O Galo Colorado do Dr. Breno Caldas
Um estudo nada científico sobre a planificação do mundo
Sérgio e Magda Frey
Farol de Itapuã

27 Jan 2009
A
terra gira, mas o mundo não rola. Simples e infantil constatação; mas, porquê? Será que pelo fato da terra não ser perfeitamente redonda? Acho que não, pois ela gira há muito tempo, mesmo sendo meio achatadinha. Não seria, então, culpa do mundo, o qual tem mudado tanto, esfriado, aquecido, enriquecido, empobrecido. Quem sabe a culpa não é realmente desse mundo que insiste em não parar de mudar. Porque, de uma coisa tenho certeza, ele andou mudando muito de uns tempos para cá, e acho que foi para pior, meu amigo velejador. (Se fores lancheiro, tudo bem, esse mundo tá tão mudado que já não tem mais sentido ficar perdendo tempo com preconceitos.) Sem dúvida ele ficou muito mais chato e ... tai! Talvez por isso ele não possa rolar mais!

Junção Canal da Feitoria x Canal S. Gonçalo
Para aqueles que, ingênuos escravos da objetividade, querem provas de tamanha aberração cósmica, aí vai. Semana passada, parti para uma velejada à Pelotas com meu querido veleiro Plankton, sempre com sua tripulação completa: eu Capitão, minha adorada primeira e última Imediata, Maguita, e porque não, Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois é, meu barquinho é tão pequeno, esse oceano é tão grande; pelo sim pelo não, gosto sempre de convocá-lo como tripulante … Diga-se de passagem, dos melhores que um marinheiro pode contar. Então, depois de trinta horas de um honesto contra-vento de SSE, com um naco de sorte, pouca marinharia e muita ajuda do vento de porão, chegamos a ainda bela cidade de Pelotas (track POA-Pelotas) - Dica: Ao montar a bóia de bifurcação do Canal da Feitoria com o Canal de São Gonçalo, não sigam meu rumo inicial, especialmente com barcos de grande calado como o meu. Montem a bóia de bifurcação e imediatamente alinhem a proa com a próxima bóia encarnada – deixada a boreste – e, assim, sucessivamente, sigam navegando bem próximos às bóias encarnadas, pois o canal é estreito e está muito assoreado a bombordo de quem demanda o porto. Essa precaução só é necessária para as primeiras bóias do canal; logo ao nos aproximarmos da Ponta do Laranjal, o canal de São Gonçalo alcança e estabiliza sua profundidade em confortáveis cinco metros. Os velhos Capitães da Lagoa que me desculpem pelos palpites de navegação e pelo track de navegada meio bocó, mas para ser sincero, fiquei com medo do corpo editorial não gostar de um artigo náutico sem dicas, waypoints, rotas e todos esses minuciosos detalhes que, por vezes, acabam nos roubando o prazer da velejada. Espero, sinceramente, que sua inclusão aumente as chances de publicação do artigo.

Infelizmente, por um pequeno descuido do Capitão, quando da preparação do plano de viagem, a permanência nesta linda cidade se resumiu no tempo suficiente para descobrirmos que nosso valente veleiro, com seus parrudos dois metros de calado, não teria a menor chance de adentrar na abrigada marina do clube, o Veleiros Saldanha da Gama.

É época de estio no Sul, e que estio! Depois de controlada a fúria de minha única tripulante, a qual nutria planos de uma repousante estada em Pelotas - onde desejava, inclusive, comprar os lindos ladrilhos hidráulicos que a Fábrica de Mosaicos ali fabrica - tomei coragem e fiz a proposta indecente: vamos dar uma boa volta na cidade, tentar dormir aqui mesmo no, um tanto agitado, Canal de São Gonçalo e, pela manhã, retornar nosso barquinho à Porto Alegre. Com a promessa de realmente comprarmos os tais ladrilhos, ela acabou topando. Santa criatura.

Em seguida, deixamos o barco e fomos à sede do clube agilizar nossa ida à cidade. Pois bem, não é justamente neste momento tão banal que surge a prova cabal, a qual tanto ansiava, que talvez o mundo não mais role por ter ficado muito mais chato. Chegando à sede e batendo aquele papinho básico com os colegas do Saldanha da Gama, ouço do mocíssimo octogenário Sr. Fernando Vianna, o delicioso causo que tomo a liberdade de relatar aos amigos, uma história de um tempo no qual o mundo era, sem dúvida, mais redondo, quer dizer, menos chato.


Bóia de Bifurcação do Canal de São Gonçalo
Conta-me ele, que nos idos em que velejar pela Lagoa dos Patos era empreitada longa e arriscada, envolvendo recursos um tanto bizarros ao mundo estático de nossos dias, como pombos- correios e galos … Êpa! Eu disse, galos? Essa não, já estou me adiantando no meu causo, vamos com calma. Então, estava o senhor Fernando com uma turma de amigos no meio da Lagoa, quando cruza com o Aventura, o belíssimo veleiro do Dr. Breno Caldas, o qual, até os dias de hoje, insiste em desfilar suas elegantes linhas pelo nosso Guaibão. Imediatamente, o Fernando, que já conhecia o Dr. Breno de outros pagos, sinaliza para que venha ficar a contra-bordo de seu veleiro. Convite aceito e, momentos depois, já estavam todos no Aventura bebericando o sempre bem vindo Scotch do ilustre jornalista gaúcho. Bom, o que se seguiu, acho que não preciso detalhar. Se uma coisa pede a outra, mais verdadeiro é que um copo pede muito mais o outro, e o outro mais o outro, e, numa inebriante escalada etílica, lá pelas tantas, o porre era total, com os bravos marinheiros já entregues aos braços de Morfeu.


Navio Soçobrado na Lagoa – Álvaro Alberto

Por enquanto, tudo dentro da mais completa normalidade. Todos que velejamos sabemos que trago e vela formam um casamento quase perfeito, de vantagens extraordinárias. Não tem sogras, cunhados, idas ao super, formaturas, e, principalmente, aquele prazer intenso da lua-de-mel não esvanece jamais ao longo dos anos, bastando, para ser renovado com a mesma intensidade de outrora, apenas abrirmos mais uma garrafa com alguns bons amigos. Talvez um único probleminha, seja a manhã do dia seguinte. Mas, o dia seguinte da nossa estória não trouxe maiores dissabores, não; o trago do doutor era realmente dos bons, coisa de patrão, como diriam os marinheiros da campanha (?!?). Acordaram, sim, todos meio borrachos, meio sonolentos, que a gauchada era valente, mas não era de ferro. O seu Fernando acorda e, de modo a retribuir a gentileza da noitada, convida o Dr. Breno para o almoço em seu barco, convite aceito sem maiores delongas. Pois então, não é que no conversório do almoço, o doutor não surge com essa pérola? “ Ô Fernando, eu acho que tenho que parar de beber homem, esse whisky tá acabando comigo, já estou até ouvindo coisas. Imagine que, lá pelas quatro da manhã, acordo sobressaltado com o canto forte de um galo! De imediato, me ponho de pé, chamo meu marinheiro, e corro para o convés imaginando o Aventura dando na praia, o meu querido yacht perdido. Mas não é, meu amigo, que ao chegar à coberta, encontro o horizonte limpo e os dois barcos placidamente ainda ancorados a contra-bordo. Dou uma volta completa com o olhar e nada de terra, muito menos do infeliz galo que me arrancou de um sono tão prazeroso. É Fernando, só pode ser esse maldito whisky, essa bebida tá me tirando a razão, tenho mais é que parar com ela.”

Bom, a gauchada, que até o momento, por respeito ao ilustre marinheiro, tinha conseguido conter os risos, esquece da envergadura e, porque não, do desespero do narrador, e abre estrondosa gargalhada. E mais, um dos xirus, não se contentando apenas com o riso, corre para uma das bordas do barco, abre uma alçapão, e deixa um belíssimo galo colorado colocar a cabeça para fora e entoar o estridente canto que tanto assombrou os sonhos do Dr. Breno.


As Belas Linhas das Canoas de Rio Grande

Mas não é que os gaúchos levavam não apenas um galo, mas um completo galinheiro a bordo! Contando, além do galo-despertador, com mais quinze galinhas, bem instaladas sob um convés-falso construído em ambos os lados da embarcação. Depois de passado o susto, o Dr. Breno, bem mais aliviado por saber que não havia perdido a razão, o Aventura e, principalmente, a possibilidade de continuar convivendo com seu whisky sem maiores culpas e temores, parte para inspecionar as instalações do aviário de bordo. Não sabe se fica mais surpreso ou encantado. Encantado, sim, pela engenhosidade da idéia. Eram os idos nos quais o invento do isopor ainda não tinha banalizado a conservação dos víveres frescos a bordo das embarcações. Com a bebida, não havia maiores problemas, bastava deixá-la mergulhada nas refrigerantes águas da Lagoa, aliás, prática corrente até os dias de hoje, por nós iatistas menos abastados. Agora, com os víveres perecíveis, o problema era sério; sem o tal isopor, sua sobre-vida ficava muito aquém do desejado em um cruzeiro pela Lagoa. Daí que vem o encanto do doutor com a solução encontrada pela gauchada: um galinheiro a bordo proveria a tripulação com carne fresca durante todo o passeio. Diga-se de passagem, não só a idéia empolgou o doutor, mas também a sanidade das suas instalações. Sim, porque não era pelo fato de se velejar com um monte de galinhas a bordo, que o veleiro deixaria um rastro de porcarias e catinga nas limpas águas da Lagoa – as quais, à época, talvez ainda contassem com os ditos Patos que lhe dão o nome e tanto procuro mas nunca encontro durante minhas velejadas por lá. Sanidade garantida não só pelo zelo da tripulação, bem como pela furação de todo o convés-falso no qual ficava o galinheiro, de modo que sua lavagem fosse extremamente facilitada.


Gaivotas nos Paliteiros da Feitoria

Lamentavelmente, minha estória foi aqui interrompida pela minha primeira Imediata, a qual bufava olhando o relógio, tal sua ânsia de logo partir à cata dos tais ladrilhos. Fico, portanto, sem saber as reais condições que deram final àquele inusitado episódio. Será que nosso ilustre marinheiro editorialista chegou a aventar a possibilidade de adicionar um galinheiro ao seu querido Aventura? Acho difícil. As idiossincrasias do marinheiro devem ter falado mais alto do que o pragmatismo do homem, e poupado o belo barco de artefato de aparência tão pouco marinheira. Deve ter calculado que melhor seria seguir apenas com seus insólitos pombos-correios.

É, sem dúvida, eram outros tempos, de uma vida mais dura, mas recheada de situações divertidas e pitorescas, as quais permanecem vivas na memória dos que, como nós velejadores, se contentam com uma existência despojada, desde que vivida em um mundo menos chato. Taí! Olha, acho que encontrei minha demonstração da planura dos nossos tempos. O mundo atual parou de rolar, porque ficou muito chato! Muito mais chato que era no seu passado arredondado! Talvez venha daí, o desajuste dos velejadores a esse mundo não redondo; no fundo, passamos a existência singrando os mares desse nosso lindo planeta azul à procura de um mundo que não mais existe, talvez um mundo que rolasse.

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