Navegando de Brasília a Buenos Aires
De Caiaque
André Issi

André Issi já realizou várias aventuras notáveis. Dentre elas, navegou da Lagoa Mirim a Porto Alegre, de caiaque e windsurf. Agora André está descendo por via fluvial desde Brasília até Buenos Aires, de onde pretende vir pelo mar até Florianópolis. De caiaque.

O início da navegada ocorreu a 10km do Lago Paranoá, em Brasília, onde o navegador desceu o Rio São Bartolomeu durante 6 dias, até chegar ao Rio Corumbá, passando por Cristalina, Pires do Rio, Caldas novas e Itumbiara.

Depois de 14 dias no Rio Corumbá, navegou pelo Rio Paranaíba até a confluência com o Rio Grande, onde forma-se o Rio Paraná. Neste percurso, passou por 8 barragens: Corumbá, Itumbiara, Cachoeira Dourada, S Simão, Ilha Solteira, Jupiá, Porto Primavera e Itaipu.

Depois de navegar 57 dias e percorrer em torno de 850 milhas (1.700km), Issi chegou a Foz do Iguaçu, de onde enviou o diário do último trecho.

De Foz do Iguaçu navegará mais uns 1.900 km para chegar a Buenos Aires pelo R. Paraná, e mais uns 1.500 por mar, até Florianópolis, com escala em Porto Alegre. Quem vê isso, parece impossível. Mas sabendo o que esse navegador aventureiro já aprontou, acredito que conseguirá. Danilo.

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Desde Guaíra até Foz do Iguaçu

14 Ago 2005
Olá amigos !
Saí tarde da Lan house de Guaíra ( 22:30h) , soprava um vento fortíssimo e gelado. Seguir a noite e a pé até o porto com risco de chuva...
Ninguém merece!
Paro em um hotel e descubro que a diária não é tão cara e resolvo dormir por aqui. É muito tarde, ligo para a marina avisando que vou dormir por aqui.
Depois de 51 dias de viagem, vou dormir numa cama com lençóis, tv e banheiro. Estou feliz, vou dormir em segurança.
Agora são 3:04 h da madrugada, assisto a um filme de Jack o estripador enquanto escrevo o diário. Não preciso dormir, apenas estar deitado em uma cama assistindo tv é o suficiente.
Hoje, 8/8/05 a batalha continuará; entrarei em território diferente, sem ilhas, zona de tráfico e contrabando e sem proteção contra as ondas que as ilhas davam.
O local onde quase deixei o caiaque antes era barra pesadíssima, quase entrei em fria, mas acho que agora está tudo bem, pois o local onde deixei tem acesso restrito e a guarda municipal vigia 24 h.

8/08/05 Segunda dia 52
Cara, entrou uma frente fria e ventou a noite toda. Em Porto Alegre a temperatura baixou 20 graus em um dia...
Tomo um café reforçado no hotel e vou até o museu agradecer a Nilza que me deu um toque sobre o lugar onde eu havia deixado o caiaque. Talvez não houvesse nada quando eu retornasse da internet...
Que frio dos diabos!
Eu só de camiseta. Filmo os bichos empalhados do museu e vejo fotos da city antes da represa.
Sigo para a marina e lá encontro seu Aguiar que é major da reserva e agora é o chefe da Guarda Municipal. Ele é super simpático e me convida para tomar um café. Estou tremendo, nariz pingando e espirrando.
O rio está que é um mar, mas tenho que seguir, não adianta querer ficar quentinho.
O pessoal vem assistir a partida, mas ali fora o vento gelado está terrível e eles vão desistindo enquanto eu arrumo as coisas.
Que dureza!
É um vento cortante e as ondas me esperam. Parto só às 11:20 h, ondas furiosas me atacam assim que saio da marina, algumas pessoas que estão por ali correm para ver o caiaque ir de encontro às ondas mais fortes que pegarei ao passar por um navio atracado e pegar o vento de frente.
Ondas furiosas e desencontradas que batem no porto e se chocam com as que vem.
O caiaque parece um cavalo xucro e pula enlouquecido enquanto o vento gelado empurra os respingos para cima de mim, muito esforço para pouco avanço.
Os dedos, já congelados, puxam firme o remo e seguimos na direção de uma pequena ilhota onde há uma torre de alta tensão.
Há muito capim flutuante, as ondas pegam de proa e vou congelando aos poucos. Passo por este pontal e vou parar só às 12:50 h no fundo de uma enseada junto a uns barcos onde tem uma clareira no capinzal. Tenho que comer rápido, pois só de calção é melhor ficar no caiaque onde a capa protege as pernas do vento.
O vento parece ficar mais furioso e frio. Apesar de tudo,vou em frente. Tenho que parar mais cedo. No lado paraguaio estaria mais abrigado mas a margem é tomada de selva sem possibilidade de parar para descansar. Passo por vilas de pescadores, um deles pergunta se vou seguir com "este mar" .
Tchê! Como está frio! O vento contra e as ondas não dão folga, tentei acampar em vários lugares, mas está difícil de achar um que de abrigo contra o vento e que pareça bom.
Chego em um pontal e faço uma longa travessia, o vento está tão forte que levanta a água do rio e forma tipo uma neblina que parece fumaça correndo rápida sobre as ondas.
Para o sul, o céu ficou azulado e roxo, parece que vem chuva e temporal.
Avisto umas casas ao fundo de uma enseada e lá parece ser abrigado do vento. Não tenho escolha, sigo para lá!
Muitas ondas depois chego lá às 16:30 h, é a colônia Águas brancas e tem um cara de moto. É o Negrão (que é branco) e fala para eu descer. Chega seu Chicão, peço licença para acampar por ali. Principia a chuva e espero parar para armar a barraca. Estou tremendo e gelando, mas ficamos conversando. Pelo menos é mais abrigado do vento.
Depois que para, limpo o terreno e vou armar a barraca, será uma noite muito difícil. Seu Chicão vem até mim e diz para esperar, ele cuida de um barraco cujo dono não está, ele e Negrão abrem o barraco que parece estar fechado há muito tempo. Ali tem dois quartos beliche e colchões que poderei usar, fora o fato de que não dormirei no chão gelado e livre do vento, fora o temporal que se aproxima.
Deixo as coisas ali e vou para o barraco de Chicão, onde ele e negão assistem tv e tomam um chá quente.
Coloquei o abrigo e fiquei um pouco melhor, mas já estou gelado e demora para aquecer. Ainda mais que estou com as roupas que vou dormir molhadas.
O pessoal é gente boa demais, não tenho como agradecer. Chega Dárcio, Nezinho e Veinho. Assisto as notícias e vou para o meu barraco.
Faço um mingau misturado com um pacote de sopa, pelo menos aquece um pouco. Tem um morcego pendurado no madeirame, mas logo ele deverá sair para comer. Ao lado do beliche tem um enorme rato em decomposição, mas ele está no chão e parece que não vai sair dali tão cedo. Deito no colchão, tapando a cabeça e a chuva chega forte mas não dura muito, que sensação gostosa estar ali, abrigado! Apesar de tudo, consegui andar por cinco horas e uns 20 km. Nada mal para um dia destes e por ter saido tarde de Guaira.
Estou andando praticamente direto todos estes dias mas estou conseguindo suportar. De outra forma não conseguirei fazer os 5000 km em seis meses, ainda tenho que abrir a pousada no verão.

9/08/05 Terça dia 53
Atenção, escurece, são 18:15 h acampei no Paraguai em uma estrada suspeita no meio da selva. Tem pegadas de onça onde deixei o caiaque; estava no sufoco, não tive escolha!

Acordo cedo, faço o kinojo sob um frio dos diabos, deve estar uns 10 graus. Aqui na colonia Águas Brancas tem vários ranchos de pescadores espalhados no mato de leucenas. São bem pequenas, mal cabe a cama e as tralhas de pesca. Esta onde estou é até grande, pois tem cozinha, dois quartos e é bem montada. A colônia cria Pacus em viveiros com bóias amarelas cedidas pela Itaipu binacional, parecido com a criação de ostras e mariscos em Floripa.
O sol aparece de quando em vez, os bichos se deitam e procuram se aquecer, os cachorros tremem.
Vou no ranchinho de seu Chicão, é o mais modesto de todos, feito de bambus abertos e sobrepostos. Ele vive aqui há 17 anos, tem uma pequena tv, a cama e só. Fico com pena ele é uma pessoa boa, divide a comida que tem com os gatos cachorros e uma galinha garnizé com seus nove pintinhos recém nascidos, uma graça os bichinhos. Vou no caiaque e dou duas barras de chocolate para ele e o Negão, são gente boa demais e não fosse eles, teria passado uma péssima noite.
Tomo um chá mate quente e ajuda a aquecer. Vamos para a rua tomar sol onde os outros pescadores já estão lagarteando como dizemos no sul.
Todos dizem para eu ficar, o tempo que eu quiser, o vento parece mais forte que ontem.
Acontece que eu não vim até aqui para ficar em segurança; é muito bom o conforto.
Mesmo com o vento tão ou mais forte que ontem, cheio de ondas geladas e com as cristas espirradas com as rajadas, resolvo partir às 10:15 h.
- Tu vais partir com este "mar" gelado? Tem que ter muita coragem...
Agradeço de coração ao pessoal tão hospitaleiro, obrigado!
E lá vamos nós,só de calção mas com casaco de chuva para atacar o vento e touca de neoprene. A capa do barco protege as pernas, embora por dentro esteja molhado.
Ao sair ainda estou abrigado, mas logo pego as ondas e o vento de rajadas no peito. Elas passam por cima, mas eu peguei o jeito do caiaque. É um SW e pelo lado paraguaio parece estar mais abrigado. O ponto crítico é a travessia, ondas de " cabeça branca" como eles dizem por aqui, carneirinos no sul.
Faço a travessia até um mato submerso com ondas de través e viro de frente para o vento de rajadas.
- Senhor, estamos invadindo o Paraguai!
- Dizem que aí roubam, matam, que tem traficantes e contrabandistas, que comem criancinhas...
- Soldado, somos um destacamento e estamos em missão secreta.
- Não existe fronteiras!
- Mas e o ditador Solano López?
Ele que vá colocando as barbas de molho, vamos nos encontrar com o Almirante Tamandaré num local chamado Riachuelo...
O lado paraguaio é bem selvagem, florestas virgens com uma altura entre 40 a 50 m, no brasileiro não passa de 20 m; pior, existe um "mar" de troncos submersos quase a linha d´água e o maktub está se chocando com eles direto.
É um inferno: ondas contra, vento de rajadas, choque com os troncos e um mar de aguapés que me obriga a afastar da margem e ficar a mercê do vento mais forte.
Os dedos estão congelando, os braços formigam, mas não posso parar para descansar por falta de lugar abrigado.
- Sargento! Trouxeram a dexa-metazona?
- Senhor, ficou naquela bolsa que esquecemos no pico do Everest...
- Seu "apagadão"!
- "Paga" dez!
- Flexões, senhor?
- "Paga" vinte...

Vejo um barquinho com motor de rabeta entre os troncos, quase o acompanho no remo.
Lá vêm os chatos dos quero-queros paraguaios:
- Quiero-quiero!
Após 2h chego na parte abrigada e paro junto a uns troncos para descansar e almoçar.
Brody, aqui não dará para acampar, é selva pura, não achei uma brecha que fosse na mata. É um emaranhado de vegetação, árvores e malhas de bambu, fora esta "selva" submersa.
O pior será se encontrar polícia ou militares, entramos ilegalmente e eles podem "confiscar" tudo...
Como dizia o Roberto Carlos:
- São tantas as emoções!
- É isso aí brody, temos que manter os índices de audiência e jogar a vida ao destino tem sido uma constante; vamos ver no que vai dar...
Creio que se encontrar contrabandistas ou traficantes cada um vai ficar na sua, como foi de bicicleta na selva do Peru e Colombia ou na selva da Bolívia, na viagem de moto.
Sigo em frente, falta pouco para chegar na parte abrigada.
- Cabo, vamos dividir o inimigo, eles estão muito fortes!
- Como, senhor?
Encoste naqueles aguapés de mierda que tomaram conta das margens e quase tudo por ali; assim não teremos ondas, apenas este corno de vento de rajadas.
É verdade, o vento quer impedir que eu chegue em local abrigado e as rajadas se tornam cada vez mais fortes.
Parece incrível, mas eu tenho que fazer força para levar a pá do remo para a frente, fora d´água.
- Sopra, seu corno, aqui o furo é mais embaixo e tu não vais me impedir de avançar... Seu peido mal dado!
E ele parecia enfurecido com meus xingamentos e chegava a balançar o caiaque, querendo nos virar à força!
- Corno, desgraçao, agora é que eu vou para a frente!
Vento filha da Santa, só fazia eu remar com mais força ainda.
O problema é que as forças vão acabando e não tem onde parar.
Finalmente chegamos na parte abrigada, assim consigo avançar um pouco, do lado brasileiro seria muito pior.
O certo seria esperar o tempo melhorar, como disseram os pescadores, mas eu não consigo ficar parado, talvez se estivess chovendo, talvez nem assim...
Vou em frente, o caiaque "acavalou" em um tronco submerso, o local é profundo; remo de tudo que é jeito mas não sai.
- Merda!
Terei de saltar, mas uma sequência de ondas e muito balanço de corpo e ele se liberta do tronco que perdeu alguns pedaços na peleia.
Já estou nervoso, pois não tem onde acampar e atravessar vai me deixar desabrigado.
Vou seguindo e após uma curva me deparo com uma clareira, vejo casas, uma pequena tumba azul e um local onde está hasteada a bandeira do Paraguai:
- Fudeu!
- E agora? Atravesso, sigo em frente, será que vão me deter?
- Se eles chamarem não pare, estamos dentro d´água!
Tiro uma foto, estou muito perto, eles me viram.
Aparece um cara, tipo atl´rtico, coturnos, calça verde e camiseta preta, é militar, deve ser uma base na selva.
- E agora tenente, que fazemos?
- Acene, finja que é turista, mas não pare.
Ele acena de volta, nem olho mais, ele pode me chamar.
- Encostamos, senhor?
- Nem pensar, na agua estamos donos da situação, em terra seremos invasores, estaremos aos caprichos dele, mesmo que pareça amigo.
- Vamos em frente!
E assim seguimos, chocando com os troncos e levando sustos, pelo menos o vento diminui aqui.Não tem as ondas violentas que vejo do outro lado.
Já são 16 h, não sei o que faço, se cruzo para dormir, se tento achar lugar aqui na selva, abrigado do vento.
O problema é que não encontro uma brecha que seja, praias que vejo são apenas troncos caidos quando me aproximo, ou mesmo barrancos que não passam de capins mais amarelados entre outros que flutuam.
- Cara, faz algo!
- Porra, tu não estás vendo que estou procurando há horas?
- Aceito sugestões...
É verdade, atravessar agora, às 17 h e achar lugar em poucos minutos com o vento que faz por lá pode ser pior e a merda é que está para escurecer e eu não acho o mínimo de brecha que seja na selva, so malhas de bambu e vegetação entrelaçada.
- Acho que vamos nos ferrar brody!
Cacete! O pior é que é verdade, vai escurecer em seguida, vejo nuvens... Só falta chover.
Tento remar mais rápido e vou me chocando com os troncos submersos, estou agoniado, me sentindo em perigo e os galhos só fazem piorar.
Pronto, já descarrego meu arsenal de xingamentos contra os galos e o caiaque que quase vira ao bater nos desgraciados:
Estou perdendo o controle da situação, fico nervoso e não sei o que faço, chego numa ponta, olho, nada! Assim vai se repetindo, terei de passar a noite n´água.
Sempre a esperança que acharei um lugar, mas a verdade é que é selva.
- Cara vai só até aquela ponta e atravessa por pior que seja lá deve ser melhor que aqui.
Já estou meio que me afastando quando vejo uma canoa de madeira, pintada de verde escondida no meio da vegetação. Chego perto, mas não vejo nada.
Passo dela e sigo um pouco, vejo uma pequena praia de areia e uma brecha entre o bambuzal.
- Tem que ser aqui cara, tem que ser!
Vejo uma estrada, tipo picada, quase não se vê do rio, é larga o suficiente e a grama é baixa.
- Estou salvo!
Coloco o caiaque sobre o barranco, armo a barraca meio escondido.
Um bando de macacos prego grita e me observa, estou invadindo sua área de passar a noite.
- Lamento meus amigos, mas estou no sufoco, amanhã a mata será de vocês!
Estou super bem abrigado do vento SW, só que é selva, tinha pegadas de onça ali onde deixei o caiaque.
Pior é se vierem atravessar coisas para o Brasil e me virem acampado bem em cima da área de manobra.
O que pode acontecer é uma incógnita e se eu sentir que a barra vai pesar levo um chifrudo comigo. Pego o aparelho de choque, o punhal e o facão e já fico bolando planos para o caso de ouvir um carro na selva.
- Deixa de ser boiola, quem é louco de atravessar o rio de noite com este mar e entre os troncos?
Igual durmo com o punhal fora da bainha e o aparelho de choque ao lado do braço.
Coloco roupa seca, escuto rádio.
De repente um dos macacos grita desesperado, mas para em seguida, deve ter levado uns petelecos do chefe:
- Ôh vocês aí do andar de cima, nunca ouviram falar na lei do silêncio?

10/08/05 Quarta dia 54
Amanheceu com sol, os bambus estralaram a noite toda com o vendaval, mas aqui ficou super abrigado.
Agora são 8:35 h, escutei um cachorro é melhor sair antes que chegue alguém, evita encrencas.
Amanheceu com sol, o vento continua sul, sempre que entra frente fria ele fica assim por 3 a 5 dias.
Hoje faz três meses que o pai faleceu, vou lembrar do "veinho"!
Parti só às 9:50 h e fui até a primeira ponta. Vi que teria que cruzar para o Brasil, pois dali há 10 km teria uma curva para bombordo; com vento SW ficarei mais protegido por lá.
Inicio a travessia, vento contra e ondas de través, mas mais fraco q2ue ontem, pelo menos não é de rajadas.
Vou remando na moral, é quase estafa, o esforço de ontem exauriu minhas forças; nem consigo xingar direito o caiaque quando ele muda de curso, estou "podre"!
Passo pelo porto de Vila Nova (acho) termino a travessia em diagonal e encosto às 11:35, nem deu 2 h, mas preciso descansar. Aproveito e almoço. Para minha surpresa, encontro uns pés de amora, algumas estavam maduras.
Lembrei dos tempos de guri, na Vila Nova em Porto Alegre.
Ao lado do chiqueiro de porcos havia uns pés de amora e a gente ficava com dedos e boca manchados de tanto comer as frutas.
Parti às 12:35 cruzei outra ponta e avistei Porto Mendes.
Fiz uma linha reta até lá. Tinha uma bela praia com rampa, barcos que cruzam para o Paraguai, bares e gramados bem cuidados.
Fui no bar do Lauro onde D. Gorette fez duas enormes porções de frango e batatas fritas.
Cheguei a cogitar de dormir ali, teria chuveiro, segurança, mas não protegeria contra o vento sul. Resolvo partir para o pontal em frente onde tb tem rampa chuveiro, etc..
Passo dali, eu quero um lugar calmo e sem ninguém. Abro uma clareira entre um mato adiante puxo o caiaque sobre os troncos.
Agora são 18:15 h, o sol acaba de se por, estou sobre um colchão de folhas e super abrigado do vento sul que passa pelo pontal com ondas grandes. Aqui não mexe nem a lona. Será uma noite boa, preciso descansar, estou podre de remar 3 dias contra vento de rajadas e ondas.
Ali em Porto Mendes, Cristian, que faz transporte de passageiros para o Paraguai, ficou sem fazer a travessia nestes dois últimos dias pela força do vento e das ondas. Ficou surpreso que eu segui viagem mesmo assim.
Bem ou mal, fiz 50 km em mais de 15 horas remadas desde segunda, mas se fosse esperar, nem teria saído de Guaíra, são 50 km que já se foram.

11/08/05 Quinta dia 55
São 1:36 h da manhã, tive que escrever agora:
Estávamos todos em casa e quando vimos, o pai tinha retornado.
Estava deitado na cama e ninguém sabia explicar.
Tudo tinha voltado ao normal em nossas vidas.
Ele falou que explicaria mais tarde que tinha feito parecer que tinha morrido mas que fez isto para nos proteger.
Daí eu estava na sala da casa antiga com meu primo Clóvis, comentando o que haqvia ocorrido.
Bom, não conseguimos explicar.
Um belo dia fomos passear de moto. O pai (com uma velha moto que tinha), eu, meu irmão e meu tio João, acho.
A moto dele falhava, saímos do asfalto e seguimos por uma estrada de areião. Meu irmão e meu tio na frente, eles fizeram uma curva difícil numa descida.
Não consegui fazer e passei reto. Vi o pai cair e fui ajudá-lo.
Quando cheguei perto vi que ele estava com partes da pele meio azuladas, parecia inchado.
Ligamos para um padre (deveria ser um médico). Ele começa com aquelas ladainhas dos caminhos de Deus, uma coisa assim como Deus sopra o vento através de um véu...
- Eu preferia ter um câncer a ficar assim, disse o pai!
- Toque seu coração, o que vê?
- Vejo carros, pontes, ruas...
- Não, toque com sentimento.
- Agora vejo minha família, minha vida, meus amigos, aqueles a quem ajudei!
- Agora toque como um espelho. O que Vês?
- Apenas a mim mesmo...
- É porque você já morreu, mas está tão vivo na memória deles que jamais será esquecido...

- Brody, o negócio foi tão real que despertei.
Acordo aqui na barraca, dentro do mato e sinto que tenho que escrever antes que esqueça. Os detalhes foram muitos, mas a essência foi esta.
Detalhe: apenas eu ando de moto, mas sonhos são assim.
A gente tinha combinado de se encontrar em Foz quando eu lá chegasse.
É a primeira vez que eu choro desde o dia em que ele morreu!

Aí pai, está é pra lembrar de ti:

Mudaram as estações, nada mudou,
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu,
Está tudo assim, tão diferente...
Se lembra quando a gente, ousou um dia acreditar
Que tudo era pra sempre, sem saber ,
Que o "prá sempre" sempre acaba!
Mas nada vai conseguir mudar o que ficou;
Quando eu penso em alguém, só penso em você
Ai então está tudo bem...
Mesmo com tantos motivos, prá deixar tudo como está
Nem desistir nem tentar
Agora tanto faz,
Estamos indo de volta pra casa...

Acordo com um frio dos diabos, perto de dez graus, há um pouco de cerração mas estou melhor da canseira de ontem. Parti só às 10:20h, não consigo sair cedo quando faz frio.
Chego no primeiro pontal e vejo pontais a perder de vista, o vento está SW de novo, que saco!
Acho que vou perder a elegância e xingar o vento com todo meu repertório de nomes feios. Não muda nada,mas depois dos ataques de fúria galopante eu fico mais calmo.
Porra, já está enchendo o saco, remar por 4 dias seguidos contra vento e ondas...
Como saí tarde, de castigo, terei de remar por 3 h seguidas. Sigo remando de pontal em pontal, pelo menos cada dia que passa vai ficando mais fraco o vento. Parei às 13:30 e havia pegadas de onça na praia.
Quando eu penso que não tem mais perigo, surgem os sinais de que não é bem assim. Passo por outro farol onde tem uma enorme rampa de cimento. Deve ser porto Bragado, estou mais perdido que cusco em procissão!
Adiante há uma grande travessia por fazer e vejo um navio balizador com dificuldades para instalar uma bóia de sinalização por causa das ondas, já que o vento contra voltou a aumentar.
Resolvo fazer a travessia indo na direção do navio que tem um guindaste na ponta e várias bóias coloridas sobre o convés.
- Aonde é que tu vais, seu exibido?
- Ué, vou tirar fotos...
É que pra mim ficou normal andar nas ondas, não tenho mais medo!
Chego perto do navio, os caras conseguiram colocar a bóia e uns 10 funcionários se voltam para ver o caiaque nas ondas há uns 199 m. Passo mais tres pontas e depois de seis horas remadas chego noutro pontal à reversa do vento. Levo quase trinta minutos para abrir uma clareira e limpar o terreno para a barraca. ?Não é dos melhores, tem galhos buracos e muitas folhas, mas meu curso intensivo de faquir me permite dormir sobre fundo de pedras, raízes a mostra galhos e assemelhados.

12/08/05 Sexta dia 56
Parto às 9:40h, rumo ao primeiro pontal.
Aleluia! Sopra um vento do quadrante norte, isto muda tudo, aprôo o barco para o último pontal que vejo no horizonte. Aqui é uma margem cheia de reentrâncias no sentido NE-SW.
Dia bonito, viajo sem a capa e navego por 3h até parar para almoçar. aproveito para tomar banho nesta água gelada. ao fundo desta enseada há um farol tradicional, pintade de listras horizontais brancas e vermelhas. Vejo uma balsa carregada de caminhões vir do Paraguai. Ela passa por trás de uma ilha que eu não havia visto.
Sigo em frente, o tempo passa e remo muito forte para chegar em uma ilha, mas ela é ruim para dormir, pequena e mato alto, remo mais forte ainda até chegar em outra onde tenho que abrir uma clareira no capim alto. Nesta só vejo pegadas de capevara e graxaim, se visse uma de onça daria no pé. Foram 6:30h de remo hoje, tem uma placa na ilha diz:
Rio São Francisco - km 2001
Há uns barranquinhos de barro vermelho que gruda mais que durepoxi e que mancha asté a pele, parece uma tinta.

13/08/05 Sábado
Acordo às 4h faco o kinojo para esquentar o ar gelado da barraca.
Agora são 7:40 h, dia bonito e com um pouco de cerração. Achei a carcaça de um graxaim na beira e parto às 8:40h.
Fui em frente quase sem vento, chego num pontal, olho para afrente e tudo parece se fundir no horizonte. Hoje estou possuido pelo Demo e sigo na direção da bruma, onde mal vejo um pontal. São tres longas horas e meia olhando o mesmo ponto de referência, alvo, como dizem na marinha de guerra ou azimute. Tu entras em alfa pensa no que quiser, família, amigos viaja no tempo tipo assim:
- Agora vou lembrar de quando eu tinha 12 anos e a mãe levou toda a turma da rua para o sítio da vó e lá encontramos as primas de Caxias.
É impressionante, tu vais aonde queres, lembra de detalhes, ri, fica brabo e quando volta para o corpo está remando sem parar e reinando com o caiaque porque o corno saiu da rota...
Chego no pontal, almoço e sigo em frente, passo mais dois e vejo algo no horizonte, pela bochecha de boreste, são torres de alta tensão, consigo distinguir os guindastes centrais, estão maisw próximos do lado paraguaio. Estou me aproximando da maior represa do mundo...
Cara, é muito emocionante estar me aproximando dela no meu caiaque depois de 57 dias d loucuras...
Dou um grito de Tarzã ali no meio do nada, não deixa de ser uma vitória!
Resolvo encostar na margem para filmar a represa e surprendo um bando de quatis, cerca de vinte, fuçando na areia da praia. Eles não me vêem e vou filmando quase ao lado deles quando o caiaque encosta na areia e faz barulho.
Sigo em frente, paro em outro pontal onde tem uma placa caida mas não consigo identificar a placa. Vejo uma praia mais para o fundo, remo até lá. Tem rampa, jet-skis na beira e lanchas. É a praia de Santa Terezinha de Itaipu, o homem dali diz que já passei da cidade e que tem outr mais próximo da represa. Pergunto quantos kms faltam ele não sabe e pergunta pra um dos caras de jet, ele responde quase sem olhar para nós:
- Uns dois quilômetros...
Olho pro relógio, são 17:20h, dá tempo.
Pego o caiaque, lá terá bombeiros que poderão me transportar até a capitania.
Sigo em frente, cada vez mais próximo da represa, desta vez não poderei usar a tática kamikaze de chegar e pedir para me largarem ao lado das turbinas... É ultra violento.
Afora isto, tem a parte burocrática que tenho que resolver em foz e cambiar plata, pois só retorno para o Brasil daqui há 3 meses, se Deus deixar!
O sol se põem, pasaso a primeira ponta, nada, a segunda, nada!
Estou remando há mais de uma hora, Que cara filho da santa!
É mata virgem, não dá para encostar, está cheio de troncos submersos.
- Desgraçado! Estou louco de raiva, se pudesse voltava lá e dava umas porradas no cara irresponsável. Agora estou em fria nos dois sentidos, pois está frio e escurece.
Eu nunca volto, então sigo em frente. Filmo a represa ali do meio mesmo, está linda toda iluminada, estou há uns 10 km no máximo dela, mas vi uma lancha passar para o interior de uma enseada.
Vejo luzes, mas deve ser do pessoal da represa e acho que serei executado sumariamente se chegar lá.Então vou seguindo no escuro, pego a lanterna para o caso de alguma lancha vir por cima. Tenho que me afastar da margem, estou me chocando com troncos submersos e levando sustos enormes. Finalmente vejo luzes e sigo para lá. Está muito longe, mas que remédio.
Xingando a mãe do boyzinho, vou seguindo em frente, usando o reflexo das luzes para ver os obstáculos no caminho.
Finalmente chego, são 19:30 h remei mais de 8h, é um clube.
É o Iate Clube Lago de Itaipu.
Falo com Carlão e Carmo, Depois chega seu Florêncio, estou tremendo, aqui já é foz do Igaçú.
Falamos com seu Adauto depois de ligar para a capitania, mas sábado a noite...
Eles resolvem me alojar no clube, tomo um delicioso banho e tiro uma barba que não é deste corpo, quer ficar branca...
Da próxima vez passarei aquele barro vermelho nela.
O pessoal é bom demais, fui muito bem recebido por todos e só tenho a agradecer.

14/08/05 Domingo Dia 58
Hoje conheci o Sr. Claudio que já viajou de moto e coloco~-se a disposição inclusive o translado do caiaque. Fiquei super feliz. Acordei cedo, organizei as coisas no caiaque, conheci o Sr. Rolim e os garotos que fazem parte da flotilha do clube, entre eles o Alan (campeão sul-americano, Jorge e Wilian "Popó" que me emprestou um sabonete. Tomei café com eles e peguei um ônibus e vim até o bairro 3 lagoas para escrever para meus amigos.
Agora são quase 22 h, escrevo desde as 12h. Aqui foi mais um pouco de aventuras, espero que estejam gostando e que continuem viajando comigo, pois é muito bom dividir as emoções com aqueles que gosto. Um baita abraço, agora serão 3 m3ses fora do Brasil e, se Deus permitir, I Will Be Back, Baby!
Um baita abraço para todos e escrevam, é muito bom saber notícias de voces.

André Issi.

 

 

Outro trecho desta indiada: Itumbiara - São Simão

Da Lagoa Mirim a Porto Alegre
(veja neste diário também, por que André Issi decidiu fazer aventuras tão radicais)

 

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