Conta todas, vovô
Jorge Vidal

Rio Grande: nasce um ideal

Em torno da cidade do Rio Grande, porto marítimo do Rio Grande do Sul,
70% é água e 30%, terra. A cidade está praticamente envolvida pelo mar. Talvez por essa razão exista um pensamento náutico muito forte na população. Nasce com naturalidade nas pessoas o desejo de se envolverem nas coisas do mar e, como conseqüência, em alguns, a vontade de velejar. Essa vontade foi o que me despertou para o sonho de ter um veleiro.


Foto aérea da antiga sede do Rio Grande Yate Clube, nos fundos da Usina Municipal.

A cidade do Rio Grande é conhecida como Noiva do Mar, e quem nasce aí é também identificado como papa-areia. Como papa-areia, morei muitos anos no Saco da Mangueira. Minha casa ficava na Vila Ceres, ao lado da Estação Junção Rádio-PPJ, que naquela época operava no código Morse para contato com os navios em trânsito na área. Hoje opera em VHF, por fonia. Lembro que foi dirigida por muitos anos pelo competente Sr. Saldanha, tendo como operador os telegrafistas Baransky, Carlos Reis, irmãos Sampaio, entre outros. Seu mais recente chefe foi Egas Schochow. Os fundos davam para o mar, onde iniciei velejando num caíque com uma vela-mestra e uma buja de tecido de algodão revestido com óleo de linhaça, mastro de tronco de eucalipto com pau-a-pique, fixado numa plataforma sem estaiamento, sem motor e com duas toleteiras e um par de remos, para o caso da falta de ventos, coisa rara no Rio Grande. Nossa âncora era uma fateixa. Esse tipo de embarcação ainda existe muito naquela cidade. Velejávamos no Saco da Mangueira e, quando íamos mais longe, baixávamos o mastro para cruzar a Ponte dos Franceses e adentrar o canal do Rio Grande. Às vezes íamos até o Cocoruto, já do outro lado, em São José do Norte. Fazíamos belos passeios na companhia das minhas irmãs gêmeas, minha mãe e meu pai, que já era um experiente marinheiro. Aliás, minha mãe, falecida com 98 anos de idade, chamava-se Marina, como que justificando meu amor pelo mar.

Isso tudo nos fazia gostar cada vez mais das coisas do mar e acalentar o sonho de um dia ter um veleiro todo branco, como o Irene, do Mr. Vivian Wigg, que, deslumbrados, olhávamos velejando ao longo do canal ou atracado no Yate Clube.

O Rio Grande possui um Yate Clube fundado em 1934 que até hoje é um dos clubes náuticos mais conhecidos no Brasil e visitado por muitas embarcações de bandeira estrangeira. Existe no clube um livro de visitas de embarcações; entre as muitas presenças encontra-se a do velejador argentino Vito Dumas, que esteve no clube com seu veleiro Legh em sua vinda da Europa. Outros nomes de velejadores famosos enriquecem seus registros, inclusive com fotos e sugestivos desenhos. A primeira sede era nos fundos da antiga usina elétrica municipal. Hoje o Rio Grande Yate Clube possui uma excelente sede própria, com uma marina capaz de receber barcos de qualquer tamanho. A família Wigg, em especial pelo Comandante Vivian Wigg, foi uma dos grandes incentivadoras da vela no Rio Grande, contribuindo muito para o crescimento do clube.

Existiram e existem grandes iatistas no Rio Grande, tais como Dr. Hugo Altmayer, Henrique José, Waldir Fonseca, Hermann Hadrich, Gustavo Fernandes, Paulo Gonçalves (Pileca), Wander Valente, Edson Fernandes, Nésio Martins, Rex Wigg, José Ratti, Luiz Antônio Cassarriego, Fernando José da Silveira, Paulo Borges, Evaldo Marchant, Ilson de Freitas (Canhão) e outros que contribuíram para a tradição do clube.

O clube tinha como marinheiro Clarimundo Monteiro, conhecido como Boy, pessoa extraordinária, com conhecimento de mar e de barcos como poucos e que recebia os visitantes com inusitada simpatia e boa vontade.


O autor com seus pais e suas irmãs gêmeas, a bordo de uma lancha em São José do Norte, em 1940.

O Boy era uma pessoa muito especial, que conhecia tudo e a todos. Além do Boy, trabalhavam no clube o marinheiro Clóvis (Manduca) e o carpinteiro de ribeira, Baptista. Grandes pessoas, experientes e sempre dispostos a ajudar a todos que chegavam ao Rio Grande, assim como o Comandante Paulo Borges, da lancha da FURG, também sempre disposto a colaborar.

Quando comodoro do Veleiros do Sul, em 1991, enviei correspondência ao comodoro Osvaldo Barbosa, do Rio Grande Yate Clube, convidando o marinheiro Clarimundo Monteiro, o Boy, para uma visita durante um fim de semana ao nosso clube, em reconhecimento a sua atenção e fidalguia com que recebia os velejadores de Porto Alegre. Ele veio com seu filho, ficou hospedado no alojamento do clube e foi por nós homenageado.

Como sou filho do Rio Grande e antigo associado, participei do aniversário de 50 anos do clube, em 9 de junho de 1984, no Ginásio do Atlético Ipiranga, quando fui homenageado pelo Conselho Deliberativo com o título Honra ao Mérito, por relevantes serviços prestados ao desenvolvimento do esporte náutico. Passados alguns anos, quando comodoro do Veleiros do Sul, fui também homenageado pela comodoria do Dr. Oswaldo Barbosa, num jantar que reuniu todas as autoridades locais, ocasião em que recebi um cartão de prata, homenagem que transferi ao clube que representava, o Veleiros do Sul. Esse cartão me foi entregue pela esposa do comandante Paulo Gonçalves, a Emi, que houvera sido minha colega durante o ginásio. Fui também homenageado, com um brasão, pelo Almirante Mauro César Rodrigues Pereira, Cocandante do 5 o Distrito Naval.

Os barcos que chegam à cidade do Rio Grande para entrar no mar em direção ao norte ou ao sul necessitam de informações meteorológicas, coisa que ninguém melhor do que o velho velejador Dr. Hugo Altmayer sabia informar, assim como Vander Valente, que permanecia na escuta através do rádio para poder passar informações aos velejadores em trânsito.

Apareciam por lá também os iates Aventura, do Dr. Breno Caldas; Umuarama, do comandante Ervin Bier, pai do campeoníssimo velejador Waldemar Bier e avô do atual empresário de sucesso Dado Bier, que quando ainda menino era velejador de Optimist; o veleiro Orion, do comandante Egon Barth e toda sua família de excelentes velejadores, tais com Vitor, Duca, André e a pequena Cláudia; e o Delphim, do veterano velejador José Andino Mônaco.

Existia naquela cidade outro pequeno clube, chamado Yate Clube Ferroviário. Meu companheiro Carlos Teixeira era oriundo dele, assim como o Sr. Pantaleão, pai do Zeca e do João Pantaleão, jovens velejadores, e dos bons. Quando da compra do Martha, por recomendação do Romildo Santos e do Sidney Soares, convidei o Carlos Teixeira para vir a Porto Alegre velejar e trabalhar na minha empresa. Ficou alguns anos comigo, associou-se ao Veleiros do Sul, e meus filhos, Jorginho, Martha e Alfredo, aprenderam muitos dos segredos da vela com ele, sempre muito carinhoso e pronto para ensiná-los. Hoje ele é aposentado como operador de guindaste na Petrobras e vive em Porto Alegre.

Quando da chegada do exterior do barco Minuano, do querido Cláudio Aydos, o mesmo foi atacado por um enxame de abelhas que se concentraram em cima de seu filho Jorge Alberto (Dr. Silvana). O Carlos Teixeira, com grande sacrifício, socorreu o menino cobrindo-o com seu próprio corpo, sendo completamente tomado e picado pelas abelhas. Felizmente conseguimos retirá-los do barco, que ainda estava no guincho. Foi atendido no Pronto Socorro Municipal, levado pelo velejador Fredy Bercht. Mais tarde, o comodoro José Carlos Tozzi, do Veleiros do Sul, prestou uma homenagem ao querido Teixeira, em agradecimento pelo gesto de coragem e solidariedade, presenteando-o com uma faca de prata, enquanto a esposa recebia um broche de ouro com um rubi, em formato de abelha.

No Rio Grande, eram freqüentes os passeios de barco às ilhas dos Marinheiros, para tomar a Jurupiga (aguardente local), da Turotama, São Gonçalo, Diamante, Areias Gordas, Cocoruto, Molhes da Barra. Idas e voltas ao oceano eram também freqüentes, participando diversos barcos, inclusive os veleiros Saldanha da Gama, de Pelotas.

A Procissão Fluvial dos Navegantes, em 2 de fevereiro, era uma das mais concorridas festas da região, com a participação de todas as embarcações que flutuavam na época. A Santa saía da Igreja de São José do Norte e vinha para a Centenária Igreja Matriz do Rio Grande.

Naquela época, bem mais romântica, quando viajávamos a Porto Alegre, passando pelo porto de Pelotas, usávamos os vapores Jenny Naval (misto de vela e motor) e Cruzeiro, da Navegação Lubisco Ltda. Lembro-me que em 1941, por ocasião da grande enchente no Rio Grande do Sul, atracamos o vapor Cruzeiro no cais central de Porto Alegre, fomos transbordados em um bote até as proximidades do antigo Hotel Majestic, onde desembarcamos.


Procelária atracado no Rio Grande Yate Clube, vendo-se no seu convés o marinheiro Boy, segundo à esquerda. No fundo, o Vagabundo.

Em 1981, quando presidente da Federação de Vela do Rio Grande do Sul, criei, junto com o pessoal do Rio Grande Yate Clube, a Regata Mar Aberto, que inaugurou as provas para barcos maiores no oceano, fora da barra, com uma bóia de percurso colocada em frente à praia do Cassino. Para a realização desse importante evento, recebemos sempre o apoio dos comodoros Américo Souto, Cleber Costa Ferreira, Vilmar Revoire, Oswaldo Barbosa, até chegar aos mais recentes.

Em 1977, chegou ao Rio Grande um jovem casal de argentinos. Ela arquiteta e ele professor. Conquistaram a todos pela simpatia e pela competência com que sempre fazem as coisas do cotidiano. Lídia e Ricardo Habiaga, passados esses anos todos, parecem hoje verdadeiros filhos da cidade do Rio Grande. Recebem todos os velejadores que chegam ao Yate Clube como verdadeiros embaixadores da terra. Auxiliam nas compras, jantares, passeios pela cidade, manutenção dos barcos, abastecimentos, etc. Enfim, a simpatia e a capacidade de conhecerem tudo e a todos é cativante.

Desde que Lídia e Ricardo chegaram ao Rio Grande, já tiveram quatro veleiros, todos impecáveis e muito bem aparelhados: Inti, Achalay, Lampejo e o atual Feitiço, enriquecendo a flotilha de oceano do clube. Atualmente estão construindo, em Porto Alegre, um veleiro Delta 36 pés, chamado Atalaia.

São ótimos velejadores. Ricardo vem velejando em toda a costa brasileira e nos países do Prata. É sempre convidado por todos, pois trata-se de um dos melhores e mais capazes tripulantes que conheço, além de ser excelente contador de histórias. Já velejou comigo diversas vezes no Arpége e no Vida. Sua companhia é sempre uma alegria, assim como a da Lídia.

 

Tahiti, um anão de oceano

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