De Brasília a Porto Alegre
O diário do navegador - chegada a Porto Alegre
André Issi

André Issi completa 6 meses de viagem justo no dia em que chega em Porto Alegre, com uma bela recepção ainda por água, organizada pelo site Popa e pelo clube Veleiros do Sul (VDS).

Porto Alegre, 24-12-05

Queridos amigos, o pelotão terminou mais uma etapa e conseguiu chegar a tempo para curtir o Natal com a família, era extremamente importante estar aqui este ano e sacrifiquei um pouco da tripulação, além de abdicar de alguns objetivos para chegar a tempo. Estamos reunindo forças para continuar espalhando o ideal farroupilha além de terras e através do sempre. Logo partiremos para o mar, meu destino final. Aconteça o que acontecer, levaremos na bagagem o carinho, o apoio e a gratidão pelo tanto que tantos fizeram a tão poucos, muito obrigado!

Essa é a transcrição do diário desde Pelotas até Porto Alegre:

Pelotas, 5-12-05 Segunda-feira dia 167

Terminei de escrever na Internet só às 22 h, voltar pro clube àquela hora, com filmadora e máquina fotográfica era barra pesada, pois ao lado do clube tem uma favela, melhor dormir pelo centro. Achei o Hotel Rex (nome de cachorro) com diária bem baratinha.

6-12-05 Terça dia 168

Despeço-me dos amigos Márcio, dona Ceoni e das filhas de Paula. Não consegui contato com as filhas de Dílson, de Sta. Vitória do Palmar, que estudam aqui.

Acabo partindo só às 11 h e sigo pelo canal de São Gonçalo (com vento de SW) por duas horas até chegar, pela sexta vez, na Lagoa dos Patos.

Tentei encontrar meus amigos pescadores na vila que há na margem esquerda, mas não moram mais por ali.

Como decidi seguir para Rio Grande, para SW, qual o vento que iniciou a soprar? SW, é claro.

Há muitas gaivotas no banco de areia ali em frente, cascas de enormes siris e paisagens lindíssimas, matas nativas com enormes figueiras carregadas com barbas-de-pau. O vento forte e contra me incentiva a procurar o canal que separa a ilha de Torotama do continente.Assim terei um pouco de abrigo do vento e das ondas.

Não sei onde é, vou seguindo por baixios demarcados por centenas de paus fincados onde os pescadores estendem suas redes de pesca de camarão, em forma de túnel, e redes comuns.

Tu estás lá no meio, 2 a 3 km da margem e o barco quase encalha nos baixios, isto com um calado de 20 cm...

Faço outra pequena travessia e o vento entra de rajadas com tal força que arranca meu boné de “estimação” que quase afunda antes que eu consiga manobrar e fazer o resgate de “homem ao mar”. Aliás, a água aqui já é salgada.

Estou fazendo uma “perna” de 100 km, quero conhecer Henri e Julieta, que me deram muita força através das páginas do Popa, que publica fotos e relatos da viagem.

Além do mais, boa parte de minha infância foi passada ali, nas férias de fim de ano junto aos primos e tios. Foi ali que se criou meu pai, quero recordar os lugares onde ele esteve!

Depois de navegar por cerca de sete horas e descansar ao lado de uma bóia encalhada na praia, chego ao final de tudo e não acho a entrada do canal no meio dos juncos. Foi difícil de chegar até ali contra o vento e não quero desistir, nem que tenha que arrastar o caiaque pelos banhados.

Encontro uma entrada, mas o canal acaba em seguida. Desembarco e me enterro até o joelho numa lama fedorenta entre os tufos de junco e água. Começo a puxar o caiaque com uma corda e tento ver onde se iniciaria o riacho.

- Droga, não consigo ver nada, o vento sopra dobrando o capinzal e eu perdido no meio do banhado.

- Brother, nós vamos nos ralar, já são 18 h, daqui a pouco escurece e tu vais passar a noite sem ter onde dormir.

Estou cansado e quanto mais adentro no banhado, pior ficará para sair.

Sou obrigado a voltar e tentar ver se não é em outro local.

Vou contornando o final da enseada e finalmente encontro onde é a verdadeira entrada, está escondida entre os juncos.

Garças e biguás levantam vôo, há pequenos gaviões pousados nas taquaras que demarcam onde é mais raso. Tartarugas e alguns ratões do banhado nadam apenas com a cabeça de fora. O canal tem uns 10 m de largura (ancho) e tufos de capim margeiam tudo e não te deixam ver nada para adiante. São terras baixas e o cara, sentado no caiaque, não consegue ver nada, pois o capim é mais alto do que eu. Bueno, só me resta seguir em frente e rezar para que tudo não termine num banhado.

Fico impressionado com a quantidade de ratões do banhado, a cada curva que faço, vejo um ou dois. Cheguei a ver cinco de uma só vez!

Eles mergulham ou se metem entre os tufos de capim das margens. Ali tem uma infinidade de caranguejos marrom-avermelhado e com garras grandes e amareladas. Eles se enfiam em pequenas tocas escavadas no barro cinzento e ali ficam beliscando as raízes e alimentos retirados do barro com suas garras e que levam à boca com uma precisão e delicadeza que não combina com a aparência da garra. Fazem isto com as duas patas que se revezam na tarefa de levar comida à boca.Os olhos parecem pequenas antenas com uma bolinha esverdeada na ponta. Interessante de observar.

Vou seguindo em frente sem saber onde estou e o canal vai serpenteando, fazendo curvas e mais curvas. Várias delas com 180º.

Depois de uma hora chego em uma pequena “ponte” que liga a ilha ao continente. A ponte é praticamente formada por duas tubulações onde praticamente passa só o caiaque, é tão estreito que não dá para remar, tenho que seguir apoiando com as mãos.

Quero descansar, mas não posso, são 19 h e recém cheguei na metade do caminho do canal.

Pior, o caiaque não faz as curvas , pois é muito comprido. Isto me obriga a dar marcha à ré e o avanço fica cada vez mais demorado Fica frio, vou encalhando na lama (a parte mais funda não deve ter mais que 30 cm) e a irritação é inevitável, pois quero sair daqui e não sei quando termina além de não enxergar um ovo.

Para complicar ainda mais, aliado ao vento contra, o canal estreitou demais, pouco mais de quatro metros, faz curvas de 180 graus e inicia uma forte correnteza contrária, acho que é maré!

- Senhor, estamos encalhando direto!

- Coloque na água o nosso medidor de profundidade!

- Esse eu desconheço, senhor!

- O chinelo de dedo, se ele boiar, a gente passa!

Começo a praguejar enquanto remo com raiva, pois o frio aumenta e eu não quero perder tempo colocando abrigo, é melhor sair de dia daqui.

Dando mais voltas que casca de caramujo, chego numa lagoa; parece não haver saída, só margens com juncos. Fico revoltado, pois terei que voltar tudo de novo. Depois de me acalmar, sigo contornando o lago para ver se encontro uma saída escondida entre os juncos.

Finalmente encontro e sigo em frente contra a correnteza cada vez mais forte. O caiaque vai raspando na lama e não faz as curvas de jeito nenhum, GRRRR!

Após várias explosões coléricas,às 20 h chego no final do canal da Torotama.

Olho para os lados; não vejo terras altas, apenas juncos a perder de vista. Tenho que seguir remando, mas meu mapa termina aqui, tenho a ilha dos Marinheiros como alvo de proa e não sei se vou por boreste ou bombordo para tomar o caminho mais curto para Rio Grande.

Brother,isso tu decides amanhã, o pelotão está exausto! Procura local para dormir!

Só me resta fazer outra travessia em direção da Ilha dos Marinheiros. Estou sem a capa e as ondas geladas respingam em mim e vão enchendo o cockpit.

Xingo sem parar o vento e as ondas enquanto escurece.

Finalmente chego do outro lado, mas há um “mar” de juncos que de longe parecia ser um campo gramado. Vou enfiando o barco entre os juncos e não chego em terra firme, é melhor voltar e procurar mais adiante.

Já está escuro, remo para Oeste e vou seguindo os juncos até que vejo uma parte aberta entre eles. É um canal de acesso em direção de umas árvores mais ao fundo. Vejo uma casa perto das árvores.

Vou lá pedir autorização para dormir por aqui, penso.

Logo no começo tem uma ponte rústica sobre o canal, arrasto pelo lado e percebo que ali do lado é terra firme, uma rústica estradinha com o trilho de rodas. No meio do trilho tem tufos de juncos que me espetam. Estou tremendo de frio, só me resta armar a barraca sobre os tufos de junco, do jeito que der e colocar uma roupa seca.

Durmo como dá sobre os juncos dobrados, levei várias espetadas doloridas e são quase 21 h. Foram praticamente 10 h remadas, desde que saí de Pelotas, e 1 h de descanso.

7-12-05 quarta-feira dia 169

Escuto o rádio, fez 11 graus esta noite, frio para esta época. Agora são 7:10 h e não sei se contorno a ilha dos Marinheiros por Leste ou Oeste.

Resolvo seguir por Leste, rumo ao canal de onde se vê a ponta Rasa e São José do Norte.

- Soldados, preparem-se para fazer o que Bento não conseguiu, vamos atacar direto o Porto de Rio Grande. Eles não esperam ataque por aqui, ninguém consegue passar pelo canal da Torotama e nosso ataque tem de ser fulminante, sem deixar tempo para o inimigo pensar.

- E São José do Norte?

- Não sei o que Bento queria por lá, só tem leões marinhos e muito vento...

- Acho que o “cara” é o General Neto, esse joga no meu time!

Parto às 8:40 h e vou na direção do canal. Passo por uma vila de pescadores da I. dos Marinheiros onde fazem a Jurupinga, é tipo um licor. Sempre que o tio Zé ia nos visitar em Porto, levava uma garrafa de Jurupinga e chouriço, comprados aqui nesta ilha.

Há centenas de barcos amarrados nos paus fincados nos baixios e tem os mais variados nomes, principalmente de novelas e outras “atualidades” como “Mensalão” alusivo às cracas de nossa sociedade, os políticos corruptos!

Duas horas depois estou de frente para a city, vejo o Regatas, o comando do 5º Distrito Naval e o Hotel de Trânsito, onde eu, o Rojas e o Bello moramos um ano, trabalhando como odontólogo e médicos no Ambulatório Naval antes de ser transferidos para Florianópolis, onde vivemos até hoje.

Vou atravessando e tentando adivinhar onde fica o Yatch Clube de Rio Grande, onde sou esperado, conforme avisou Henri.

Contorno a ilha da casa da pólvora e pergunto a um casal que manobra um enorme veleiro.

- Vocês sabem onde fica o Yatch?

- Sorry, do you speak English?

- Of course! Can you tell me where’s Yatch Club?

Que chique, o cara é “poligrota”! Fala 4 idiomas na base da mímica e alguma coisa de português.

Sou recebido por João, Jessé e outros funcionários. Eles são super legais e me receberam muito bem.

Vou tomar um banho e depois chega Henri e sua esposa Julieta. É o primeiro amigo “invisível” da Internet que conheço pessoalmente.

São pessoas simpaticíssimas e acabamos almoçando no restaurante do clube. Henri conhece cada recanto, cada riacho ou acidente geográfico das lagoas e do canal de São Lourenço que percorre em companhia de sua esposa e de Maíra, que praticamente se criou a bordo do “Talha-Mar”, uma potente lancha onde a maior parte das ferragens e instalação de motor foi feita por ele mesmo.

Depois vou com eles conhecer sua casa que fica num sítio na estrada do Cassino, onde ele praticamente tem uma oficina profissional que usa como hobby. Ali tem acesso para a lagoa onde eles têm vários bichos de estimação da própria natureza que habitam por ali.

Ele tem fotos de um zorro (raposa) que se acostumou com eles e vinha todas as noites comer quase que em sua mão.

Depois, fomos, juntamente com Maíra e Matheus, até a TV FURG onde encontramos Tiago e Franco. Eles são super legais e fazem a matéria enquanto chega o pessoal do jornal.

Eles pedem que eu mexa no caiaque enquanto um deles fotografa.

- Então eu peço que espere enquanto mexo no compartimento da proa e retiro a bandeira do Grêmio entre risos, pois eles são colorados doentes e não esperavam por esta.

Brinco, dizendo que foi “promessa” para o Grêmio voltar para a 1° divisão.

Depois encontro o comodoro do Yatch, senhor Guto, que foi de uma gentileza só e disse que poderia ficar o tempo que quisesse, inclusive me regalou com um boné do clube.

Para matar as saudades, vamos numa sorveteria onde há várias décadas, produzem um delicioso sorvete de tâmaras e nozes.

Para variar, fui numa Internet e depois visitei umas primas.

Dormi num Motel “tri”, de zona.

8-12-05 quinta-feira dia 170

A noite não foi das piores, o pelotão farroupilha acorda bem disposto e sai caminhando pelas ruas de Rio Grande, relembrando cenas do passado.

Encontro uma senhora e uma criança de uns cinco anos na calçada. Ela tem um saco pesado para carregar e o piazinho diz:

- Mãe, deixa que eu carrego isto para ti!

Ele tenta levantar o saco, mas é muito pesado para ele.

- Meu filho, tu és muito pequeno, deixa!

- Deixa mãe, um dia eu vou crescer e vou comprar um carro e te levar para passear.

Achei graça no piá, eles eram muito pobres e isto era algo quase impossível de acontecer.

Anos se passaram, o piá cresceu e virou salgador de peixe na Pescal junto com a família.

Estudou, trabalhou muito e um dia comprou um carro. Levou sua mãe para o alto de um morro no carro e lá eles ficaram olhando o horizonte e começaram a chorar.

Esse piá era meu pai, um homem que se fez na vida.

Eu, meus irmãos, tios e primos devemos quase tudo a ele, que possibilitou que estudássemos enquanto trabalhava longe da família, em São Paulo.

Não ficou rico, mas tinha um padrão bem acima da média e era um batalhador, com 78 anos e seis pontes no coração ainda trabalhava em exportação quando faleceu no dia do aniversário de 80 anos da mãe, um mês antes de eu partir.

De certa forma, minha vinda a Rio Grande foi uma forma de homenageá-lo, relembrar locais onde ele virou a mesa, lutou contra a maré e fez seu próprio destino!

Valeu pai!

Saiu a matéria no jornal, vou ao centro cortar o cabelo onde conheço Nilson e Neri, eles me reconhecem do jornal e Neri quer que eu assine a matéria, pois vai colocar num quadro e pendurar na barbearia.

Essa foi inédita para mim!

Passo pela praça Tamandaré, vejo as tartarugas no laguinho e dali volto para o clube.

Vou partir, encontro Henri que vem se despedir em companhia de um senhor...

Cara, é meu primo Paulo Roberto, que eu não via há mais de 20 anos...

Que agradável surpresa, fiquei imensamente feliz e agradecido a esse amigaço que é o Henri. Bota surpresa nisto!

Resultado, combinamos de jantar e parto só amanhã.

Foi um jantar muito divertido com Henri, a família, Beto e a namorada, Maria do Carmo. Seu Jair, o dono da galeteria, vem me cumprimentar e tiramos muitas fotos, foi muito, muito bom mesmo, estar ali com eles e rir um bocado.

Acabo passando minha última noite em Rio Grande no barco Talha Mar, atracado no Yatch.

Obrigado Henri e Julieta, vocês foram demais!

9-12-05 sexta-feira dia 171

Despeço-me dos funcionários que estão por ali, coloco o caiaque na água e parto às 7:55 h, agora contornando a Ilha dos Marinheiros pelo lado oposto de onde vim, rumo a I. da Torotama.

O local é extremamente baixo, as “coroas” ou bancos de areia estão por tudo, parece que a linha da água não passa de uma fina lâmina onde vejo centenas de gaivotas, garças e biguás pousados a mais de 3 km da margem com água pouco acima das patas.

O caiaque encalha direto e isto me irrita demais, pois tenho que descer e puxá-lo com a corda e não encontro a parte mais profunda. Tenho que fazer uma força dos diabos para arrastar minha “cruz”.

Duas horas depois estou passando pela ponte que liga a ilha dos Marinheiros com o continente. Sigo em frente e começo a travessia para a I. da Torotama, pensando em retornar pelo canal por onde vim, pois o vento parece um NW (contra) e que está rondando.

É muito difícil de achar o canal no meio dos juncos, pois além de tudo, há outros e já não tenho mais certeza onde é a entrada.

Acabo achando uma entrada parecida, adentro pelo canal até que o caiaque encalha. Como a maré está baixa, o que já era raso ficou pior ainda. Encosto para almoçar enquanto observo os caranguejos se alimentando na lama.

Finco um pauzinho na lama para saber se a maré está subindo. Fico parado quase 2 h, a maré subiu quase nada e tento avançar; o canal afina mais ainda, acho que não é por ali, melhor voltar para fora, passar pelos baixios e contornar a ilha.

Estou só perdendo tempo e paciência por aqui. Saí do riacho só às 13 h e fui em frente. Achei mais dois riachos, mas agora não tenho mais certeza e chega de perder tempo.

Vou à direção do pontal da Torotama e o vento está aumentando.

Nessa brincadeira, estarei fazendo um “oito” nas ilhas da Torotama e dos Marinheiros no trajeto de ida e volta.

Passando a ilha dos Carneiros há o pontal e ali o curso muda para NW. Cruzei com bandos de cisnes de pescoço negro e brancos, além das grandes garças. Há umas bem menores, elas têm as patas amarelas e as grandes têm patas e pernas pretas.

Depois do pontal fiquei a favor do vento SE, perdi mais de 7 h de viagem, mas faz parte.

Abro minha velinha e sigo em frente, resolvi aproar para o último ponto que vejo para boreste. Passo por outra vila de pescadores e seus barcos atados aos paus nos baixios.

O vento aumenta muito, as ondas crescem mas mantenho o curso por várias horas até chegar onde queria, já às 20 h.

Há uma majestosa figueira próxima da praia e as nuvens ameaçadoras seguem na direção do sol poente.

Isto causou um efeito lindíssimo que proporcionou o pôr de sol mais lindo que vi até hoje. Foi simplesmente fantástico e as imagens das fotos retratam apenas uma parte daquilo que foi uma das coisas mais belas que vi nestes quase seis meses de viagem.

Contrastando com as nuvens avermelhadas e douradas, os campos ficaram iluminados por milhares de vaga-lumes, parecia “Natal-luz”

Limpei com o facão uma área sob uma pequena árvore para “embutir a barraca” e ter abrigo do vento e da chuva que virá.

Achei umas chapas de ferro que coloco ao redor da barraca para atacar um pouco do vento e da chuva.

10-12-05 sábado dia 172

Choveu um bocado, mas ao amanhecer estava só nublado e um forte vento soprava do quadrante sul.

Agora são 8:02 h, escuto a rádio Pelotense que toca música nativa (chamamé).

A maré baixou muito e vou tocar em frente.

Recorro o lugar, fotografando as lindíssimas matas nativas, repletas de figueiras e corticeiras em flor. As barbas-de-pau penduradas nos galhos encantam a qualquer um. Lugar show de bola!

Estou bem mais adiante do que pensava, como segui afastado da costa, não percebi alguns pontais. Estou há uns 5 km do canal de S. Gonçalo.

Remei mais de 9 h, estou meio quebrado e moído, mas o vento forte parece ser favorável.

O vento é quase de rajadas, leva para fora. Penso em sair sem vela, tenho medo de perder o controle e virar!

- O quê?

- Não me faz te pegar nojo!

- Tu és ou não és filho do Rio Grande?

- Com muito orgulho, senhor!

- Então, meu amigo, hay que tener “huevos”!

- A morte é uma coisa secundária, mas o orgulho de morrer peleando, sem pedir o penico, não tem preço.

- Tem coisas que só o pelotão farroupilha faz!

Então eu armo a vela e me vou porteira afora, corcoveando nas ondas e segurando meu cavalo criolo que empina ao galgar as coxilhas que crescem à medida que nos afastamos da costa.

Em meia hora já estou passando pela boca do canal de S Gonçalo e tenho que tomar uma decisão rápida.

Seguimos a costa ou tocamos para a ponta da Feitoria que nem dá de ver?

- Senhor, os homens estão prontos para seguí-lo até a morte!

- As decisões que tomar nessa guerra sem fim serão executadas com o sacrifício da própria vida sem vacilo!

- Então, senhores, calar baionetas e preparar para uma longa peleia, quero que sintam orgulho de vocês mesmos .

Já sei para onde fica o Pontal, marco o curso na bússola e aprôo o Maktub na direção do nada.

- Soldado, como está nosso estoque de “farinha no saco”?

- Transbordando, senhor!

- Marcar alvo de proa e preparar para o combate!

E lá se vai o nosso pelotão, em busca dos sete pontais da Lagoa dos Patos (Feitoria, Quilombo, Vitoriano, Dona Maria, Dona Helena, Santo Antônio e Formiga).

É uma marcha inexorável para a retomada de Porto Alegre.

Na frente de nossos heróis, grandes batalhas estão por vir, mas eles aprenderam a enxergar além do horizonte e seus ideais estão aonde os olhos não conseguem ver, lugares onde só os fortes de coração e de ideais conseguem alcançar.

Gozado, já tive pavor de fazer muito menos que isto, mas agora, apesar do respeito que sinto pelo campo de batalha, sei o que meu pelotão é capaz de fazer, só não sei o que irá acontecer quando virar, mas isto a gente aprende quando acontecer.

Tirando as corredeiras e o choque casual com uma bóia, nunca virei, por pior que fosse o vento e as ondas.

Passando o S Gonçalo, há umas armações grandes de um farol abandonado e que marcam a entrada para Pelotas. Um pouco adiante, cruzo com bóias de sinalização do canal que vai para Porto.

Como sigo a favor das ondas e do vento, tudo é mais tranqüilo, apesar de grandes ondulações que quebram, formando os famosos “carneirinhos”.

O vento parece não fazer tanto barulho, sinto uma estranha sensação de liberdade e paz no meio de tudo isto. É um privilégio para aqueles que se aventuram um pouco mais além dos limites de segurança.

Acho que deve ser rotineiro para os velejadores, mas para marinheiros de primeira viagem é uma sensação diferente, algo que embriaga os sentidos.

Passo por bóias de boreste (verdes) de n° 52 e 54 e aposto corrida com um enorme navio (Guara) que parece vir na minha direção.

Nossos rumos convergem para a bóia de bombordo de n° 51 (boa idéia), que é vermelha. Ele só ganhou por “bico de proa” porque parei para fotografar.

Ali nossas posições se invertem, eu cruzo o canal e ele segue mais perto da costa.

- Senhor, esse navio não é de nada, foi buscar abrigo do vento e das ondas lá perto da costa!

- Acho que isto foi uma manobra evasiva, ficou com medo de nosso pelotão!

Apesar de longe, há paus fincados para redes de pesca e isto serve como sinalizador de águas mais rasa, onde as ondas ficam bem perigosas e entram de través, estourando sobre a tripulação.

- Atenções, todos para boreste, cravem o remo no corpo do inimigo e usem isto para manter o equilíbrio.

Algumas vezes o maktub desliza de lado, mas a tripulação compensa o ataque lateral e consegue manter a embarcação em posição de combate.

É concentração total, não pode haver vacilo.

Como não consegue nos por a pique, o inimigo se infiltra no cockpit e vai enchendo perigosamente, não há como expulsá-lo, pois estão todos lutando encarniçadamente com força numérica extremamente inferior as do inimigo.

- Senhor, vamos afundar!

- O Cabo Esponja e os medidores de profundidade estão nadando no porão!

- E a usina?

- Parece sem forças, só saberemos como está quando tivermos que ligá-la.

- Acionem as bombas de porão!

- Estamos sem, senhor!

- Mandem todos suportarem o ataque até chegarmos na Ponta da Feitoria, ali diminuirá um pouco o ataque imperialista e tentaremos retirar o inimigo do porão.

- Senhor, há uma frota de barcos se aproximando pela proa, cerca de 15 e outro navio se aproximando pela popa.

- Esses da proa são pescadores, estão seguindo para a colônia de Barro Preto.

- Alguém lembra onde fica o canal?

- Negativo!

- Aproem na direção daqueles paus, ali é água rasa e ele não tem calado para combater...

- Ele está vindo da costa...

- São uns covardes, não terão coragem de atacar!

Tive que tirar o boné e os óculos, devido a força do vento e das ondas.

Finalmente, depois de 3 h, consigo chegar na Feitoria e ali, ao largo, uso uma garrafa plástica cortada para retirar o que dá de água.

Há barcos de pescadores na beira, na reversa das ondas. O pelotão segue firme em frente. Pretendo parar só no arroio Corrientes para aproveitar esse vento. Estou começando a achar que consigo chegar hoje mesmo em São Lourenço do Sul. É só ter coragem para continuar nesta peleia por mais algumas horas.

Vejo cavaleiros na costa, às vezes, os cavalos seguem a galope e mesmo assim estou seguindo mais rápido que eles. É a força do vento aliado ao ato de remar sem parar, isto desnorteia o inimigo.

Às 13:40 h, quase 5 h de sufoco, chego no arroio Corrientes, saída da Lagoa Pequena. Pretendia seguir por ali, mas a força de vento mudou os planos no ato, o pelotão não planeja, executa!

Como a ração de guerra e volto pra peleia, não vamos dar trégua a esse inimigo que nos bombardeia sem parar.

Sigo paralelo a costa, cerca de 2 a 3 km para fora, onde as ondas quebram menos.

Quanto mais me aproximo de S Lourenço, mais as ondulações ficam grandes e nos atacam por boreste.

- Atenção, vamos tomar S Lourenço, se alguém deixar o Maktub virar agora, será executado sumariamente!

Os homens sabem que ele fala sério, Tenente Issi não é amigo de ninguém em batalha, apenas luta por seus ideais e tudo é válido para alcançar seus objetivos.

- Senhor, são apenas 18 h, podemos navegar até às 20:30...Fazer os 100 km/dia que tanto queríamos

- Negativo! Temos simpatizantes da causa em S Lourenço, vamos saudá-los!

- Afirmativo, positivo, operante!

- Atenção tripulação, há rochas na entrada do canal, assim que avistá-las, arribem na direção das ondas e cuidem das rochas!

E assim nossos heróis adentram no canal do arroio e aportam no Iate Clube de S Lourenço.

Sou muito bem recebido pelo comodoro, senhor Euclimar, mais os diretores Rogis e Joel.

Mais tarde chega Vandir, que me emprestou um ponche e um barco para passar a noite no gelado inverno de 2000, quando cheguei de caiaque e windsurf.

É a quarta vez que fico alojado no Iate (84 e 85 de windsurf, 2000 e agora) e sempre fui muito bem tratado, por isto gosto tanto daqui.

Tomei um banho e segui, a pé, por uma estradinha de chão até centro. Em menos de 2 h a Lan House (Ciber) iria fechar, tentei baixar as fotos e apenas li os e-mails.

Agora são 23:30 h, estou numa lanchonete e amanhã me mando. Pego um barco para atravessar o arroio de volta ao Iate. Ao lado do clube, está havendo o “Aldeia Atlântida” e o camping está repleto.

É uma zoeira total, há quatro fontes de altíssimo som e galetinhos, que eu apenas olho passar.

Tenho que fazer algo:

Tiro a dentadura, arremesso na direção das gurias e digo:

- Vai lá e morde!

He, he!

- Senhor, já não está meio “passadinho” para a caça de “galetos”?

- O senhor está cheio de riscos perto dos olhos...

- Soldado, eu vou à luta sempre, nem que seja para ser “vaiado”.

- Quanto aos riscos, cada um deles representa uma virgem abatida!

- Nossa, são centenas...

11-12-05 Domingo dia 173

Armei a barraca ao lado da rampa e do caiaque. Digamos que foi uma noite agitada, pois o som rolou até agora, 8 h da manhã.

Vou me despedir de todos, encontro seu Euclimar que me pareceu ser uma pessoa simples e amiga, inclusive, ontem, me ajudou a tirar o caiaque da água.

Ele está tomando chimarrão com Rogis e Robinson, diretor de vela. Fico ali, conversando com eles e tomando mate. O sr. Robinson participou da viagem do veleiro Passatempo, relatada nas páginas eletrônicas do www.popa.com.br .

Ele é muito legal e é muito determinado em seus objetivos, boa pessoa.

Eles me acompanham na saída e vejo Senhor Euclimar e sua esposa, dona Didi acenando perto da saída do canal, muito obrigado, amigos.

Falei apenas por telefone com o Sr. Antônio Moreira, ele chegou de viagem e eu já estava saindo...

Parti só às 10:30 h e rumo direto para o que penso ser a Ponta do Quilombo. Lá pelas tantas, um veleiro que estava para a costa atravessa pela proa e se aproxima por boreste, é o veleiro Alvorada, do Sr. Valdir, ele recebeu rádio do Sr. Robinson avisando que eu iria passar por ali. Pergunta se não preciso de nada, mostra onde realmente fica a ponta do Quilombo e segue para S Lourenço. São pequenas coisas que fazem a gente se sentir bem, isto é S Lourenço, “A pérola da Lagoa”.

Às 13 h paro próximo de um pontal, abrigado do vento contra, para descansar e almoçar. Estou cansado destes 2 dias desde R Grande e aproveito a parada para tirar fotos de uma linda flor de cactos e dos gigantescos ninhos de cocotas (caturritas, cotorras).

Parto às 14:40, seguindo contra o vento e as ondas. Ou minha bússola está louca, ou estou seguindo para E-SE, rumo ao pontal do Quilombo.

Sigo bem contra o vento e as ondas. Às 15 h chego no pontal do Quilombo. Ali tem uma pequena ilha de areia, uma “coroa”, na verdade.

Dali, aprôo para o último capão de mato que posso ver para boreste,onde creio que seja a foz do R Camaquã.

O vento aumenta de intensidade, quase de rajadas, mas as ondas não estão tão grandes assim. A água , que era esverdeada, transparente e salgada, ficou marrom chocolate, deve ter ficado doce.

É um avanço lento e irritante com esse vento que me está llenando las pelotas, pois além de dificultar o avanço, as ondas estão enchendo o cockpit e me deixando encharcado.

Três horas depois, estou chegando na foz do “rio das três bocas”, como é chamada a foz do Rio Camaquã.

É um local raso, lindo e cheio de pequenas ondas devido aos bancos de areia. Essas ondas irritantes vão me atacando de través, pois estou buscando local para desembarcar e descansar.

Estou muito cansado, o vento contra aumentou muito no final de tarde e só vai aumentar. Como cheguei onde queria, resolvo procurar local para acampar aproveitando que há lindos capões de mata nativa que darão abrigo contra esse vento irritante que bate nos ouvidos há horas.

Elegi uma enseadinha cheia de depósitos de folhas e galhos que formam um “colchão” macio na margem. Os pés afundam ao caminhar sobre eles. Há uma praia de areia com gramados ao lado e o mais importante: ali está super bem abrigado do vento SE.

São apenas 18 h, mas estou satisfeito de ter vindo até aqui num péssimo dia de forte vento contra.

Planifico a areia grossa sob uma pequena árvore e ali monto a barraca. Depois vou passear pelos banhados e adjacências do local. É tudo muito lindo, o final de tarde , os pássaros e as aves dos banhados repletos de flores e cores.

Depois sigo pela margem repleta de troncos que viajaram pelo rio até serem depositadas em sua foz.

Há várias entradas de riachos que alimentam os banhados onde até ratões do banhado voltei a ver. Há, também, tartarugas e ovos desenterrados e devorados por graxains.

O por de sol por trás de grossas nuvens foi um espetáculo a parte que fotografo com os troncos da margem em primeiro plano.

Ao retornar para a barraca, deparo com dois pássaros de vôo silencioso, com uma cauda enorme. Ou são o “dorminhoco” ou Urutaus, pois pousam no tronco, quase mimetizados, e ficam me olhando. Acho que consegui filmá-los!

A lua está quase cheia e iluminou o início de noite.

12-12-05 segunda-feira dia 174

Acordo e um fresco de um bezerro está lá no caiaque, mordendo a vela. Berro com o sacana e toda a bicharada sai em disparada. Só faltava ele me detonar a vela!

Parto só às 10:15 h, rumo E-SE e dá-lhe vento contra!

Foi uma dureza só em direção do pontal do Vitoriano, por várias vezes a tripulação pediu para parar e descansar, mas o comando achou melhor fazer isto só depois de conquistado o pontal.

Onde já se viu parar para descansar no meio de uma peleia?

Foi uma batalha de paciência e resistência de ambas as partes, pois o feroz inimigo defendia suas posições com unhas e dentes.

O caiaque foi enchendo aos poucos, ficando mais pesado (por baixo, entra uns 10 litros de água) e isto faz uma diferença enorme.

- Senhor, o cabo Esponja está flutuando pelo porão!

- Esse cara bebe todas e depois não pára em pé!

- Deixem-no, já está acostumado!

- Quero todos unidos, o inimigo está impondo uma feroz resistência e se desistirmos agora, pensarão que estamos enfraquecendo. Juntem suas reservas morais e lutem como nunca!

Ondas estouram por todos os lados, mas o pelotão segue em frente e após 4:15 h de duríssima peleia, toma o pontal do Vitoriano, às 14:30 h.

Tiro uma foto no pontal empunhando o facão, mereceu uma comemoração, como foi difícil chegar até aqui!

Foram quase 4:30 h para avançar pouco mais de 10 km.

Havia cerca de 30 tartarugas que tomavam sol nas areias do pontal e que se jogam na água ao menor movimento. Bato fotos, caminho pela areia grossa do pontal, esvazio o barco.

Como é difícil para avançar, cada km está sendo conquistado a unhas e dentes.

Seria dia de ficar chocando ovos, mas nosso pelotão não nasceu para isto.

Resolvi encarar tudo, chega de respeitar demais!

A tripulação se revolta, às vezes, mas o nosso ideal é mais forte que nossas limitações físicas.

Nada acontece esperando, pelo menos aqui!

Tudo pronto, sigo em frente, agora no curso NW com o famigerado SE pela popa. Agora é como descer uma lomba, pois abro a velinha do caiaque e o vento que me detonava pela proa, agora ataca pela alheta de boreste, quase popa. São 16:15 e o vento aumenta no final de tarde.

As ondulações estão com mais de um metro, estouram de través e começam a encher o caiaque aos poucos, aliado ao fato de que surgem nuvens ameaçadoras no horizonte.

Sigo em frente e quase viro por 3 vezes, com ondas estourando forte, mesmo afastado da costa.

Pouco mais de 1 h e estou passando diante do engenho Areal, do IRGA (Instituto Rio Grandense de Arroz), a mesma distância que levei 4 h para fazer seguindo contra o vento.

A costa começa a se voltar para NE-E e o vento de rajadas fustiga sem parar, agora quase de proa.Está cada vez mais forte e não irei longe assim.

Resolvo seguir na direção de enormes montes de areia onde há a entrada de um canal de irrigação. Ainda é cedo, mas parece que vem chuva e resolvo parar mais cedo e encontrar local abrigado.

Logo na entrada tem uma cerca que passa sobre a água mas o maktub passa por uma falha e assim vou seguindo para dentro do canal até encostar, abrir uma clareira ao lado do canal e montar acampamento.

Pelo menos estou livre do pior do vento, esse vento me irrita ao soprar nas minhas orelhas o dia inteiro.

13-12-05 terça-feira dia 175

Parto às 9 h e o corno do vento continua contra. Este hodido está me detonando dia a dia, estou podre e ele só faz ficar contra. Já deveria estar acostumado, mas começo a ficar revoltado.

Só me resta seguir remando entre 3 e 4 km/h, fazendo o dobro de esforço que faria com vento favorável. Em um dia de vento favorável, fiz mais de 60 km em 8 h remadas e ontem levei mais de 4 h para fazer 10 km...

Não tem como planejar nada, fica tudo por conta das condições que surgem e desaparecem a todo o momento.

Passo por uma lindíssima sede de fazenda onde começo a tomar o rumo E-SE de novo. Acho que a bússola esta louca, eu deveria estar indo para o quadrante norte, mas isto só acontece depois de ultrapassar os pontais, depois segue para NW e vai fazendo a curva para outro pontal até ficar voltado para SE. Altos estranhos!

Duas horas depois estou parando um pouco depois da fazenda Flor da Praia, onde acampei sob uma figueira. A figueira não existe mais, a lagoa avançou sobre a margem.

Sigo em frente com esse ser maldito soprando contra cada vez mais forte. Parei aqui, logo depois de um levante e sentei ao lado de uns juncos para comer algo e descansar sem ter que ouvir este maledeto me soprando nos ouvidos. O cara acorda, olha as árvores se dobrando, sabe que é contra e que terá um dia duríssimo pela frente. Não dá ânimo de sair, porque sabe que vai ser um dia de sacrifícios e de muita persistência se quiser seguir em frente.

É nestas horas que o cara tem que enxergar mais adiante, onde o sol brilha e não se pode ver..

Finalmente, às 15:25, chego no pontal de dona Maria. Comemoro muito a chegada até ali. Há um bando de biguás pousado com outro de gaivotas e que pintam de preto e branco o pontal amarelado e cheio de ondas.

Dali eu posso ver a Ponta da Formiga, há mais de 100 km, lá está a entrada para o Rio Guaíba, uns 60 km do centro de Porto Alegre.

É, estamos chegando!

Agora estou aproando para NW, mas está tarde para chegar em Arambaré, ainda tem uns 20 a 25 km .

- Soldados, preparar para combate!

- Mas senhor, estamos exaustos...

- Não quero saber, vamos até Arambaré!

Abro a vela, aponto na direção do nada, não dá para identificar a cidade, então tenho que seguir o mais afastado possível da costa para não ficar no contra vento, quando a margem começar a fazer a curva e virar para SE de novo.

Então eu parto às 17:30 h com ondas não tão grandes mas que irritam ao invadir o cockpit. As ondulações crescem à medida que avanço e várias ondas de mais de um metro começam a quebrar, pois o vento está ficando cada vez mais forte e as coisas estão ficando complicadas. Quase virei duas vezes, não posso perder a concentração. As horas vão passando e não consigo me aproximar de uma chaminé que demarquei como alvo de proa.

Para complicar, estou quase no contra vento e fico muito próximo da costa.

Tenho que baixar a vela para remar assim, mas as ondas quase conseguiram virar o caiaque neste momento. Estou exausto, o sol já se pôs, escurece e não chego nunca na barra do arroio Velhaco, onde está o Clube Náutico de Arambaré.

Menos mal que a lua cheia ilumina legal.

Às 21 h entro no arroio, e encosto na rampa do clube.

O vento está tão forte que assobia nos cabos dos barcos e fios de luz. Ainda por cima esfriou.

Falo com o sr. Orlando e depois com dona Daia que autoriza que eu acampe aqui.

Estou gelado e encharcado, antes de dormir vou ao centro comer algo e comprar comida, pois os estoques estavam baixos. Retorno às 23 h e acabo dormindo num quiosque com colchonete e abrigado do vento.

O cansaço e a estafa são tantos que não consigo quase dormir. Dureza, brody!

Além de tudo, cheguei aqui com o ombro estralando.

Ao lado do clube tem uma ponte de ferro onde só passa veículos em um sentido, depois é liberado para que passem no outro sentido.

O interessante é que a ponte se chama João Goulart e o arroio, Velhaco...


14-12-05 Quarta dia 176

Resolvo escrever e mandar notícias pela Internet, aqui não tem, tenho que tomar um busão, ir até Camaquã e voltar. O vento contra sopra forte, então não irei perder muito mesmo.

Tomo um delicioso chimarrão com dona Daia, Orlando e família e o sr. Marlon. O sr. Mário, que me recebeu em 2000, ainda é o comodoro, mas não está.

Pena que só tem ônibus às 13 h e retorna às 18 h. Terei pouco tempo e não dará para transcrever o diário.

Apenas tive tempo de caminhar um monte, achar uma lan house (ciber) e ler os e-mails dos amigos.

Retorno para Arambaré, como um x-burguer na lanchonete de Gustavo e Jairo e dali retorno ao clube.

15-12-05 quinta-feira dia 177

Arrumei tudo, tomei café na padaria em frente, despedi-me dos amigos e parti às 10 h, rumo ao pontal de dona Helena, no rumo E-SE.

Adivinhem quem está contra?

As ondas irritam, pois a água vai enchendo o caiaque aos poucos, apesar da capa. Tem o vento me batendo nas orelhas, a praga da gota que sempre tem no mostrador do relógio ou na bússola, o encosto que escorrega e a esponja batendo nas pernas ao boiar no “porão”.

Sei que aquela água aumenta o peso, diminui a velocidade e me cansa mais.

Ainda por cima, o bico do barco enterra nas ondas e isto “trava” o avanço.

Eu tento me controlar, mas não consigo. Os ataques de fúria se repetem e chego a ficar rouco de tanto berrar nomes quando uma onda diferente consegue me atingir de jeito. O vento começa a aumentar de intensidade e o barco avança a berro.

- Soldados, tenham cuidado, o tenente está raivoso e “prometeu” aquele que se atravessar em seu caminho!

- Por que ele está tão bravo?

- Falei com o Dr. D. K. Bêssa.

- Ele disse que isto é TPN (Tensão Pré Natal)!

- E isto é grave?

- É temporário, os sintomas são stress físico, emocional e certo comportamento feminino...

- Comportamento feminino?

- Sim, aquela irritação desmedida, sem sentido. Se perguntares o porquê, nem mesmo o paciente sabe, parece que ficou louco...

- Nestas horas é melhor sair de perto...

- Então ele deve ter dores de cabeça, enxaquecas, nada de sexo...

- Não, isso tudo junto é exclusivo do cromossomo XX e aí não tem cura!

- É cíclico, como o herpes!

- Em parte, tem a ver com a dieta !

- Ele passou a vida comendo carne de frango, galetinhos. Principalmente peito e coxa. Sabe como são estas “rações”; de alguma forma, alguns hormônios passam para a corrente sangüínea.

- E qual é o tratamento?

- Uma cerveja gelada, futebol,conversar com os amigos e mulheres... Tudo junto ou separado, a cura é instantânea!

- Ele vai melhorar assim que restabelecer a dieta, agora tem que comer o que aparece pela frente e nem sempre é o melhor...

Bueno, irritado ou não, sigo em frente por 3:20 h até chegar próximo do pontal, onde há um lindíssimo capão nativo com dunas altas, uma enorme figueira com o tronco formando um túnel, uma bóia encalhada na praia, pássaros e cigarras fazendo enorme algazarra.

Aqui tem uma bela área sombreada onde almoço, escrevo e descanso.

Fiquei muito tempo tentando localizar uma cigarra para filmá-la produzindo o som ao raspar as patas em seu abdômen. Encontrei uma, mas a preguiçosa não quis fazer o “show”.

O vento aumenta cada vez mais, a travessia para o pontal será uma dureza, pois aqui é a parte onde a Lagoa fica cada vez mais larga, até chegar perto de 70 a 80 km. Com esse vento forte e contra, ondas grandes e aumentando, a briga será pior que peleia de foice no escuro.

Sei que serão mais 2 a 3 h de remadas duras e sem descanso contra o “mar” que se formou antes de conquistar o Pontal de Santo Antônio.

Tenho que me preparar psicologicamente para não entrar em “TPN” de novo.

- Soldados, calar baionetas!

- Os imperialistas estão desesperados, só nos falta dois pontais até o Rio Guaíba e ali ninguém irá nos deter.

- Quero que lembrem de todas as batalhas que tivemos que vencer para chegar até aqui.

- Quando estiverem por esmorecer, quero que lembrem que são do Rio Grande e que estão lutando por ele e por suas idéias de liberdade.

Este pedaço do Brasil nós conquistamos a custa de muito sangue e sacrifício de nossos antepassados e cabe a vocês a honra de mantê-lo.

Lembrei da música de Elaine Geissler que diz mais ou menos assim em relação a Porto Alegre:

“Há muito tempo que ando, nas ruas de um Porto não muito Alegre e que, no entanto, me traz encantos e o por de sol me traduz em versos.

... de seguir livre muitos caminhos, arando terras, provando vinhos, de ter idéias de liberdade, de ver o amor em toda a cidade...”

Adoro a música e a letra que não sei direito. Vou cantarolando por partes enquanto saio para a peleia contra as altas ondulações que atacam furiosamente e sem pedir licença.

Eu tento manter a calma mas o vento de rajadas aumentando e as ondas invadindo o caiaque enlouquecem o comandante que fica colérico, esquece de avançar e bate com o remo nas ondas mais altas, querendo devolver os golpes na mesma medida que recebe.

A coisa está tão difícil que sou obrigado a mudar o curso um pouco para não ir tão direto, pois o Maktub sobe as ondulações enormes, fica com mais da metade do casco no ar e despenca na cava. Daí a outra vem por cima e “lava” a tripulação. O barco mergulha de bico e “trava”. Então eu sigo de forma que pegue as ondas um pouco de través e não trave tanto.

O pior é que se eu cansar ou algo acontecer e não puder remar, não chegarei em lugar nenhum, ficarei seguindo o rastro das espumas.

Neste misto de raiva e loucura encontro forças para avançar e chegar no pontal pouco mais de 2 h depois. São 18:30 h, há previsão de chuva para amanhã, é melhor encontrar local abrigado do lado de dentro da enseada de Tapes que acabei de cruzar. Por fora as ondas estarão enlouquecidas e há poucos locais abrigados, isto daqui há umas duas horas de remada difícil.

Penetro entre os juncos, encalhando em bancos de areia e espantando os pássaros dali, principalmente gaviões caramujeiros. Foi difícil, mas encontrei terra firme, um local utilizado por pescadores entre os juncos. Está cheio de restos de violas e traíras que eles deixam fora da água e agora deixa tudo com cheiro de bicho morto e moscas varejeiras. Porque estes cornos não jogam os restos na água? Menos mal que o vento leva o cheiro na direção de Arambaré.

Armo abarraca sem muito abrigo no teto, mas bem protegida do forte vento que vem do outro lado do pontal. Escuto um rádio antes de dormir.

16-12-05 sexta-feira dia 178

Amanhece nublado, parto às 8:30 h, contorno o pontal de S Antonio e sigo para N-NE. O vento se resume a uma brisa fraca e contra (é claro).

A costa é constituída de dunas e plantações de pinus. Está tudo bem, mas somos atacados por centenas de mosquitos verdes e mariposas da mesma cor.

As pragas vêm pelos olhos, ouvidos e braços. Tento não perder a calma e sigo remando, mas eu não tenho pavio, explodi na mesma hora. Paro de remar e as pragas viram suflê de mosquito verde. São milhares e como não tem vento e eles não têm o que fazer além de infernizar, são esmagados sem dó nem piedade.

Irritado ao extremo com estas pragas, sigo em frente por duas horas, até parar nas dunas, explorar o pontal que ali não tem mais do que 300 m de largura e caminhar um pouco.

Vejo a cidade de Tapes do outro lado e depois sigo por mais duas horas até chegar num local cheio de árvores tombadas, com as raízes à mostra. Há uma bem próxima da beira e que forma uma boa área sombreada para descansar e almoçar. Agora são 13:15 h, acabei de ouvir trovoadas, parece que vem aqui de trás, melhor esperar para ver o que acontece.

Deito um pouco num mato de pinus, mas encho o saco de esperar e resolvo seguir em frente. Aqui está cheio de tripas de peixe.

Por que os pescadores não colocam na água? Além disto, há milhares de conchas de mexilhões dourados, uma praga asiática que veio aqui colada nos cascos de navios e que invadiu os rios e virou terror para quem faz a manutenção das represas, já estavam pelas bandas de Itaipu.

Elas causam um mau cheiro terrível, pois estão apodrecendo.

Acabei partindo só às 15 h, já com forte vento de través.

Prossigo por mais de 2 h até chegar no “pinheirinho”, o solitário eucalipto que me serviu de referência na travessia da Lagoa, em 2001 e onde quase “bati as botas”, por causa de violenta tempestade durante a madrugada, no meio da travessia de 24 h. Foi barra pesada, quase morri, mas ainda não era minha hora!

Relembro das duas noites que passei ali e de outra, com o windsurf em 85. Em todas elas dormi sem barraca, protegido pelas arvores das dunas e que agora produzem uma fruta parecida com pêssego. Experimentei, mas segui a regra do CAL, do meu primo Carlos. Frutos Cabeludos, Amargos ou Leitosos

não devem ser ingeridos, podem ser venenosos. Este era azedo!

Choveu fraco, vejo a ponta da Formiga e mal visualizo a Ilha do Barba Negra.

- Doutor o tenente Issi está com a visão bem pior do que quando iniciou a viagem.

- Isto é normal, foram dezenas de horas na frente do computador, além disto ser um mecanismo de defesa nos homens mais experientes...

- Mecanismo de defesa?

- Sim, enxergando menos, eles não percebem certas mudanças e continuam chamando as mulheres de “meu amor” ou “você continua linda”; assim preservam sua integridade física...

Sigo em frente com chuva fraca e muitas trovoadas, parece que a tempestade está passando ao largo. Depois ela parece vir na minha direção, melhor seguir em frente.

A tarde vai passando, cruzo com dois barcos de pesca fundeados lado a lado, depois com 4 emas que passeiam na margem e sigo na direção das cabanas de pescadores onde fiquei em 2000, no local chamado “panelinha de ouro”. Fica perto das enormes falésias ou dunas de areia gigantes que têm por volta de 20 a 30 m de altura.

Brother, o vento forte e frio, as inúmeras rochas submersas e o final de tarde não foram suficientes para convencer o comando de passar a noite ali.

Difícil de achar local para acampar, mas ali há um cheiro de podre no ar, lixo espalhado por tudo... Melhor dormir no mato com chuva e tudo, mas em um local com um astral melhor.

Já escurece, acho uma parte sem juncos, mas muitas praias são de rochas e fica difícil de achar local que me proteja da tempestade de raios e trovões que se aproxima.

Acabo me convencendo de que o melhor é “embutir” a barraca sob uma pequena arvorezinha antes que escureça mais ainda e antes que a tempestade inicie. O lugar é cheio de lixo plástico, mal cheiroso (milhares de mexilhões dourados mortos) e pouco abrigado.

As falésias estão logo atrás, a areia é bem grossa e há belas matas nativas nas dunas, pena que em terreno inclinado.

Finalmente vejo as nuvens que causam clarões intermitentes na noite que se inicia. É o exército de Thor que finalmente nos encontrou. As divisões “Panzer” dos imperialistas, o que eles tem de melhor para nos combater.

É o último recurso deles para defender o forte da Ponta da Formiga.

E a tribo de Touro Sentado?

Aqueles foram derrotados em 2000 de uma maneira tão indiscutível que ele concordou em passar seus últimos dias em uma reserva, escrever um livro e contar como foram enganados.

Parece que morreu, foi enterrado na curva do rio...

Atenção, são 3 h da manhã! Desaba o maior temporal e estamos combatendo o exército de Thor que chegou com tudo. Até o cabo Esponja está na peleia e expulsa o inimigo que tenta invadir nosso acampamento. A arvorezinha está resistindo bravamente e faz uma primeira linha de defesa contra a artilharia inimiga. É muito forte, mas acho que vamos conseguir manter nossa posição.

17-12-05 Sábado dia 179

Cara, que temporal! Foi muito forte e a quantidade de raios aliada à força do vento não me deixaram dormir.

Após este violento bombardeio o inimigo tremeu de medo ao perceber que as forças farroupilhas se erguiam de suas trincheiras e começavam a se organizar para o combate.

- Senhor, vamos bater em retirada, esses caras não podem ser normais!

- Atacamos de todas as formas e eles continuam avançando...

Coloco o que restou de minha camiseta “Gaúcho acima de tudo, Tchê!” na coberta de proa. Temos que tomar a Ponta da Formiga com a bandeira do Rio Grande hasteada, que o inimigo saiba por que está morrendo!

Agora são 9:19 h, tudo que molhou já secou no sol que brilha forte. Está levantando um vento que me surpreende, é favorável.

O pelotão farroupilha já está preparado para mais uma peleia!

As ondas estão pequenas, o vento parece ser um SW, melhor impossível. Seguimos direto para a ponta, observando uma pequena ilhota de Grandes rochas por bombordo e a ilha do Barba Negra por boreste, quase de frente para o morro da Formiga.

Levei 2 h para chegar no morro, o caminho mais curto seria seguir para a ponta Escura e dali para a ilha do Chico Manoel, do Veleiros do Sul.

As ondas já estão muito grandes, ali termina a Lagoa dos Patos e inicia o rio Guaíba.

- Senhor, conquistamos a Ponta da Formiga, o último baluarte da Lagoa dos Patos!

- Anote isto no diário de bordo. O campo de batalha está cheio de mortos e feridos.

- Que sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra!

Como desejo conhecer o Rodrigo, do veleiro Asterix, que está fundeado em Itapuã, rumo para o outro lado, quero tirar umas fotos do farol de Itapuã, onde passei na viagem de Wind, em 83. Passo pela praia da sepultura, vejo a cruz entre as pedras e inicio a travessia, sem escalas.

Não consigo ver o farol e marco como alvo de proa a praia de Fora.

Finalmente vejo o farol e resolvo filmar, mesmo com ondas muito grandes e quebrando. O vento já está de rajadas, ondulações com mais de 1 metro. Vejo a praia do Tigre, onde fui jogado (de windsurf) contra as rochas e salvo por um “maluco” que me viu de binóculo.

Resultado, as ondas me pegaram de jeito, encheram o cockpit e quase virei com filmadora e tudo. Mesmo assim filmei o farol, as altas ondas e as estranhas correntes que se formam ali pelo vento doido que sopra ao bater nos morros e formar ondas grandes e em todas as direções.

Consigo passar do farol e me abrigar no pontal logo depois dele.

Esgoto o caiaque e encontro um local de desembarque entre as pedras. Ali é bem abrigado e sou recebido por Paulo Zabbo, o faroleiro, depois de 3:20 h navegadas desde o acampamento.

Paulo é simpaticíssimo e super legal. Ele mostra as instalações, o farol, conta que trabalha aqui há 4 anos e que o farol está sob responsabilidade do estado. Fico ali por cerca de 1 h e sigo direto para a última ponta que posso ver, logo depois da praia da Pedreira. Ao fundo vejo a praia do Araçá e a praia do Sítio.

O parque de Itapuã é lindíssimo e foi com alegria que soube que todas as casas de invasão na praia de Fora foram removidas.

Há lanchas que desafiam o forte vento e as ondas para pescar.

Há bancos de areia onde as ondas quebram muito. Bóias demarcam o canal que passa entre a I do Junco e o continente. Passo por praias lindíssimas e chego junto a um trapiche, já na praia das Pombas. Há pessoas tomando banho de rio ao lado do trapiche e dois caras fardados que me acompanham enquanto sigo pela praia.

Não gosto de “otoridade” e já estou pronto para armar confusão se eles tentarem me impedir de chegar na praia. Mas não, os caras são super legais e ficam surpresos quando falo de onde venho.

Anderson e Alexandre se oferecem para me levar de moto a um telefone público, mas no final Alexandre me empresta seu celular para falar com Rodrigo, que fica surpreso, eu estava sendo esperado só para o dia 20, mas cheguei 3 dias antes.

Com este vento, teria chegado hoje mesmo em Porto, mas queria conhecer meu amigo invisível que tanto me apoiou através de e-mails.

Acontece que ele não está na vila de Itapuã e se tivesse seguido até lá, teria ficado no contra vento deste forte vento SW.

Chega o administrador e dali toco direto para a ilha do Chico Manoel. A vela ajuda muito, mesmo com vento de través.

Em duas horas passei pela ponta do Cego, ponta do Coco e cheguei na ilha às 17 h.

Estou com muita fome, não comi nada o dia inteiro e remei por cerca de 7 h. Melhor chegar amanhã, de dia, pois da outra vez cheguei de noite e meu irmão e os sobrinhos não viram nada.

Fico ali no trapiche comendo pães até que chega o Varli, o responsável pela ilha. Ele estava aqui quando passei em 2000, aliás, passei aqui nas viagens de 83; 84; 85, 2000 e agora.

Logo depois encosta o veleiro Marinaio (marinheiro, em italiano) com João Porciúncula, Vera e seu sobrinho, Willian. Eles são super legais, tomamos chimarrão enquanto uma enorme caranguejeira (araña) circula a nosso redor. Eles são de Novo Hamburgo, minha terra natal .

Aqui há uma pequena praia, dois trapiches e instalações para churrasco, hospedagem e banheiros. Belíssimas figueiras debruçam seus galhos repletos de barba-de-pau e parasitas sobre as águas. Sabiás da praia, de peito branco, saltitam ao lado de joões-de-barro e beija-flores.

Danilo Chagas, do www.popa.com liga para Varli para saber a que horas chego amanhã.

Não consigo avisar ninguém, meu celular está cheio de créditos mas “bloqueado para originar chamadas”.

Em Arambaré tentei resolver o problema em um telefone público.

Havia impresso um nº para solicitações.

- Ligo para o tal número:

- O nº para solicitações mudou, ligue para XXX...

- Ligo para XXX

- Se sua solicitação é para telefone fixo, ligue para xxxxpxp, se for para celular, ligue para XXX PQP

- Ligo para XXX PQP

- Digite o código da cidade e o n° do celular

- Digito...

Aí a fdp da gravação volta ao ponto inicial

- Ligue para XXX...

- Cacete, eu já fiz isto, seu desgraçado!

Repito tudo de novo, de novo e de novo, GRRRRRRRRRRRRRR!

O ataque de loucura é por conta do cliente, mas se quiser matar alguém da empresa, ligue para XXXXXXXXX

Quando percebo, o telefone público está sendo “estrangulado”, mordido e quase é arremessado para a “casa do chapéu”.

Se fizer isto, posso ser preso, quando isto deveria acontecer para quem oferece um serviço de atendimento de merda e irritante, associado ao fato de um órgão de fiscalização incompetente e inoperante, que não mudou ou impôs outra forma de atendimento aos “otários e palhaços” que somos nós, os consumidores, mesmo depois de milhões de reclamações e ações.

Tenho um telefone da TIM, que nunca deu sinal quando precisei; está cheio de créditos e quando tem sinal não posso originar chamadas, SHOW! Atendimento nota 10!

O VHF não sei usar!

Coloco a barraca ao lado do trapiche e do caiaque e vou dormir cedo, estou muito cansado e declino do convite de Vera e João para conversar. Também não quero importuná-los.

18-12-05 Domingo dia 180

SEIS MESES DE VIAGEM

Despertei às 3 h, não consigo dormir mais, então acendo a vela e fico escrevendo o diário. Agora são 3:53 h, já estou em Porto Alegre e não consigo avisar a família que chego daqui a pouco no Veleiros do Sul... SACO!

Andei 6 h e cerca de 60 km, tivesse vento favorável assim como hoje, teria feito de R Grande aqui em menos de 5 dias..

Bueno, agora são 4:14 h, escrevi bastante, vou apagar a vela e tentar dormir um pouco.

Acho que terei que encerrar a viagem por aqui, pois recebi um e-mail e terei de resolver problemas na pousada. Surgiram há poucos dias e se não puder resolver por telefone, terei que repetir o que o confeiteiro disse para os colorados:

- O sonho acabou! He,he

Aliás, sabem qual é o café da manhã “deles”?

- Meia taça e um sonho...

Tomo um chimarrão com João e Vera. Eles são muito legais e João consegue sinal e pude avisar meu irmão Paulo, fiquei muito feliz!

João entende de tudo um pouco, parece que pilota aviões, entende de fundição e peças de marinharia, além de eletrônicos; parece uma enciclopédia ambulante!

Muito obrigado, amigos!

Varli chega e diz que estão ligando do clube para saber quando chego lá, nem sei onde é direito, melhor partir.

Parto às 9:10 h e resolvo remar sem poupar a tripulação, temos que tomar Porto Alegre sem deixar o inimigo tomar fôlego.

Toco direto para a ponta do Arado e dali aponto para a Ponta Grossa, vejo Belém Novo ao fundo e alguns veleiros.

Estou remando forte e o Maktub rasga a superfície em dois, começa um ventinho favorável e dois barcos que cruzaram a Ponta Grossa seguem para o interior da enseada e depois mudam o curso e parecem vir na minha direção.

Um deles é um veleiro.

Como cheguei antes, vou perder a recepção que o Danilo estava preparando e que o Rodrigo havia anunciado. Não importa, o mais importante é que estou encerrando esta parte e encontrarei meus amigos “invisíveis”, fora o fato de que vou rever minha família, justo no dia que faz seis meses.

Planejo comigo mesmo para não bancar o “maricon” na chegada, isto não condiz com o personagem do Tenente Issi!

Cara, aqueles dois barcos estão se aproximando... Continuo remando forte e paro mais adiante, acho que estou ouvindo uma buzina.

Pego a filmadora e aponto para eles, quase deu um nó na garganta, mas uma voz de comando me faz recuperar a compostura:

- Nada de Mariconadas!

É o veleiro Canibal, de Andréas Bernauer. Ali está o Danilo Chagas Ribeiro e o delegado da capitania dos portos de Porto Alegre, comandante Nelson. Remo até eles, cumprimento os tripulantes, é uma emoção conhecer pessoalmente quem tanto me ajudou e que foi um dos primeiros a saber o que eu tencionava fazer:

Sigo para o outro barco, é a lancha da comissão de regatas do Veleiros, Comodoro Cativelli. Ali está Rodrigo Beheregaray, sua noiva, Márcia, Edir e o fotógrafo de Zero Hora, Júlio Cordeiro.

Essa eu não esperava, achei que eles só poderiam me receber na terça-feira e como cheguei antes, apenas pediria para deixar o caiaque no clube até eu decidir o que fazer.

Fico rindo sozinho, não acredito que finalmente os conheci e que estou chegando... Ficamos conversando ao largo por meia hora e depois sigo remando com meus amigos me ladeando.

Ainda estou muito longe e Danilo disse que organizaram um almoço no clube, melhor não chegar atrasado para a festa.

Baixo os chifres e remo com força. Passa outro veleiro bem próximo, é o Panos Quentes de Jorge que dá as boas vindas a Porto Alegre.

Passam muitos veleiros e lanchas enquanto me dirijo para a Ponta Grossa.

Dali, vejo Ipanema e Assunção ao fundo, mas eu sigo reto para a última ponta que vejo para NE. Parece que é depois dela que chegarei no Veleiros, mas é muito longe.

- Vamos lá senhores, força nos remos quero que causem uma boa impressão a esta flotilha amiga que tão bem nos recebeu.

O caiaque levanta a proa e avança resoluto. Vejo a ilha do presídio e as casas mais para dentro. Depois passo pela sede do Jangadeiros e a lancha do Veleiros fica me esperando próximo do último pontal. O Veleiro Canibal ficou para trás, pois seguiu mais para o meio.

Fico ali conversando até que o veleiro se aproxima. Passo do último pontal e remo com força e sem parar. Estou que nem cavalo velho retornando para casa. Remando num ritmo alucinante e sem parar.

Digo para Márcia que no embalo da chegada nem sinto mais nada.

Ao dobrar o pontal, fico sem vento favorável e já estou diminuindo o ritmo quando o Danilo chega do lado e começa a gritar, me incentivando!

Aquilo deu uma injeção de ânimo no pelotão e reunimos todas as forças até chegar no farol azul do Veleiros.

Contorno os molhes e me aproximo devagar para onde eles indicam.

De repente, começa a estourar foguete, (soube depois que foram três baterias de quase 1500 foguetes) o barco do clube aciona a buzina e os alto-falantes do clube anunciam minha chegada...

Todos sabem que Gaúcho não chora, sente saudades do Rio Grande!

Ali os meus planos de chegar sem “mariconadas” foram por água abaixo e sistema de irrigação dos olhos transbordou, menos mal que estava de óculos escuros.

O cara fica “fora do ar” eu nunca tive uma recepção deste tipo e menos ainda de pessoas que eu não conhecia.

Consigo me virar na direção de Danilo e de Rodrigo e agradecer, com a voz embargada:

- Muito obrigado!

- Tu mereces, diz Danilo!

Sigo para a rampa, o pessoal vêm ajudar a desembarcar, muitas pessoas dão os parabéns. Danilo vai me apresentando:

- Este é o comodoro, Sr. Manfred Flöricke.

Ele é um senhor alto e forte, me presenteia com uma linda camiseta e um boné do clube.

Depois conheço seu filho, Manfredo, presidente da Federação de Vela e Motor do Rio Grande do Sul, que me presenteia com o boné vermelho da FEVERS.

Não sei se são meus olhos marejados, se é a fumaça dos foguetes, mas acho que cheguei no paraíso, e uma deusa vem deslizando pela superfície deste mundo terreno. Acho que vai me avisar que morri, assim como faziam as Valquyrias aos guerreiros vikings.

Danilo me retira do “delírio” e apresenta Anelise Zanoni, repórter de Zero Hora.

Melhor tomar um banho antes. Chega meu irmão, Paulo e as “crias”, Luigi, Eduardo, Gabriela e Laura. Mais tarde vejo Sandra, sua esposa e a mãe, no alto de seus 80 anos. Parece tão frágil que tenho medo de abraçar com muita força.

Festa completa, acho que estou enchendo o saco de Danilo, Rodrigo e do sr. Manfred de tanto agradecer, mas o que eles fizeram por mim, essa recepção toda... eu nunca me senti tão respeitado pelas coisas e viagens que fiz e isto me parece uma recompensa pelo “conjunto da obra”.

Milhões de vezes, muito obrigado! Esse dia ultra-especial irei levar comigo para o campo de batalha, esteja onde estiver! Nunca mais ou me esquecer!

Obrigado Danilo, obrigado Rodrigo, vocês foram os mentores disto tudo e não tenho palavras para agradecer.

Dois dias depois foi organizada uma palestra no VDS onde estavam presentes diversos amigos e simpatizantes da “causa” farroupilha. Foi mais um bate papo do que uma palestra e foi gratificante dividir emoções e experiências em local tão aconchegante.

Danilo publicou a chegada nas páginas do site www.popa.com.br, em Novidades. Fotos, vídeos e palavras elogiosas que me deixaram muito gratificado. Incluiu ali a matéria da Anelise que ficou linda, combina com ela, he,he!

Fui entrevistado na rádio Guaíba, um flash, no programa do Flávio Alcaraz Gomes. Depois fui velejar com Rodrigo no Asterix e conheci o pessoal do Clube Náutico Itapuã, na vila de mesmo nome.

Ali eles estão desenvolvendo projetos junto às crianças e jovens de baixa renda, apoiados por Ongs e pelo MEC. Tive o prazer de dirigir umas palavras aos alunos de Tina. Confraternizamos com churrascos e foi muito especial. Adorei o pessoal de Itapuã e gostaria da passar ali na volta para Floripa.

Já está resolvido o problema na pousada e o pelotão tem que refazer o caminho de Garibaldi, retomando Laguna e anexando Florianópolis, que está em poder dos Amins e dos Borhausen, acho que são Imperialistas! He, he!

Um baita abraço do amigo

André Issi.

Colaboração Rodrigo Beheregaray Asterix

 

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