Parte 1 - Subindo
o rio
Anos 30
Há muitos anos sei sobre os barcos a vapor do Rio Taquari. O
"vapor" saía às 5 da tarde de Estrela e atracava
em P. Alegre às 6 da tarde do dia seguinte. Os vapores começaram
a trafegar pelo Jacuí e Taquari ainda no século XIX. A
via fluvial era o único meio de ir à capital. 
A proa vinha tapada
de lenha para dar conta dos 142km rio abaixo. Os marinheiros circulavam
com carrinhos de mão para abastecer a caldeira. A propulsão
era pelas rodas laterais, como as de moinho. A bicicleta vinha acorrentada
para não ser desembarcada nos diversos pontos de parada pelo
rio Taquari.
Após o jantar tinha jogo de cartas, e logo mais os encostos dos
bancos compridos transformavam-se em camas.
Para embarcar em época de águas baixas desciam os 365
degraus do porto. Muita gente ia lá ver quem viajaria. "Era
romântico", diz o meu Velho que nasceu "na Estrela".
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"Almanaque Gaúcho"
(Jornal Zero Hora), 2003
Uma navegada diferente
A opção de participar
da regata Eles & Elas foi preterida. Um convite para subir todo
o Taquari navegável é irrecusável.
As 160 milhas náuticas navegadas (ida e volta a Estrela) passaram
rapidamente. Nem tanto pelos 20 nós de cruzeiro da "Aline",
mas pela excelente parceria do Adroaldo e do Joel, navegadores experientes
e muito divertidos.
Para um velejador como eu, a navegada foi notável. O pessoal
da vela que pouco andou em lancha e que prega sobre o terrível
ronco dos motores, se surpreenderia com o baixíssimo nível
de ruído da Aline. A cabine é toda fechada e os 2 motores
de 170HP estão em compartimento com proteção acústica.
Desatracamos às
9:30h do Veleiros do Sul, sob garoa que enganou os meteorologistas.
O dia estava completamente nublado e frio. O limpador do parabrisa funcionou
até o final da manhã.
No
começo do passeio uma súbita redução de
velocidade nos fez pensar que seria uma pane. Foi acentuada, mas muito
curta, instantânea. Poderia ter sido também uma rede nos
hélices.
Tínhamos a
bordo algumas informações sobre as eclusas, foto de satélite
do Taquari editada e legendada para o passeio, o mapa do Jacuí
e Delta, e ainda
o mapa rodoviário com as cidades da região.
A 30 milhas a oeste
de P. Alegre pelo rio Jacuí, está a cidade de Triunfo.
É ali que desemboca o rio Taquari, um afluente de categoria,
com uns 200m de largura na foz. Nosso destino, Estrela, está
a 43 milhas de Triunfo. E é ali que tem uma ilha que foi palco
de batalha Farroupilha.
E foi bem ali também que o Joel assou deliciosos pães
de queijo. Diz ele, que ele mesmo faz a massa... Pra não ficar
atrás, o Adroaldo deixou a Aline se virando com o piloto automático
e apareceu da adega com um Gato Negro muy hermoso, dando o tom
gastronômico da nossa indiada que recém começara.
Em seguida passamos
por General Câmara e logo mais por Taquari, a terra do Adroaldo.
Há ali uma instalação que tritura madeira. As barcaças
a levam até Rio Grande onde, repassada a grandes navios, é
processada durante a viagem chegando sob a forma de chapas nos países
de destino.
O
Taquari tem uma largura média de uns 100m. O canal tem 30m de
largura e está sinalizado através de bóias cegas
com película refletiva. Nas curvas a largura do rio é
bem menor, tendo-se percebido acentuada correnteza.
Para um veleiro subir
o Taquari, deve-se dispor de uns 3 ou 4 dias e de um bom motor, mesmo
em época de águas baixas, como agora em Junho. A declividade
do rio é baixa (0,9 cm/km). No Jacuí, entre Triunfo e
P. Alegre, é 0,7, e entre Dom Marco e Amarópolis, 1,3.
O
leito é de seixo rolado. Em alguns pontos das margens há
grande quantidade dessas pedras.
O
Taquari tem uma profundidade de 5 a 6m. Nas curvas é de 8 a 9,
e em alguns pontos é muito maior.
A embarcação
padrão no Taquari tem aproximadamente 90m de comprimento, 15m
de boca, calando 2,50m e com capacidade de carga da ordem de 2.500t.
A
bonita ponte ferroviária na Volta do Barreto, toda em aço,
parece ser daquelas importadas da Inglaterra, como a do Ibicuí.
Quem já brincou com trenzinho elétrico europeu vai achar
familiar a aparência do pilar de pedras desta ponte ferroviária.
Em
Mariante, passamos sob a ponte alta da BR-287, de concreto armado, que
liga Taquari a V. Aires.
Nas margens do rio
há atividade agrícola. Um navegante colhia milho de uma
plantação, enquanto a acompanhante o aguardava a bordo
do ceboleiro.
De vez em quando se vê caíques atracados nas margens, mas
não se enxerga muitas moradias. 
Meu pai comenta que
nos anos 30 o vapor que vinha de Estrela parava onde houvesse uma fogueira
acesa. Era o sinal de que haviam passageiros ou carga para embarcar.
Passamos
também por muita gente pescando naquele sábado. A caça
e a pesca continua sendo a grande opção de lazer dos homens
no interior. O rio é piscoso e o Dourado é o troféu
principal.
A grande influência religiosa na região está à
vista de quem navega pelo Taquari. Protestantes e católicos dividem
suas crenças.
A região do
Taquari é bucólica, principalmente mais lá para
cima, entre Bom Retiro e Estrela.
Não encontramos outras lanchas nem veleiros pelo rio. No Taquari
o tráfego é pesado (para os padrões do Guaíba).
Dragas, chatas, barcas. São areeiros, graneleiros e petroleiros.
O Taquari oferece uma paisagem distinta. Por ser muito mais estreito
do que o Guaíba, as margens (mais próximas) oferecem paisagens
com outro aspecto. São pequenos portos, algumas casas, igrejas,
pontes e planícies. Algumas ilhas e muitas curvas solicitam atenção
constante do timoneiro.
Pane
Já
nas proximidades de Bom Retiro um dos motores (novos) MWM de 170HP baixava
o giro de vez em quando, até que parou. Nas tentativas de fazê-lo
funcionar novamente, o motor de partida arriou também. Seguimos
com o outro motor da "Aline", uma Carbras Mar de 32', a 7
nós rio acima. Pelo rádio avisamos o operador da eclusa
sobre a pane, e pedimos que localizasse um mecânico. Eram 13h
e o Joel resolveu assar a carne para o almoço.
Marinheiros
de primeira eclusada.
A passagem pela eclusa
foi atrapalhada, mas não deixou de ser divertida. Nossas trapalhadas
na eclusa estão relatadas em capítulo à parte.
A espera
pelo mecânico
 Logo
que passamos a eclusa, atracamos em uma barca. Na margem a cachorrada
latia estranhando nossa presença.
Em breve soubemos que os mecânicos da região não
foram encontrados, com exceção de um que estava em uma
festa e negou-se a nos atender.
A região é rica. E fértil. Muito fértil...
O proeiro-cozinheiro-mecânico Joel tentou descobrir a causa do
problema no motor. (foto)
Fizemos
várias ligações telefônicas. Por fim descobriu-se
um mecânico disponível em Lajeado. Nosso endereço
era "Porto do Bicho", um pequeno porto de areia na margem
esquerda do Taquari, a uns 100m a montante da barragem de Bom Retiro,
atracados no contrabordo de uma barca de areia. Enquanto esperávamos,
o Joel nos brindava com suas histórias. O "Baita Macho",
barco que ele teve, era o cenário da maioria delas.
Três horas depois
de termos atracado chegaram os mecânicos. Em 1 minuto localizaram
um mau contato no conector da bomba injetora e outro no motor de partida.
Fizeram questão de dar uma volta na lancha "para testar"
o conserto (R$65).
Às 17:15h,
15 minutos antes do horário do pôr-do-sol, deixamos os
mecânicos em terra e seguimos para Estrela.
Apreciando a tarde
que findava eu pensava naqueles velhos vapores. Navegavam por aquele
rio na escuridão da noite, sem sinalização, sem
rádio, sem instrumentos. Com correnteza, com chuva.
Que tipo de gente seriam aqueles comandantes? Ribeirinhos, rudes, aventureiros?
Não sei. Meu pai era guri e não dá conta disso.
Mas eram uns baita machos, com certeza.
O
porto de Estrela fica a montante da cidade. Era noite. O rio estava
a uns 5m abaixo do nível do porto. Seria difícil desembarcar
em caso de necessidade. Atracamos no contrabordo da "Chata Fandango",
uma casa flutuante da concessionária do porto, habitada por uma
família. O Telmo sabe tudo sobre o Taquari.
Cada um avisou sua
família da pane. Tínhamos um álibi legítimo
para esticar o passeio.
O Adroaldo não resistiu e jogou a linha n'água. Um Pintado
veio conferir a isca e se ferrou. Como não vieram outros, o despachamos
de volta pro rio.
Demo-nos
conta de que estávamos sem mantimentos para o dia seguinte. Muito
atilado, o Adroaldo ligou para o 102 e pediu o telefone de uma operadora
de ponto de taxi. O sotaque na região não nega a colonização
alemã: "A curia que atendeu o telefone lá im Laxiado
me tisse que era pra eu fim aqui trasser isso pra vocês".
Pra quem não entende o sotaque da colônia alemã
do RGS: "A moça que atendeu o telefone lá em Lajeado
me disse para vir trazer isso para vocês."
Estava garantido o café da manhã do dia seguinte: pão,
frios, café, leite e manteiga. A marca do café? Fritz
& Frida. Lóxico.
O aspecto dark dessa "operação": naquele ambiente
de porto, deserto, à noite, chega o taxi. Desce o motorista com
uma sacola. Sai um cara do nada, pega a sacola, conversa pouco e dá
dinheiro. Passa a sacola pro outro "comparsa" dependurado
na escada da chata e os dois somem do cenário. Cena de filme
de gangster.
Com
uma notável habilidade de narração e uma memória
incrível, Joel nos proporcionou momentos inesquecíveis
naquela noite, fazendo-nos rir muito das divertidas histórias
dele a bordo do "Baita Macho".
Joel é um marujo de muita iniciativa. Aos 66 anos participa da
faina a bordo com a desenvoltura de um guri, cozinha, arruma o barco
e, principalmente, garante boas gargalhadas.
Mas tem por aí uns caras, desses que gostam de moto, que não
conseguem dormir com o ronco dos outros. Não interessa quem está
roncando: o que estiver mais perto leva 3 cutucadas curtas. Isso equivale
a um "S" em código morse. Deve ser algo como
Socorro ou Silêncio. Ou, talvez, Schroeder...
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