Destino: La Charqueada (Parte I)
Uma navegada de 600 milhas por 6 vias fluviais até o interior do Uruguai
Texto e imagens: Danilo Chagas Ribeiro

La Charqueada certamente não é um destino comum nos planos dos navegadores brasileiros.

É longe. Longe de tudo.

Margem do Rio Cebollatí, confins da Laguna Merin, este pedaço da Lagoa Mirim doado aos hospitaleiros vizinhos.

Interiorzão uruguaio. Interior de um rio-labirinto.
Ilhas grandes. Ilhas pequenas.



Isla del Padre. Do padre português amigado com uma negra.
Extração de lenha contrabandeada ao Brasil.

Coisas da história de 1780, primeiro registro de navegada pelo Cebollatí, que se pronuncia Cebojatí.


La Charqueada [La Tcharqueada] está no rumo sudoeste da foz do Jaguarão, um rio-fronteira, também Yaguarón. É o rumo de onde termina o Brasil por estas bandas. Bandas doble-chapa, onde a fronteira mais une do que separa.


Deste rio até o destino, não cruzamos por ninguém em um dia inteiro de navegada. Apenas por bichos. E pelo paralelo 33.

E água. Muita água. 360º de águas ditas mirims, mas que de mirins nada têm. Claras e limpas. Despoluídas. Mais de 100mn*, de ponta a ponta.

A Isla de la Barra, de onde guinamos a Oeste para subir o Cebollatí, está a 30mn do fundo do Saco de São Miguel, onde seca a Mirim. Este fundão está a apenas 6mn a noroeste do Chuí, a cidade mais meridional do Brasil.

La Charqueada é longe não só pela distância a navegar, mas por estar escondida.

Lugar ermo. Sem recursos. Isolado.

Caminho descampado.

Caminho desabitado. Nenhuma casa. Apenas natureza. E bela.

 

 

O Cebollatí é um belo cenário para um filme.

Vegetação exótica com árvores cobertas por musgo e com os sarandis dourados.

A água aqui também é clara, sem poluição.


Puerto La Charqueada.

Um canto quieto. Pitoresco.

A lancha da Prefectura Naval e o barco que faz el cruce (travessia).

Destino de uma navegada de 4 dias a 18 nós, 318 mn desde Porto Alegre.

Hasteamos a bandeira uruguaia na torre do radar, lá no alto. É lei internacional.

 

 

Ao nos aproximarmos do porto de La Charqueada naquele fim de tarde, tampouco vimos pessoa alguma.

Nem nas casas da vila próximas à margem do rio. Tudo apagado. Tudo desligado. Não víamos uma viva alma o tempo todo.

Finalmente, já nos procedimentos de atracação no puerto, também não havia ninguém por ali.

Parecia um lugarejo fantasma.

 

Quando terminamos de atracar apareceu um sujeito de meia-idade com um caniço na mão. Caprichando na pronúncia do espanhol enferrujado, lhe disse:
- Buenas tardes. Por favor, puede usted me decir se el jefe de la prefectura naval está por allí?
"Não falo castelhano", foi a resposta. Era um pescador vindo de Porto Alegre.

Dali a pouco chegou ao trapiche a autoridade local. Nos deu as boas vindas e disse que havia sido avisado da nossa ida. Gentil e breve, em seguida foi-se embora. O barco que estava do outro lado do rio veio atracar no trapiche com 2 tripulantes. E não vimos mais ninguém circulando por ali. Foram 4 pessoas ao todo. Não havia barulho nenhum. Nada. Absolutamente quieto. O sol estava se pondo.

Navegando por 6 vias fluviais
Para chegar a La Charqueada, descemos 24 mn pelo Guaíba, a partir do Veleiros do Sul, entrando na Lagoa dos Patos.

Lá no sul da lagoa, 114 mn depois, entramos no Canal S. Gonçalo e logo atracamos no Veleiros Saldanha da Gama onde terminou a primeira etapa da navegada.

No outro final de semana subimos as 40mn do Canal São Gonçalo passando pela eclusa, e chegamos à Lagoa Mirim por onde navegamos 16 mn, com pernoite na foz do Arroio Grande.

Dali cruzamos por umas 40mn de águas Mirins, contornando a Ponta Alegre, até entrarmos no Rio Jaguarão.
São mais 15 mn rio acima, até a cidade, onde pernoitamos. Voltamos à Lagoa Mirim e entramos em águas uruguaias.
Abaixo do paralelo 33, a 45mn da foz do Jaguarão, encontramos a foz do Rio Cebollatí.

Lá adiante, rio acima, finalmente encontramos o porto do nosso destino (14mn da foz).
Não é muita distância para um carro no asfalto, mas para uma embarcação de recreio, é longe!
Passamos a noite embarcados. De lá v
oltamos à cidade de Jaguarão, encerrando a segunda etapa.

No terceiro final de semana descemos o Jaguarão e, no rastro da navegada de Dom Pedro II, navegamos pela Mirim e S. Gonçalo. Passamos a noite navegando pela Lagoa dos Patos e pelo Guaíba até chegar de volta ao Veleiros do Sul.


Porto Alegre a Pelotas
A primeira etapa do passeio a La Charqueada aconteceu no sábado, 14 de junho.

Com a lancha abastecida com 600 litros de combustível e com os motores em aquecimento no trapiche do Veleiros do Sul, o comandante Adroaldo Costa, o primeiro a chegar, foi recebendo a tripulação na Aline: Joel Schröder, Augusto Chagas e eu.
Três marinheiros providenciavam os últimos preparativos para a partida. O tempo estava bem nublado.




Em menos de 2 horas vencemos as 24 milhas até o Farol de Itapuã, entrando na Lagoa dos Patos.

A lagoa estava extraordinariamente quieta. Foram 114 milhas de água espelhada, de norte a sul.

Paramos no Canal da Feitoria para almoçar. A lancha mal se mexeu na meia hora em que ficamos boiando por ali.


Logo mais entramos no Canal São Gonçalo e, às 13h atracamos no Veleiros Saldanha da Gama, em Pelotas.

As águas do canal de 40 milhas estavam altas, encobrindo os trapiches do clube.

Na sede, à volta da lareira acesa, aguardamos pela chegada da van do comandante.

O clube nos acolheu muito bem. Partimos de volta a Porto Alegre já no pôr-do-sol.



Pelotas a Arroio Grande
Na noite de quarta-feira, dia 18, véspera do feriado, saímos para Pelotas com planos de pernoitar na Aline.

Ao chegarmos no Saldanha da Gama encontramos os trapiches ainda mais submersos do que ao atracarmos a lancha uma semana antes.

Resolvemos pernoitar em hotel na cidade, onde chegamos à meia-noite.

 

 

Na manhã da quinta-feira, 19, tivemos que usar um barco de alumínio para carregar a Aline. Tínhamos muita bagagem. De tripé fotográfico a lasanhas, e de defumador portátil a computador.

Tínhamos também mais um tripulante, o Otaviano Costa, um cara sensacional que no paralelo 33 viria a se revelar um grande navegador.

Encontramos no clube pelotense um jovem alemão que havia atravessado o Atlântico sozinho em um veleiro de 25'. Estava velejando há vários meses e já havia estado em Jaguarão.

Subindo o Canal São Gonçalo logo vimos o porto de Pelotas.

Mais adiante passamos sob uma ponte ferroviária. É bem baixa e levadiça. Foi içada quando da nossa aproximação.

Em seguida passamos sob duas pontes rodoviárias, altas. Uma delas não serve para mais nada. Depois das pontes há uma linha de alta tensão.
Esta região tem histórias para contar desde 1737 quando uma base militar portuguesa foi fundada por ali.

Subimos o canal por mais umas 2 milhas até a barragem. O objetivo da obra é evitar a salinização da lagoa Mirim.

Antigamente, quando as águas das lagoas baixavam, a água do mar que vinha pela barra da Lagoa dos Patos prejudicava as lavouras de arroz e a coleta de água para a cidade de Rio Grande.

 

 

 

A "eclusagem" aqui foi bem mais simples do que em Bom Retiro, no Rio Taquari.
Sub-empreitamos a atracagem com o Otaviano.

 

 


Estávamos fora do horário de operação da eclusa.

A travessia é gratuita, desde que efetuada nos horários pré-determinados (9, 11, 15 e 17h).

A Universidade Federal de Pelotas, administradora da eclusa, cobra uma taxa para a operação fora dos horários.

 

Continuamos pelo canal S. Gonçalo passando por Santa Isabel, uma antiga colônia de pescadores onde desembarcaram Dom Pedro II e o Conde D'Eu em 1865. Vieram de Jaguarão pelo mesmo caminho que em seguida navegamos. Daqui foram a Rio Grande e daí voltaram ao Rio de Janeiro, pelo mar. O imperador não era de brincadeira: veio até Jaguarão para conferir a retirada dos espanhóis que tinham invadido a cidade, armando a maior reboldosa, poucos meses antes.
Este canal já havia sido navegado também por Auguste de Saint-Hilaire, em 1.820. Esse cara devia ter sido condecorado como o Rei das Indiadas.

O cabo da balsa atravessa o canal a 5m de profundidade (no meio), segundo informações obtidas.

34 mn adiante de Pelotas chegamos ao sangradouro da Mirim. É aí que a lagoa passa suas águas para o canal São Gonçalo.

O local é raso e vem sendo dragado desde o início do século passado.

Começa aqui o festival de mangrulhos da região. São estacas ou conjuntos de estacas para sinalizar baixios. Escuros, pouco visíveis e por vezes submersos. Não deixam de ser também um estorvo.

 

 


Arroio Grande




Não haveria tempo para chegar a Jaguarão com a luz do dia.

O río Yaguarón é de navegação arriscada por causa dos espigões de pedra submersos.

Decidiu-se passar a noite na barra do Arroio Grande, 15 mn a sudoeste do Sangradouro da Mirim, onde chegamos pouco antes do pôr-do-sol.

Comemoramos lá o aniversário do comandante.


O Adroaldo iscou um anzol com gordura da picanha e mandou ver. Um belo jundiá veio conferir.
A uns 300m de nós havia um barco de pescadores. Fora isso não havia nada. Só água pra todos os lados cobrindo as maraxas (as taipas de lavouras de arroz).
Estava tudo alagado.
Já quase escuro, um pescador saiu do tal barco remando uma canoa na nossa direção. A tripulação voltou a atenção para isso.
O que o cara vem fazer aqui?
Que negócio é esse?...
Alguém palpitou: vem pedir sal ou fósforo. Não deu outra!
"Vocês trocam um pouco de sal por peixe?". Demos a ele 1 kg de sal. Ele fez questão de nos dar uma meia-dúzia de jundiás, apesar da nossa resistência. Apenas mais um para fazer companhia ao que o cmte pescara vinha bem.

O Adroaldo limpou os 2 jundiás que foram para o defumador portátil do Chaguinhas. Foi um belo aperitivo.

Jundiá defumado com serragem de madeira da Nova Zelândia... Naquele brejo isso foi um exagero gastronômico.

Segue na Parte II
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(*) mn = milha náutica = 1,852km. Multiplique as milhas por 2 para ter noção em quilômetros.




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