Conta todas, vovô
Jorge Vidal

Uma aventura no Gigi e no Procelária

Em 1973, aproveitando os feriados da Semana Santa, o comandante José Carlos Bohrer nos convidou para uma velejada no seu veleiro Gigi, de Florianópolis para Porto Alegre. A bordo, além do comandante, Rubens Goidanich, o Goida, Eduardo Aaron, seu filho Marcelinho Aaron, então com 14 anos – jovem tripulante que mais tarde se tornaria um dos melhores skippers do país e profundo conhecedor do Caribe e da costa leste-sul dos Estados Unidos – e eu.

Saímos por volta do meio dia do Yate Clube de Santa Catarina, Veleiros da Ilha. Quando ultrapassamos o Farol dos Naufragados, ao sul da Ilha e adentramos no mar, o vento leste era muito forte, e o comandante Bohrer determinou que fôssemos, eu e Eduardo Aaron, trocar a genoa por uma menor, pois havia muito vento e necessitávamos diminuir nossa área vélica, além de rizar o pano grande.

Lá fomos nós, naquela época dois guris. O barco caturava na onda, pois perdera a velocidade ao desgarrunchar a vela de proa. Na época ainda não existiam os enroladores de genoa (roller). A proa afundava na onda e o mar passava por cima dos dois guris. Depois de muito banho de mar, coseguimos trocar o pano de proa por um menor. Fomos ao rizo da grande, e a tarefa estava concluída. Os dois pintos encharcados de água estavam de volta ao cock-pit do Gigi. Mas, tudo bem, vamos em frente. A idade era outra...

Velejamos toda a noite e mais um dia inteiro, e, ao cair da tarde, estávamos no través de Torres, que recentemente havia concluído os molhes de pedra, para facilitar a entrada dos barcos no rio Mampituba. Passados os anos, mostrou ser uma obra inacabada, pois necessitaria de pelo menos mais um quilômetro de molhes para servir realmente de entrada segura naquele porto. Coisas de governos mal geridos.

Pelo fim da tarde do outro dia, a calmaria era total e estávamos no través de Capão da Canoa quando o comandante resolveu retornar ao norte e tentar uma entrada em Torres, a fim de pegarmos combustível, pois, se aquela calmaria persistisse, não teríamos óleo diesel suficiente para chegar ao Rio Grande. Durante a Semana Santa não se pesca. Para abastecer a população, os pescadores o fazem antes, mas durante a semana não saem para pescar. Portanto, o mar estava deserto: não teríamos a quem pedir óleo diesel. Portanto, medida correta do comandante. E fomos a Torres.

Pela manhã, ao clarear o dia, estávamos passando entre a Ilha dos Lobos e a praia, ocasião em que, sem que soubéssemos, pois não existia VHF naquela época, muito menos celulares – tínhamos a bordo somente um rádio PX faixa cidadão –, estávamos sendo observados em terra, de binóculos, pelo amigo Frederico Linck, também velejador, que acompanhava nossos movimentos, pois estávamos próximos da praia. O comandante, lentamente, a motor, aproximou-se da entrada da barra, quando, surpreendentemente, constatou que as ondas eram muito altas, com a arrebentação além do normal, devido ao baixio que se criou na entrada da barra, e enviezadas com relação à entrada. Muito acertadamente, deu de leme e rapidamente retornou, pois seria muito arriscado adentrarmos a barra naquelas condições. Pois bem, de proa para as ondas, ao retornarmos, passamos por cima da crista da primeira onda e embicamos na cava da segunda, o que fez com o que o Gigi fosse envolvido totalmente pela mesma. Ficamos somente com o mastro fora da água. Fomos jogados pela força do mar contra o cock-pit e o guarda-mancebo de popa, mas o comandante, sempre firme no leme, continuou seu caminho de volta. Aí veio a terceira onda, que cobriu parte do barco.
Finalmente, após nos livrarmos daquele mar, passamos para fora da arrebentação. Resultado: nenhum dos tripulantes havia se machucado. Encharcados de água e um pouco assustados, sim, mas não ocorrera nenhuma avaria no barco, que estava com bastante água por dentro e com os pertences e gêneros totalmente molhados. Colocamos as bombas de sentina para funcionar e drenar a água e tudo a secar ao sol, pois o dia era lindo e sem vento. Frederico acompanhara tudo de terra e depois comentou conosco o que havia visto.

Tudo resolvido, lá fomos nós novamente, rumo à cidade do Rio Grande. Única alternativa: economizar o máximo possível de diesel e água doce e aproveitar de quanto em quanto a entrada de algum ventinho. Pelo rádio, o Zeca falou com o comodoro Frederico Cattivelli, que se encontrava em Tramandaí, passando os feriados da Semana Santa, e informou que iríamos nos atrasar, mas que estava tudo bem a bordo. Fomos indo lentamente e, após dois dias, chegamos ao Rio Grande. O Goida preparou um excelente almoço com a água doce que restara e comemoramos a chegada já dentro da barra do Rio Grande. Deixamos o barco no Yate Clube, aos cuidados do Boy, e retornamos de ônibus para Porto Alegre.

Em diversas outras oportunidades, velejamos no veleiro Procelária, um belo barco desenhado por Franz Mass, construído na Holanda, de 40 pés, de propriedade desse velho amigo José Carlos Bohrer, então ex-dono do Gigi, que o havia comprado, no Rio de Janeiro, da família Pimentel Duarte.

Numa ocasião, após navegarem no Procelária até Florianópolis, desde Porto Alegre, o comandante Bohrer, Ricardo Habiaga e meus dois filhos, Jorginho e Alfredo. Fui ao encontro deles na capital catarinense para passar uns dias velejando na companhia, também, do comandante Zeca e de sua esposa, Isabel, que retornavam do Rio de Janeiro. Meu filho Alfredo havia passado mais de 30 dias cuidando do barco em Florianópolis, fazendo pequenos passeios junto com os amigos do comandante. Chegamos ao Yate Clube, eu e meu filho Jorginho, nos incorporamos ao Alfredo a bordo do Procelária e aguardamos a chegada do casal Bohrer. Velejamos por diversas praias e finalmente pernoitamos em Ganchos, onde o comandante tem uma propriedade. À noite nos deliciamos com uma janta à base de camarões gigantes, pescados por pessoal local, regados a umas cervejinhas bem geladas e a caipirinhas. O Zeca é especialista em preparar camarões. No outro dia, após passeios pela Baía Norte, deixamos o casal na ponte Hercílio Luz, pois seguiriam de avião para Porto Alegre. Então fomos para o clube, onde pernoitamos. Boas velejadas e belos passeios fizemos no Procelária.

Em 1977, fui convidado novamente pelo comandante Bohrer para velejar no Procelária, que participaria da regata Buenos Aires / Rio naquele ano.
Saímos de Porto Alegre numa linda tarde de verão. Navegamos a noite toda e pela manhã já estávamos no Rio Grande, onde entramos diretamente no mar. A bordo, além do comandante, Augusto Chagas, Rudy Arons, Jorge Schertel, Henrique Ilha, Eduardo Aaron e eu.

Navegamos até Punta del Este, com vento variável do quadrante leste, fraco, e com tempo muito bom. Muito papo a bordo. O Zeca levara uma galinha à escabeche numa embalagem de vidro enorme, preparada pela Isabel. Foi servida em duas refeições. Uma delícia!

Lá fomos nós, tranqüilamente, até a ilha Gorritti, onde chegamos por volta das 10 horas da noite e fundeamos na baía do Yate Clube. É um descanso velejar com uma tripulação experiente, capaz e que sabe o que faz. Realmente, Ilha, Chagas, Rudy, Schertel, Aaron e o Bohrer inspiram muita segurança.

Em Punta del Este, encontramos o Wawatoo, o Inca e o Saga, barcos brasileiros que também participariam da Buenos Aires / Rio daquele ano, vencida pelo iate brasileiro Wawatoo em tempo recorde.
Passeios em Punta, boas jantas e o clima de verão que você sempre sente em volta de barcos e lanchas ancorados naquele maravilhoso clube.

Pela manhã, bem cedo, seguimos para Buenos Aires. Vento norte, balão em cima, e vá treinamento para a regata! À tardinha cruzamos por Montevidéu, bem próximo onde se encontra o navio alemão Graf-Speed, afundado pelos ingleses durante a Segunda Guerra Mundial. À noite fizemos o través do farol de La Panela, no Rio da Prata.

Por volta da meia-noite, estava eu de serviço no timão, na companhia do Eduardo Aaron, quando avistamos umas luzes muito fortes em grande quantidade. Imaginamos que fosse Buenos Aires, que já estaríamos avistando a cidade. Comunicamos ao comandante, que estranhou, pois, pelos seus cálculos, ainda estávamos muito longe. Naquele tempo não existia GPS e a nossa navegação era feita na base da estimativa, por rádio gônio, plotando os faróis ao longo da rota. A euforia passou logo, pois tratava-se da Recalada, ponto de ancoragem e espera de navios que demandam aos portos de Buenos Aires, Rosário e Santa Fé, que, por ser época da safra de produtos agrícolas, especialmente trigo, eram inúmeros, sem conta, criando a falsa imagem de uma cidade iluminada. Erro nosso!

Continuamos em frente. Aguardava-nos ainda para aquela noite um pequeno Pampeiro, com muita chuva e vento contrário. Pela manhã, por volta do meio-dia, chegamos à capital argentina, ancorando na Darcena Norte, sede náutica central do Yate Clube Argentino, onde seriam reunidos os barcos participantes da regata.

Infelizmente, por problemas técnicos, o Procelária teve que desistir da regata, na altura de Montevidéu, entrando no Porto Buceo para reparos e após retornando à cidade do Rio Grande e, depois, Porto Alegre.
Ainda fizemos diversas velejadas nesse maravilhoso veleiro, todas elas excelentes, sempre na companhia do meu velho amigo Bohrer.

Um Macanudo recordista

 

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