Paisagem proibida, história desconhecida
Praia do Sítio - imagens e histórias
Danilo Chagas Ribeiro


Praia do Sítio (Guaíba) vista do alto do Morro do Campista.
À esq, vê-se a Ponta de Itapuã. O navio acaba de passar pelo Farol. Ao fundo vê-se o Morro da Formiga, já na Lagoa dos Patos.

Set 2005
A
Praia do Sítio faz parte do Parque de Itapuã, e está localizada na extremidade Sul do Rio Guaíba, no município de Viamão, a pouco mais de um quilômetro do Farol de Itapuã, onde as águas do Guaíba alcançam a Lagoa dos Patos.

A praia mais bonita do Guaíba
Certamente não há praia mais bonita no Rio Guaíba, do que a Praia do Sítio. A praia é pequena, em torno de 500m, e tem leve concavidade. Atrás da praia está o Morro do Campista, de onde se avista a foz do Rio Guaíba (foto acima).

Algumas das figueiras de aparência centenária roçam os galhos na água. A areia é de cor amarela escura. Nas extremidades da margem, matacões de granito ajudam a compor o visual. A declividade da praia é suave. A água é clara e limpa, e quase nada do lixo que desce o rio fica na praia. Tudo isso pode ser apreciado de um barco fundeado na Praia do Sítio.

Desembarque proibido, guardas armados
O desembarque na Praia do Sítio é proibido. A guarda do parque policia as praias ainda hoje a bordo de bote inflável. Atualmente os guardas do parque não perturbam mais os navegantes fundeados na Praia do Sítio, mas houve tempo em que éramos afugentados por guardas armados, com a alegação de que a poligonal do parque passava dentro d'água.

"Onde uma acha de lenha flutuar, quem diz o que pode e o que não pode, sou eu"
O Capitão-de-Mar-e-Guerra Péricles Vieira Filho, então Delegado da Capitania dos Portos em Porto Alegre, foi quem resolveu essa parada. "Onde uma acha de lenha flutuar, quem diz o que pode e o que não pode, sou eu", disse o Comandante, ensinando de forma eloqüente que a jurisdição das águas é da competência da Marinha, e não da administração do parque. Por essas e por outras é que o Comandante Péricles deixou muitas saudades no meio náutico gaúcho. Logo depois que ele foi promovido e transferido de Porto Alegre, podia flutuar até âncora bruce, que não se ouvia dizer mais nada.

Colonização
Em 1773 um padre português foi mandado para a Praia do Sítio para iniciar a colonização, segundo o Comandante Cary Ramos Vale, do Veleiros do Sul. Depois vieram os Açorianos de Rio Grande que, considerando o lugar muito pedregoso, preferiram estabelecer-se na Sesmaria do Dornelles, atual Porto Alegre, declarou Cary.

De BUG nas Desertas
O velejador Luciano Mazzali conhece bem a região. Quando fazia a regata Porto Alegre - Tapes na classe Super Cats, pernoitava na Praia do Sítio com toda a flotilha. Mais tarde, já engenheiro civil e na condição de perito contratado pelo poder judiciário, Luciano fez o levantamento da área a desapropriar para o Parque de Itapuã. Andou por toda a região ora a pé, ora de bug.

Quase 30 anos depois, o velejador tem ainda bem vivo na memória o passeio até a Ponta das Desertas, de bug. Incluindo a Praia de Fora, são 15km de areias brancas (linha branca na imagem acima). "Em alguns lugares eu ouvia o croc croc das conchas quebrando, de tanta que tinha", diz Luciano.

Dona Maria
Nas andanças para o levantamento, no final dos anos 70, Luciano conheceu a Dona Maria do Canto, uma senhora de cor parda, com 80 anos. Era nativa da região, mais especificamente da Praia do Canto, ou seja o canto norte da Praia do Sítio. As terras da Dona Maria iam até a Ponta da Fortaleza. Dizia-se bisneta do Gen. Bento Gonçalves e mostrava um documento antigo escrito em letras que lembravam o gótico, em papel grosso, que provava sua ascendência ilustre, embora ilegítima, como reconhecia.

Trilhos e moenda para Melaço
Luciano gosta de dar trela a pessoas simples e humildes, com quem aprende sempre alguma coisa. Pois conversando com a Dona Maria, ele ouviu dela que quando ela era jovem, haviam trilhos que desciam o morro do campista para encher os navios com melaço e cana de açúcar para abastecer o Mercado Público de Porto Alegre. Lá em cima havia uma moenda.

Considerando-se os 80 anos que Dona Maria tinha há 25 anos atrás, já se vai mais de 1 século. É impossível saber quando havia uma moenda lá, se ela a conheceu, ou se apenas ouviu de seus ancestrais que, sabe-se lá de quem teriam ouvido. Se é que existiu.

O Comandante Augusto Chagas Gaudério, 74 anos, que muitas vezes desembarcou na Praia do Sítio em suas velejadas, diz que nunca soube da tal moenda em cima do morro. Na Praia do Sítio havia um comércio que atendia a colônia de pescadores. "Havia salga de peixe e armazém que vendia até vinho", conta o Comandante Chaguinhas.

Pedra da Argola
Conta também Chaguinhas, que havia algo curioso na região. Era a chamada Pedra da Argola. A pedra está localizada entre a Praia do Tigre e o Farol. A pedra foi furada e uma grande argola foi chumbada (fi
xada com chumbo). Tempos depois a argola sumiu.

Consultei Cary a repeito. Disse que a argola fazia parte de um sistema de proteção para a entrada no Guaíba com vento Norte.
Os barcos eram amarrados sucessivamente nas diversas argolas das Pedras de Espia, como as chamou Cary, até vencer a passagem pelo local onde hoje está o farol de Itapuã. A única argola que restava (aproxim. 50cm de diâmetro) foi levada por Cary para o museu Júlio de Castilhos, que transferirá o material para uma exposição no Parque de Itapuã.

Pedra do Bombeador
Segundo Cary, no topo do Morro do Campista (Praia do Sítio) está a Pedra do Bombeador, assim batizada pelos Farrapos. Com vista privilegiada da foz do Guaíba, era de lá que um sentinela ficava vigiando (bombeando) o rio. Em cima da pedra há um furo, de finalidade desconhecida. Pode ter sido feito pelos Farrapos ou pelos índios.

Cachaça na farinha
Dona Maria contou também que os navios descarregavam sacos pretos para serem levados a Porto Alegre, por terra. Era o contrabando chegando. O Comandante Astélio Bloise dos Santos Habeas Corpus, que navegou muito por ali, conta que como fiscal da Receita Federal, fez apreensões de contrabando na região, inclusive na Ilha do Junco. O Comandante Augusto Chagas comenta que navios uruguaios fundeavam na Praia do Sítio e embarcavam farinha de mandioca. Escondidas na farinha, levavam garrafas de cachaça de contrabando.

Pegadas de animais
Pegadas e fezes de animais na praia mostram o quanto ela é freqüentada pelos atuais moradores, dentre eles os bugios, que dão um show no amanhecer (quando não tem vento forte). Mais sobre os bugios.

Flora e fauna
A flora é composta por vegetação rasteira, barranceira e algumas figueiras que aparentam ser seculares, dentre outras espécies.
Segundo o Comandante Nelson Fontoura, biólogo e Prof. Titular da PUC, a Praia do Sítio apresenta o mesmo "elenco faunístico" que o resto do Parque de Itapuã, como, por exemplo, capivara, bugio, lontra, mão-pelada, cuíca (estes três últimos alimentam-se de fauna aquática). Também a cutia, tatú-mulita, gambá, zorrilho, furão, preá, graxaim (do mato e do campo) e ouriço-caixeiro.

"Hospital" e marcas de raios
Dona Maria falava corretamente, e tinha prazer em receber os ônibus cheios de crianças que iam visitar a região. Mostrou ao Luciano uma fenda enorme entre duas pedras muito grandes (lajes) em que a temperatura era mais amena. Era o hospital da Dona Maria. Indicou também umas pedras no alto do Morro do Campista, que continha cruzes em baixo relevo. Dizia ser marcas dos raios que caíam por lá.

Mergulhos para catar armas
O pai da Dona Maria desenterrou muitas armas da Revolução Farroupilha. Na Ponta da Fortaleza, um pouco ao norte da Praia do Sítio, os Farrapos se escondiam para atacar os imperialistas. Dona Maria conta também que estrangeiros, principalmente alemães, vinham até a Fortaleza e mergulhavam para retirar restos de armas do rio, rente à Fortaleza. É difícil saber discernir o que é história do que é lenda. Ouvi que os Farrapos teriam esticado uma corrente submersa entre a Ponta da Fortaleza e a Ilha do Junco.

Afundando barcos na Praia do Sítio
O Comandante Cary conta que na chegada dos Imperialistas à Praia do Sítio (1845), os Farrapos decidiram afundar seus brigues (veleiros) "Bento Gonçalves" e "20 de Setembro" já que não podiam combater. O afundamento ocorreu entre a Praia do Sítio e o local onde está o Farol de Itapuã.
Cary, 81, citou obra de Lindolpho Collor como referência à história dos afundamentos.

Resgate, apesar do desgaste
Cary, que mergulhou profissionalmente durante muitos anos, é um entusiasta do resgate dos destroços dos barcos farroupilhas e já obteve peças como armas e balas de canhão trazidas à tona entre 1975 e 1980 por mergulhadores, como Derly, atual funcionário do Iate Clube Guaíba. Conta Derly que a procura dá-se apalpando o fundo do rio com as mãos, já que a visibilidade é nula.
Cary não tem a menor esperança de fazer emergir um desses barcos. "A madeira já gastou toda", disse ele, que desde 1959 tem lutado para conseguir verba para as sondagens. O local tem forte correnteza, e a areia que vem junto com a água provocou um desgaste enorme ao longo dos 160 anos desde o naufrágio.

Outros locais
Cary e seus mergulhadores acharam armamento, balas de canhão e peças diversas também na Praia das Pombas (Saco do Farias), Ponta Grossa e na Ponta da Fortaleza, tomada pelos Imperialistas desembarcados na praia das Pombas.

Caça ao tesouro
Nas caminhadas pelo mato do Morro do Campista, Luciano encontrou enormes buracos, alguns com mais de 3 metros de profundidade, cavados sob raízes de figueiras. Coisas de nativos alcoolizados, à cata de tesouros, diz o velejador.

Tainhota no camboim
Os pescadores preparavam tainhadas para o jantar dos visitantes, normalmente vindos de Porto Alegre. As tainhas pequenas, desvisceradas, mas com escamas, eram fixadas de cabeça para baixo a uma vara de camboim falquejada, e espetada ao lado do fogo de chão, conta Luciano.

Mais de 1.000 casas foram demolidas
Na época da criação do parque, os funcionários do governo pretendiam derrubar todo e qualquer prédio da região desapropriada para o parque. Haviam 950 casas na Praia de Fora, sendo muitas de veraneio. Era quase um balneário. A maioria foi demolida por tratores, "na marra", de tanta resistência que os moradores fizeram.
Na Praia do Sítio predominavam as casas de pescadores. Restam ainda por lá, além da capelinha da Nossa Senhora dos Navegantes, uma casa em ruínas à beira d'água, e algumas outras casas abandonadas no meio do mato, segundo consta.

Abrigo
A praia do Sítio é um bom abrigo para fundeio com ventos nordeste ou sudeste (predominantes). A direção aproximada da praia é NNE-SSW. "Há boa profundidade para chegar próximo à margem. O fundo, de um modo geral, é de areia firme, nem sempre adequado para certos tipos de âncoras", diz o Comandante Geraldo Knippling, meu Mestre, em sua obra "O Guaíba e a Lagoa dos Patos". Há quem tenha passado trabalho à noite por ter a âncora garrado.

Pernoitar fundeado na praia do sítio, com vento forte do NE ou SE, é marcante. Como o vento chega na praia por cima do morro, não há onda, mas o efeito é notável. Assobia e encrespa a água. Os estais vibram bastante e as adriças batem muito, se não estiverem bem ajustadas. É muito recomendável ter uma boa âncora, como a bruce, para poder dormir tranqüilo em noites de ventos fortes. O barco fundeado movimenta-se lenta e continuamente. Não balança, mas fica boiando pra lá e pra cá. Na foto acima (observe o veleiro fundeado) vê-se as manchas das rajadas (fracas) na água. É uma situação bem diferente das noites que passei fundeado por lá.

Na boa companhia dos Barth
Na última vez em que pernoitei na Praia do Sítio, o vento uivava forte. Nas rajadas o tom era alucinante. Prazer para poucos. Estimou-se 30 nós nas rajadas.
Estive lá a bordo do Victor, na belíssima companhia do Comandante André Barth, da Capitão Am. Claudia Barth e do proeiro Victor Barth, neto do falecido Comandante Egon Barth, que deixou histórias incríveis no meio náutico (participou da Admiral's Cup, velejou ao Uruguai, etc). O Comandante André, além da tradição no esporte à vela, é um cozinheiro notável e um grande anfitrião. Claudia participa de toda faina a bordo. O Victor, 17 anos, é safo. Sabe tudo e participa de tudo. Se o avô dele o tivesse conhecido, ia babar muito.
Depois do whisky e do jantar, conversamos bastante no cockpit do Victor, apreciando as piscadas do Farol de Itapuã ao longe.

Coisas simples, grandes prazeres
O céu aparece mais estrelado na Praia do Sítio do que em Porto Alegre, cujo clarão observa-se ao Norte. O vento assobiando ali fora, a lua cheia, nascida atrás do morro e iluminando o rio e a praia, estrelas, o farol piscando, o barco embalado pelo vento, em boa companhia, e tudo isso acontecendo na Praia do Sítio. Um belo espetáculo da natureza. O conjunto traz um grande bem estar.
Dormi na cabine de proa, enxergando a lua cheia através da gaiuta, e ouvindo o frenesi dos ventos. Foi muito bom, mas esse grand finale durou pouco por causa do sono.

Coleção de fotos proibidas
Apresentamos uma bonita coleção de imagens. São cenas da praia, da capelinha, do alto do Morro do Campista e outras.
O fato do desembarque ser proibido na Praia do Sítio não nos impede de divulgar as imagens que alguém lá fotografou. O popa.com.br, no entanto, não incentiva o desembarque em locais de acesso proibido.

 

 

 

 

Clique uma imagem para ampliar todas da mesma moldura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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1º Set 2005 João Pedro Wolff Arcobaleno
Belo registro e pesquisa. Este cartão postal de nossa região merecia esta homenagem. Nossa história e nossa cultura. Parabéns pela iniciativa.
João Pedro Wolff Arcobaleno


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