Conta todas, vovô
Jorge Vidal

Peixe e música no Garimpeiro

O matal de 1991. Saímos por volta das 14 horas do clube Veleiros do Sul, em
Porto Alegre, com destino a Florianópolis. A bordo, o comandante Paulo Régis Ribeiro, o professor Plínio Fasolo, o companheiro Sérgio Mainere e eu. Junto conosco, no mesmo momento, soltava as amarras, com o mesmo destino, o Tuchaua III.
O Garimpeiro é um veleiro Fast 500, desenho de German Frers, fabricado no Brasil. Um barco realmente magnífico, um 50 pés muito bem equipado e com armação super-reforçada.
A velejada transcorria muito serena, tarde linda, vento noroeste fraco. Lá íamos nós, escutando músicas de Julio Iglesias, de quem o comandante é fã. Navegamos toda a noite, batendo papo no convés, e dê-lhe contar histórias... Amanhecemos no través do farolete do Vitoriano, na Lagoa dos Patos, prenunciando-se um lindo dia. Entramos na Feitoria por volta das 10 horas. Fizemos todo o canal, 42 milhas, a motor, pois não havia nada de vento. Chegamos ao Rio Grande Yate Clube no final da tarde. Como sempre, tivemos ótima recepção do pessoal do clube. O Boy nos determinou o local para a amarração, onde já se encontravam o Tuchaua III e o Virgínia, do Werner Siegmann, comandado por seu filho Christian e com o Lindolfo Hartz (Deco) como skiper. Estavam indo para Imbituba (SC).
Após um bom banho de chuveiro morno, jantamos no clube, com todo o pessoal dos barcos em trânsito e a turma do Yate Clube. A cidade do Rio Grande é ponto quase obrigatório para barcos vindos de Porto Alegre e dos países do Prata, tanto na ida como na volta, oferecendo, entre outras vantagens, excelente estrutura náutica.
Pela manhã, como as condições de tempo eram favoráveis, os três barcos partiram juntos. Na imensidão do mar, um se perde do outro, mas não tarda se encontram novamente. Foi o caso do Virgínia, que, no segundo dia de navegada, apareceu no nosso visual. Solicitaram-nos óleo diesel, pois tinham motorado muito, por falta de vento, e temiam não ter combustível suficiente para chegar a Imbituba se as condições assim perdurassem. Feita a solicitação, jogamos um camburão de óleo amarrado a uma bóia, que foi por eles pescado com o auxílio do croque. Esse procedimento se faz necessário porque em alto-mar é impossível amadrinhar, lado a lado, duas embarcações. Com o balanço das ondas, eles bateriam os mastros, mesmo em condições de mar calmo, pois o oceano respira sempre. Está permanentemente se mexendo.
Quando velejamos no oceano ou ao longo da costa, quase sempre curricamos, com uma carretilha e caniço de pesca, à procura de algum pescado. E como se pesca! Nessa velejada do Rio Grande a Florianópolis, por exemplo, pegamos cinco peixes de bom tamanho, por volta de quatro a cinco quilos, cada peça, dos quais, após viscerados, aproveitamos somente os filés, preparados na hora. É uma delícia comer peixe pescado no momento. Alguns até o comem cru, banhado no limão, que, por reação química, dá um leve cozimento ao peixe. Adicionando-se azeite de oliva, sal e pimenta, fica uma gostosura...
Os peixes que mais comumente caem no currico em nossa costa são atum, cação, dourado e namorado. Usamos como isca um anzol tipo colher, que, girando, provoca um brilho que os peixes acabam fisgando. Alguns, mais refinados, usam iscas artificiais. Entre os mais apaixonados pela pesca, destaco o Paulo Ribeiro. Quando navegamos juntos, jamais faltou peixe.
E assim, entre uma fisgada e outra, fomos indo, alternando algum bom vento sudeste com algumas acalmadas, obrigando-nos a uma que outra motorada. No fim do terceiro dia, estávamos entrando em Florianópolis pela baía Norte. O Garimpeiro não passa embaixo da ponte da capital catarinense. Seu mastro é muito alto, obrigando-nos a seguir pelo norte, por fora da ilha, até a subsede do Yate Clube de Santa Catarina – Veleiros da Ilha, na praia de Jurerê, defronte à Ilha do Francês.
O comandante Paulo Ribeiro é meu velho amigo. Lá se vão quase 40 anos! Antes do Garimpeiro, tinha outro veleiro, chamado Tobago, meu concorrente nas regatas do Veleiros do Sul, em Porto Alegre, quando eu tinha o Martha. Excelente comandante, experiente e sempre calmo. Hoje faz delivery com barcos ao longo da costa brasileira. O professor Fasolo, por sua vez, é, a meu juízo, um dos velejadores que mais conhece navegação por meio de GPS. Professor do Curso de Capitão, é um excelente tripulante. O Sérgio Mainere é um rapaz ainda jovem, mas muito velejado... É desses tripulantes que todos os comandantes querem a bordo, além de se tratar de excelente cozinheiro. Hoje mora em São José dos Campos, São Paulo, velejando em Ubatuba.
Ficamos velejando alguns dias em Florianópolis. Ana me acompanhou em diversos passeios junto com o Paulinho. Velejar no Garimpeiro tem um gosto muito especial, pela praticidade de seu equipamento e pelo layout de seu convés.
Em 1992, fomos outra vez para Florianópolis. A bordo, além do comandante Paulo Ribeiro, estava conosco Emilio Opitz, Oscar Raul Nieto e Paulo Gentile.
Dessa vez não faltou vento. Pelo contrário, já saímos de Porto Alegre abaixo de forte vento leste, que nos conduziu até o Rio Grande. Entramos diretamente no mar. Não passamos no clube, pois do sul vinha entrando uma frente fria, e queríamos ir com ela para o norte. Realmente fomos, e como fomos... Durante a velejada até Florianópolis, pegamos cinco temporais e chuva forte, felizmente, todos, ou quase todos, de sudeste; somente um vinha do sudoeste, o qual nos obrigou a dar um jibe na vela grande e, conseqüentemente, a riza-lá também, pois o vento não estava para brincadeiras.
A costa marítima do Rio Grande do Sul é uma das mais difíceis de ser velejada. Baixa, sem visual atraente, nem enseadas. É uma reta só. Enfim, não é uma costa para ser calmamente navegada, devendo, pelo contrário, ser rapidamente cruzada, para que o velejador se livre dos surpreendentes ventos e correntes.
O escritor Eduardo Bueno, o Peninha, em seus livros sobre a História do Brasil, afirma que, já há 500 anos, portugueses, espanhóis, franceses e ingleses detestavam esta costa, por causa dos temporais, ventos fortes, correntes e baixios.
Vilfredo Schurmann conta que o pior tempo que enfrentou na segunda volta ao mundo velejando foi aqui, na nossa costa e nas costas uruguaia e argentina. Amyr Klink conta que pegou um temporal aqui na nossa costa que lhe custou a escotilha de proa da cabine do seu Paratii II.
Realmente, como diz a lenda, o Criador cansou, e seu pincel, quando vinha pintando a costa leste da América do Sul, a partir de Santa Catarina, fez uma reta só, até a Patagônia. Encerrou em Santa Catarina a beleza da costa. Foram-se as enseadas, ilhas e montanhas!
Assim sendo, a costa gaúcha não é fácil. Imagine o leitor esse vento em sentido contrário quando você já se encontra no meio do caminho, sem nenhum abrigo para entrar... Depois da cidade do Rio Grande não há alternativas. Somente Laguna, assim mesmo dependendo das condições do vento, ou então Imbituba. Por isso, aqui pelo sul, o negócio é ir correndo ao destino, o mais rápido possível. Para velejar, só depois do Cabo de Santa Marta...
Mas o Garimpeiro é um excelente barco, com bons GPs e ótimo radar. À noite, olho no radar... Sempre tem que ficar um tripulante do lado de fora e outro na mesa de navegação.
A turma a bordo era especial. O Paulo, sempre tranqüilo e seguro. O Nieto, como quase todo argentino, ótimo velejador. É uma segurança também a bordo. Como projetista naval, desenhou e construiu em madeira os veleiros Caminito, Garufa, Milonga e Ressaca. Emilio Opitz, o homem de uma perna só, faz com uma o que muita gente não consegue fazer, pelo menos em cima de um veleiro, com duas pernas... Sempre disposto. Ótimo velejador. É o representante do Clube Náutico Tapense, simpático e bem instalado clube da cidade de Tapes. Sua marina para veleiros é das melhores, sem contar que está localizada numa das enseadas mais lindas da Lagoa dos Patos, com suas imensas praias de areias brancas e águas limpas e claras. Paulo Gentile fazia seu debut no mar. Ótimo tripulante, calmo, prestativo sempre e, como era o mais moço, pau para toda obra.
E dê-lhe peixe... A exemplo das outra viagens, pegamos ao longo da navegada uma boa quantidade de peixes. E eu a limpá-los. Limpar peixe não é coisa de outro mundo. A única coisa que você necessita é uma faca muitíssimo bem afiada. Fomos voando baixo, e no terceiro dia já estávamos com a Ilha de Santa Catarina no través. Chegamos a Jurerê pela noite. Fiz uma massa na manteiga. Paulinho abriu um vinho e jantamos muito bem. Após, uma noite bem dormida, na calmaria da subsede e sem turnos de vigias nem atropelos. Como se dorme!

Um Audaz no Nordeste

 

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