

 

22/08/2000   Terça-feira      Trigésimo dia

Bom dia é 5:20 h, como estava muito cansado ontem e não jantei, estou preparando a sopa e o miojo agora de madrugada.

 Fui na rua, o céu está estrelado e tudo parece parado... É a calmaria antes da tempestade, pois a previsão é de chuva para hoje.

Tudo bem estou preparado para o que der e vier, mas o certo é que nós estaremos...

Com o GRÊMIO, onde o GRÊMIO estiver!

Brincadeirinha, he, he, he!

Tenho que me preparar para a travessia, aí vai Gomes Jardim, com cerca de sessenta Farrapos, atravessar o Guaíba e tomar Porto Alegre (início da Revolução Farroupilha - 1835-1845). É isso aí, estou revivendo os antepassados, como eles fizeram ao partir, próximo de Guaíba, onde há uma placa que encontrei na primeira viagem de Wind, em 1983.

Sabiás-larangeira cantam agora, ao amanhecer e as aracuãs fazem uma algazarra enorme.

Vou seguir por esta margem ou faço a travessia aqui da Ponta Negra para a ilha do Chico Manuel? Sei lá, na hora decido, tenho, primeiro, que saber a direção do vento.

Parti às 8:55 h, o nascer do sol foi chocrível (chocante mais incrível), frontal à barraca, o reflexo dourado vinha desde a outra margem, a uns 15 km, deslizava sobre as águas, corria sobre a areia e se infiltrava entre a mata e as barbas-de pau abrindo os raios, cobrindo tudo com uma onda de calor... Bah, tri legal!

 

-          Barrica!

-          Sim, capitão Gancho!

-          Ice a vela!

 

É isso aí, em vez de costear, resolvi traçar uma reta direto para a ilha do Chico Manoel, a uns 15 ou mais km. Nunca fizera isto, mas se eu andei com este caiaque no mar, há mais de 20 km da costa lá no Rio De Janeiro, vou arrepiar aqui? Nem pensar!

Há uma neblina forte que apagou o sol, mas eu já tinha determinado meu azimute (curso) na bússola antes de a ilha sumir na neblina, além do mais, havia uma leve aragem soprando a favor do meu destino.

Que Bueno, vento favorável no último dia!

Uma hora depois estou preparando a operação mix lá no meio.

-          Mas como?

-          Elementar, meu caro Watson!

-          Encoste-se àquela bóia de sinalização do canal (onde passam os imensos navios cargueiros). Melhor encostar-se à de boreste (a verde) que é maior e parece ser fixada no leito do rio, a de bombordo (vermelha) é menor, não tem ponto de apoio e flutua.

-          Mas senhor, há uma tribo de índios Biguás naquela bóia!

-          Avise que o SUPER TENENTE ISSI está se aproximando!

Dito e feito, todos bateram no pé, digo, asas e se foram, deixando a bóia branca de dejetos e restos de peixe. Tudo bem, num momento de necessidade e sem opções, não se pode ter frescura!

Nossos heróis atracam na bóia e resolvem almoçar por ali mesmo, é só a ração básica de queijo e salamito. O tenente oferece para o renegado FACA PRETA:

-          Quer?

-          UGH!

Após um descanso de 15 min e algumas fotos, nossos heróis prosseguem a jornada.

 

Os deuses estão furiosos:

 

-          NETUNO!

-          Sim ODIM!

-          Você não ia mandar tubarões atacá-lo?

-          Minha jurisdição é só no mar...

-          Não é possível, já tiramos o braço dele, quebramos suas pernas, jogamos gasolina por cima... E ninguém tinha um mísero fósforo!

-          Onde estava URANO (Deus do Fogo)?

-          Ainda por cima recolocaram tudo no lugar e agora ele está aí de novo... Nos desafiando!

-          VALKYRIAS vão avisá-lo de que vai morrer!

-          Já fizemos várias aparições para avisá-lo, ODIM.

-          Mas ele pensa que é um sonho erótico e que somos virgens... Quis nos agarrar!

-          THOR, meu filho!  Mande raios, trovões e tempestades geladas, por favor!

-          Já mandei várias!

-          Quase gastei meu martelo de tanto provocar relâmpagos...

-          Ele se agarra e amarra naqueles barcos como uma craca.

-          Mandei o vento gelado, destrui a barraca dele, deixei-o encharcado e congelado no meio do sagrado campo de batalha (banhado).

-          Achei que estava acabado, ele falou em desistir.

-          Eu acreditei...

-          Burro!

-           Não percebeu que ele estava nos enganando?

-          Esses gaúchos não desistem nunca...

-          Você não se lembra da Guerra dos Farrapos?

-          Ficaram lutando por dez anos!

-          É verdade...

-          Digam para MERCÚRIO conduzir a sombra da morte do Tenente Issi para o reino de HADES (Deus do mundo subterrâneo). Que ele não volte de lá!

-          Já tentei ODIN, mas THOR enviou tantas tempestades e neblina para confundi-lo, ficou tão escuro que... Não formou uma mísera sombra para ser conduzida para HADES...

-          Aquele trapalhão do ZÉFIRO (Deus do vento); era para mandar vento contra e manda a favor...

-          Desse jeito ele vai chegar!

-          COITADO!

-          Acho-o um “GATO”!

-          Além de ser corajoso, enfrenta tudo sozinho...

-          Ora VÊNUS, “menas”...

-          Ë verdade ODIN, ele não lembra ULISSES?

-          Acho que é um semideus...

 

Enquanto os deuses (e deusas) vão discutindo, nosso herói completa a travessia e chega na ilha do Chico Manoel, depois de 3:20 h de travessia, desde a Ponta Negra (Mato Alto), fazendo o curso 310-330 graus NNW.

Por coincidência, nas três viagens anteriores eu passei por esta ilha sempre ao final do dia e ali obtive pouso e abrigo dos zeladores, inclusive há um livro de registro onde deixei uma mensagem por ocasião da primeira viagem...

A ilha pertence ao Veleiros do Sul, um poderoso iate clube aqui de Porto Alegre. Atualmente, ela é cuidada pelo senhor Varli, que veio me atender e mostrar as dependências da sede, que é muito bem cuidada.

Há um dormitório com banheiro para os viajantes, um enorme galpão de costaneiras com mesas para churrascos, lindíssimas figueiras à beira d’água, com bancos para curtir o visual e refletir sobre a beleza da vida... Há, também, um enorme trapiche onde os barcos atracam.

Como seu Varli interrompera seu almoço e o vento favorável aumentou, resolvi seguir meu caminho, agradecendo a hospitalidade.

-          Barrica!

-          Sim senhor!

-          Içar vela!

O vento está bem forte agora, em apenas uma hora chego na ponta do Arado (no alto da colina fica a belíssima sede da fazenda dos Calda Júnior, toda branca). Há uma pequena ilha ali no pontal, tem uma casa e uma rampa de concreto por onde é içado o barco deles. O local está cheio de rochas submersas, algumas afloram sobre a linha d’água, muitas estão submersas e, perigosamente, pouco abaixo da superfície; dá para percebê-las pelo modo diferente como as ondas quebram ao passar sobre elas.

Na velocidade que estou, pode quebrar meu caiaque, a poucas horas de chegar...

Depois de trinta dias de sufoco? Nem pensar!

 

-          Kowalski!

-          Sim capitão?

-          Chame o Almirante Nelson aqui para a ponte de comando!

-          O que houve capitão?

-          Minas, senhor (rochas submersas). Milhares delas!

-          Como vamos chegar na ponta do Arado? É o único local onde poderemos parar antes da próxima travessia e ligar para o comando geral pedindo novas instruções.

Mesmo com toda sua experiência, após várias manobras arriscadas, eles raspam em uma mina.

A explosão não teve impacto direto, mas jogou nossos heróis para todos os lados do Náutilus.

-          Luzes de emergência!

-          Levem os feridos para a enfermaria.

-          Capitão! Relatório de avarias!

-          Infiltração de água no flutuador de bombordo, avarias no leme, um remo perdido, pequenos arranhões no casco, luvas furadas...

-          A infiltração é irrelevante, o remo era de reserva.

-          Consertem o leme com durepoxi, é excelente...

-          Disparar torpedo 1!

-          Disparar torpedo 2!

-          Alvo próximo da praia atingido senhor!

-          Área limpa!

Em uma manobra arriscada, o almirante Nelson consegue se aproximar da praia, na brecha entre duas minas.

-          SENSACIONAL, senhor!

-          Kowalski, não puxe o saco!

-          Apenas diga que foi... BRILHANTE!

 

O local está repleto de lixo plástico, vestígios de acampamentos, árvores secas na beira e matas nativas ao fundo. Escuto pessoas, o lugar tem todo o jeito de ser “barra pesada”, pego minha faca e ando pelo local em uma missão de reconhecimento. O campo está repleto de minas terrestres (lixo); aproveito para comer um chocolate.

 

-          Cabo traga o rádio (celular)!

-          Sim senhor!

-          Aqui fala Tenente Issi; estabelecemos uma cabeça de praia na ponta do Arado!

-          Estamos entrincheirados, mas sob fogo cerrado (lixo)!

-          O local está cercado, mas não estabelecemos contato visual com o inimigo!

-          Quem está no comando geral?

-          Tenente Paulo prossiga!

-          O vento está favorável, a previsão é de chuva!

-          O melhor é sair daqui antes que nos descubram...

-          Acho que é possível antecipar o ataque para hoje mesmo, senhor!

-          NEGATIVO! Mantenha posição, estou preparando uma equipe de apoio, mas só será possível amanhã.

-          Câmbio e desligo!

 

O Tenente Issi não concorda, mas seu treinamento de fuzileiro naval o obriga a acatar as ordens, mesmo com o risco da própria vida e de sua tripulação.

Resolvo adentrar na mata e encontro enormes figueiras, várias trilhas, além de ruínas de antigas construções.

Resolvo treinar com a faca e cravo, com força, todas as vezes que a arremesso contra uma pequena árvore; a faca crava bem fundo e tenho que fazer força para retirá-la.

-          Senhor, encontramos uma fruta, parece laranja, mas é limão...

-          Comam, evita o escorbuto!

Impaciente, após treinar muito e perceber que seria um risco desnecessário para sua equipe acampar naquele local, resolve entrar em contato novamente com o comando:

-          Quem fala?

-          Cabo Mauro!

-          Chame o tenente Paulo!

-          Sim senhor!

-          Senhor, as condições para prosseguir são favoráveis, este local é perigoso, acho que vou estabelecer uma cabeça de praia na ponta Grossa,  umas duas a três horas daqui, em linha reta.

-          Vejo Belém Novo daqui, mais ao fundo desta imensa baía, talvez amanhã o ataque já não seja mais possível...

-          OK Tenente! Será que as lanchas de desembarque irão suportar estas ondas e o vento de rajadas?

-          É possível senhor!

-          Faço contato quando chegar na ponta Grossa!

-          Câmbio e desligo!

As ondas e o vento forte estão razoáveis, mas com vento de popa não existe o perigo de virar, Se, com este caiaque, suportei uma tempestade no mar, à noite... Se eu virar aqui, troco de nome!

Além da baía de Belém Novo, há outra baía mais à esquerda, para quem olha a praia de frente. Está bem longe, pois fiz uma reta, direto para a Ponta Grossa. Nunca fizera retas como as que estou fazendo, sempre fui um pouco mais próximo, mas um cara que enfrentou o mar duas vezes e quatro vezes a Lagoa dos Patos, não pode nem deve arrepiar aqui, apesar de vários soldados morrerem em combate nestas águas.

Após uma hora e meia, chego na Ponta Grossa. Posso ver a praia de Ipanema, o destino final, são trinta dias...

Recém é 16:50 horas!

 

-          RAPOSA DA LAGOA PARA COLUNA TORTA!

-          Fale!

-          Vamos ter que antecipar o ataque para hoje, já posso ver DUNQUERQUE!

-          Negativo, tenho compromissos...

-          Desculpe senhor...DÊ UM JEITO!

-          Estou com feridos a bordo. O ataque tem que ser hoje (dia D).

-          Você prepare sua equipe por terra e eu ataco por água.

 

Resolvo esperar o retorno do brody ali mesmo, mas não há local para colocar o caiaque, pois só tem rochas.

Coloco uns troncos e madeiras sobre as rochas e consigo arrastar o caiaque sobre as rochas, apoiado nos troncos. Depois subo pelas pedras e vou conversar com um pessoal que está pescando, super agradável, pois aqui estamos na reversa do vento e o sol começa sua descida na direção do horizonte.

Fico escrevendo o diário, fazendo hora até que o brody dispense seus pacientes (pô, hoje é um dia especial, além do quê, é bom tirar um pouco este cara de sua inflexível rotina), faça a “VIA CRUCIS” pelo trânsito de Porto Alegre para buscar a mãe e as crianças e venha até Ipanema, digo, DUNQUERQUE.

Sei que isto vai demorar, por isto, aproveito para curtir o por do sol dali das pedras, será o último show que presenciarei nesta maravilhosa viagem.

O sol já se pôs, acho que o brody já deve estar perto. Coloquei o celular no ombro, por baixo da roupa de neoprene, para ficar à mão e falar a qualquer momento se necessário for. Se virar o caiaque, perco o celular.

Vou me preparando para o ataque final. O caiaque desliza sobre os galhos e volta para o rio.

Onde eu parei, estava à reversa do vento, bastou me afastar do morro e um forte vento de SE empurrava favoravelmente.

Que beleza, vento a favor no último dia!

-          Barrica!

-          Sim senhor!

-          Içar vela!

Estou indo rápido demais, vou chegar na praia antes do brody. Aí não tem graça, será legal se o Gigi e a Gabi puderem ver o tio em ação. Estou na altura da Serraria:

-          Barrica!

-           Sim senhor!

-          Arriar vela!

-          Que saco!

-          O QUÊ FOI?

-          Nada senhor lembrei que tenho que cortar as unhas...

 

-          RAPOSA para COLUNA TORTA!

-          Estamos à deriva! Como está sendo o ataque por terra?

-          Não está! São milhares de soldados tentando chegar em suas trincheiras gradeadas (casas), polícia, bombeiros, pedintes e flanelinhas, além das sinaleiras “sincronizadas”. É um inferno!

-          OK! Ficarei à deriva, esperando novo contato, boa sorte!

 

NO  ESCURO

Pois é, a noite chegou, ficou frio, o vento e as ondas aumentaram.

Resolvo colocar as mangas na roupa de neoprene. De vez em quando uma onda bate no costado do caiaque e respinga água gelada, o que me irrita.

Aproveito estes últimos momentos e ligo para o tio Laerte, é legal esse esquema de celular!

Não é que o fresco vem me gozar, dizendo que eu “arrepiei” para cruzar a Lagoa?

Ninguém merece!

Já estou ficando impaciente, quando, às 19 h, já no breu da noite e de traseiro amassado faço novo contato com o brody:

-          RAPOSA para COLUNA!

-          E AÍ?

-          Já estou próximo da AABB, perto de Ipanema, pode prosseguir!

-          Que veículo está utilizando?

-          Um tanque SHERMANN (ÔMEGA SUPREMA)!

-          Bebe gasolina pra caramba, mas a tripulação acha confortável...

 

-          Içar vela!

-          Mas está escuro, cheio de ondas e vento, o barco está muito instável...

-          Posso cair no mar!

-          VIRE-SE

 

Enquanto isto, nossos aviadores:

-          Comandante, como vamos pousar? Nossos instrumentos estão avariados, só temos contato visual da região.

-          Onde será o ponto de ataque?

-          Quando chegar mais próximo, faça contato por rádio!

-          Vou seguir na direção daquelas luzes amarelas em linha (é a avenida Guaiba, que segue pela praia de Ipanema).

O tempo passa e nada de enxergar o local de ataque:

-          Comandante, como vamos pousar?

-          Não vamos...

-          Você esqueceu de que somos KAMIKAZES?

-          VAMOS ENTRAR DE BICO!

 

 

-          RAPOSA PARA COLUNA!

-          Dispare um sinalizador para que eu saiba onde vocês estão...

Luis, do jornal OI dispara o flash de sua câmera fotográfica. Descubro que eles estão um pouco mais a boreste e isto me obriga a pegar as ondas de través, que me respingam mais ainda. Já está bem frio:

-          OK! Você não pode disparar um sinalizador também? Não conseguimos vê-lo aqui da praia.

-          NEGATIVO! O sinalizador (lanterna) está preso na proa, eu não imaginava que desembarcaríamos durante a noite e agora não tenho como alcançá-lo, pois está muito instável com as ondas de través no escuro, tenho medo de virar o barco e detonar o rádio (celular).

-          Além disto, o inimigo poderá ver que está sendo atacado. Estou só a uns 500 metros, noventa graus com a praia, você não consegue me ver?

-          NEGATIVO!

-          Mas prossiga, pois estamos cansados de esperar e com frio...

-          E o inimigo?

-          Fugiu, quando soube que era o SUPER TENENTE ISSI que se aproximava. 

-          Então isto merece uma comemoração...

-          Já foi providenciada, será no castelo do REI JORGE!

Às 20 horas e alguma coisa nosso herói desembarca de bico na praia. O encontro das tropas foi efusivo.

Uma luz forte quase cega nossos amigos.

-          Não atire Tenente, é Luís, nosso correspondente de guerra (Repórter do jornal Oi).

A “bãe”, Gigi, Gabi, Helena e o brody Paulo...

Altos legal! Só!

Vamos no tanque SHERMANN pela cidade tomada por azuizinhos do PT até o castelo do REI JORGE.

Pegamos a vó Ati no caminho para casa.

Quando lá chegamos, somos recepcionados por três damas:

-          Quem são estas?

-          Ceci, Mari e Samira, cortesãs da corte!

 

... E para comemorar, nossos heróis tomam vinho em plena côrte do REI JORGE!

-          E o banquete?

-          Será na TÁVOLA  QUADRADA,  UMA  PIZZA  REDONDA.

 

 

 

                                                    THE END!

 

 

É isso aí, esta foi minha maneira de homenagear a todos que me ajudaram a viver de novo depois do acidente.

Qual a melhor maneira de agradecer?

VIVENDO A VIDA INTENSAMENTE, ATÉ A ÚLTIMA PONTA...

OBRIGADO!

 


Danilo,

 

Parece um sofrimento sem fim, mas é exatamente o contrário, pois só quem assiste um por de sol ou vislumbra uma revoada de pássaros ou animais das Lagoas gaúchas é que pode entender o verdadeiro significado.
Esse tipo de coisa vicia.
Infelizmente já passei dos quarenta, nas horas vagas sou dentista e amo a República do Rio Grande e sua história de lutas e batalhas.
Faço aventuras desde a infância, fiz inúmeras viagens de bicicleta pelo interior do Rio Grande, entre elas Caxias e Rio Grande.
Uma vez fui de bike para B.Aires via Montevideo e depois dei uma volta pela America do Sul, passando por Paraguay, Argentina, Chile, Peru (Macchu Picchu).
Foi uma barra muito pesada, tempo do Sendero Luminoso, traficantes, policiais corruptos, brigas de faca e o desespero para voltar para o Brasil via Rio Ucayali e Amazonas até Belém, de onde vim costeando o litoral até voltar para Porto Alegre, oito meses depois.
Minha última viagem de bicicleta foi com um amigo até o canyon Fortaleza onde descemos com cordas e bicicletas durante oito dias até Santa Catarina, dali retornamos pela beira do mar até Pinhal e depois Poa.
Muitas escaladas depois, iniciou a fase de Windsurf (1983) onde vislumbrei a possibilidade de viajar naquilo.
Eu e meu amigo resolvemos ir até Rio Grande via margem Leste.
Logo no segundo dia ele desistiu e eu, que não sabia andar direito, segui sozinho até naufragar nas pedras da praia do Tigre, foi horrível, mas consegui recuperar e arrumar o material e depois de quarenta dias cheguei em Rio Grande.
No ano seguinte fiz o trajeto inverso desde Rio Grande pela margem Oeste.
Em 1985 resolvi encarar desde Santa Vitía do Palmar até Porto Alegre no Windsurf em pleno inverno. Houve dia em que tive que retirar placas de gelo que se formaram na prancha, fora tempestades, frio, frio....
No final do mesmo ano fui para o Rio de Janeiro tentar vir de lá para cá, mas um problema sério na coluna vertebral e falta de vento fizeram com que desistisse, foi muito triste.Durou apenas dez dias...
1986 iniciou com o ciclo de moto, trilhas pequenas viagens e uma para o Chile, Paraguay, Argentina e Uruguay com uma Agrale Elefant 125.
Eu havia desistido de minha formatura na Odonto, mas bateu uma vontade louca e depois de três dias e noites praticamente sem dormir, participei da festa de formatura na UFRGS três horas depois de chegar...
Não tinha o que fazer então entrei na Marinha, fui para os Fuzileiros Navais em Rio Grande, casei e fui transferido para Florianópolis, onde vivo até hoje.
1995 viagem de cinco meses pelos piores lugares da Améica do Sul e os mais lindos. Moto xlx 350.
1997 viagem com um pequeno caiaque a vela desde o Rio até a Divisa com São Paulo.Vou te mandar o início do relato desta, ainda não terminei de transcrever o diário para o computador.
1998 Acidente frontal na BR 101, carro despedaçado e eu junto.
1999 oito meses depois largo as muletas e monto na XT 600 e vou abaixo de chuva desde Floripa até Porto Alegre para perder o medo de estrada, moto é mais seguro...
É isso aí meu amigo, depois foram estas duas que estás lendo e eu estou me preparando para pegar o caiaque e ir aí pra Porto, mas estou com uma hérnia de disco e não sei até onde vou aguentar.
Como diz o ditado da nossa terra:
- Não está morto quem peleia!
Desculpe o tamanho, é que eu me empolguei!
Um abraço para o Nelson Picollo e família, eles sempre me ajudaram em minha iniciação náutica.
Danilo, um baita abraço!

 

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