Destino: La Charqueada
(Parte II)
Uma navegada de 600 milhas
por 6 vias fluviais até o interior do Uruguai
Texto e imagens: Danilo Chagas Ribeiro
Arroio Grande
a Jaguarão
A sexta-feira,
20/6, amanheceu nublada. Rumamos cedo para a cidade de Jaguarão.
Passamos pela Ponta Alegre
onde há um farol desativado. Naquela ponta encalhou um vapor luxuoso
no século passado depois de um forte temporal do sul. Quando o Sul
entra aqui, a coisa deve ser muito feia. Tem quase 100 milhas de água
para vir fazer onda nestas bandas.
A foz do rio Jaguarão está a umas 40 milhas da foz do A. Grande. Até a cidade são mais 16 milhas rio acima. O rio é divisa do Brasil com o Uruguai. Na foz há marcos dos 2 países.
O
rio Jaguarão tem vários molhes ou espigões de pedra com
1 metro de altura, construídos transversalmente no final do século
XIX com o fim de evitar o assoreamento.
Parece que a idéia funcionou já que o rio não precisou ser dragado desde então, segundo informou Roberto Couto, velejador do Iate Clube Jaguarão. Mas a navegação pelo canal precisa ser cautelosa.
Quando as águas estão altas, como era o caso, os espigões ficam submersos e não há sinalização. Veja as linhas escuras dentro do rio, na carta ao lado.
Os velejadores do Iate Clube Jaguarão contam de barcos acavalados sobre os molhes.
Com
as águas baixas, as extremidades dos molhes são sinalizadas
por bóias apoitadas. É uma iniciativa do ICJ que recolhe as
bóias quando o rio sobe para não perdê-las.
O marco brasileiro da divisa na foz do rio está inclinado como uma torre de Pizza n'água. A luminária do farolete sobre o marco foi retirada pelo ICJ e guardada, antes que o marco afunde.
Atracamos no Iate Clube Jaguarão pouco após o meio-dia. Tivemos uma excelente refeição a bordo. O Joel nos brindou com aipim com bacon, saladas, feijão com arroz, e picanha assada. Que cozinheiro de categoria!
O clube está em local com uma bela vista da cidade.
A maravilha
da Navegação Digital
Com
um notebook e as cartas digitalizadas, entrar no canal do Jaguarão
foi uma barbada. A Aline tem um plotter com as cartas da região
(no detalhe da foto ao lado), mas não se compara à carta digitalizada
no notebook.
Ver o barco movendo-se sobre a carta enquanto se navega pode ser a coisa mais inútil do mundo. Mas em um rio como o Jaguarão, é muito importante.
O velejador Adriel Wailler,
de Rio Grande, passou alguns dias mapeando o rio Jaguarão conforme
informações obtidas no ICJ. O resultado foi uma carta muito
bem feita, depois digitalizada e geo-referenciada. A calibragem está
perfeita.
Quando se vê na tela do Ozi Explorer o barco aproximando-se de uma ilha,
olha-se para a frente e ali está ela. Arroios, prédios, marcos,
tudo está perfeitamente localizado.
Parabéns ao Adriel Wailler pelo excelente trabalho!
Jaguarão
Cidade
de fronteira, com a economia baseada na agropecuária, Jaguarão
tem um povo hospitaleiro.
É eqüidistante de Porto Alegre e de Montevideo (380km).
Fomos muito bem recebidos pelo pessoal do Iate Clube Jaguarão. Os veleiros atracados, na maioria Scorpio 26, sofrem com as enchentes do rio. A variação de nível do rio é muito grande nas cheias.
Jaguarão teve o primeiro telefone instalado no Rio Grande do Sul. A Rua das Portas tem prédios com magníficos portais entalhados à mão, de altura imensa. Tem muitos prédios tombados. Tem muita história do século XIX, com as brigas de espanhóis e portugueses pela demarcação da fronteira desde 1802. O antigo Mercado Público, no estilo Colonial Português, o Teatro Esperança (em restauração) e as ruínas da Enfermaria Militar são testemunhos do prestigioso passado.
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Almoçamos a bordo, com o super serviço de Schröder Food Aboard Inc. Foi um daqueles almoços que clamam por um bom cubano logo em seguida. |
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Por
que "Rio Branco", e não Río Blanco?
Do
outro lado da ponte sobre o rio Jaguarão, em território uruguaio,
está Rio Branco, uma cidade fundada no final do século XVIII
com o nome de Arredondo.
Observe que "Branco" não é uma palavra da língua espanhola. A curiosidade está comentada no livro "Lagoa Mirim, um paraíso ecológico": da briga entre espanhóis e portugueses em 1750, ficou decidido que a Lagoa Mirim e seus afluentes pertenciam ao Brasil.
Em
1909 entretanto, sendo José Maria da Silva Paranhos o Ministro das
Relações Exteriores, o Brasil cedeu parte da Lagoa Mirim ao
Uruguai. Em 1915, em agradecimento,
o Uruguai mudou o nome da cidade limítrofe com Jaguarão para
Rio Branco.
Detalhe: o tal ministro era mais conhecido por Barão do Rio Branco.
O
jantar desta Sexta-feira aconteceu na Parrillada Tacuarí, em Rio Branco.
Fomos até lá por orientação e carona do velejador
Couto. A carne uruguaia é muito saborosa. Assada com fogo de lenha
e temperada apenas com salmoura e um pouco de alho. Entrecote e tiras. Estava
ótimo.
Despacho Radial
A
fronteira dentro da Lagoa Mirim não é demarcada, evidentemente.
A linha é toda quebrada e anda mais ou menos pelo meio da lagoa ao
sul de Jaguarão.
Para cruzar a fronteira e, principalmente, subirmos o Rio Cebollati precisávamos da autorização da Armada Uruguaya.
Ao solicitarmos ao operador de rádio a permissão para entrarmos no Uruguai, fomos extremamente bem atendidos. O comandante passou o nome da tripulação e foi solicitado a informar a hora da partida com destino às águas do Uruguai. Nesta ocasião recebemos o despacho radial, ou seja, uma autorização despachada por rádio.
Muito gentil, o marinheiro Elbio Silveira, operador da Armada Uruguaya, chamou-nos algumas vezes pelo rádio para saber como estávamos e disse que em caso de necessidade solicitássemos sua ajuda.
Nota 10 a la Armada Uruguaya !
A linha com cruzinhas na carta demarca a fronteira com o Uruguai.
Jaguarão à
La Charqueada
No sábado, 21, desatracamos cedo em direção a La Charqueada.
Tínhamos 73mn de águas desconhecidas pela frente. Destas, 45
foram navegadas na Lagoa Mirim através de 5 waypoints, contornando-se
Pontas, bancos e mangrulhos até a chegada à foz do Cebollatí.
Na
metade do caminho pela Mirim, enfrentamos um vento de uns 15 nós pela
proa ("orçamos"). A lancha batia bastante, tornando a navegada
algo desconfortável.
A entrada na foz do rio ocorreu sem problemas. Afinal, estávamos na tela do computador.
O rio estava fora da caixa na maior parte do trecho.
A
beleza do Cebollatí compensa largamente a grande navegada. A vegetação
bonita, as curvas a todo o momento, as ilhas enormes, a bicharada sobrevoando
a região, as águas claras, os cenários novos a cada curva,
enfim todo o conjunto traz uma sensação muito boa.
O fato de ser completamente despovoado completa o quadro.
Não há marcas de civilização.
Nem o tal padre português amigado com a negra deixou rastros... Parece
uma região virgem.
A margem do rio é ornamentada por sarandis de aparência dourada
nesta época, e por salseiros chorões. Coqueiros, árvores
altas, vegetação baixa e variada.
Vimos muitos bandos de marrecões,
socós, tarrãs, garças, mergulhões e outras aves.
Vários bandos de marrecas-piadeiras sobrevoavam a região.
"252º,
pai!"
Até
o paralelo 33º a tripulação era composta por 4 comandantes
(sob o comando do cmte. Adroaldo) e por um guri muito legal de 12 anos. Dali
em diante tínhamos também mais um navegador.
O Otaviano interessou-se pela navegação, a ciência que permite determinar a posição exata de uma embarcação, e logo aprendeu vários truques enquanto navegava.
Abaixo do 33 era ele quem operava o computador e passava o rumo ao comandante da Aline.
Foi muito bonito ver aquilo: "252º, pai!".
Também no dia seguinte,
quando entramos no rio Jaguarão, com aqueles espigões atravessados
e submersos nas duas margens, era o Otaviano quem ditava o rumo ao comandante:
"Curva a bombordo... Mais pra bombordo!". Que categoria!!!
Um
pouco de história
Não
se pode, de maneira alguma, desprezar as cartas convencionais. Cartas em papel
sobre as quais se traça a rota, e se anota horários de passagem.
Cartas que só precisam de luz para serem utilizadas.
Quando
tudo no barco falhar, lá estarão as cartas, mesmo que encharcadas,
prestando as informações.
É inegável, no entanto, o grande avanço da ciência
na navegação.
No ano 300AC Pytheas calculou a latitude da sua casa com precisão de 1/4 de grau.
Somente 2.000 anos mais
tarde, no século XVIII, a invenção do cronômetro
marítimo permitiu que a longitude fosse determinada a bordo.
Na foto ao lado está o time-keeper de 13cm de diâmetro desenvolvido por Harrison in 1761. Depois de navegar da Grã Bretanha à Jamaica (2 meses entre ida e volta) o relógio atrasou apenas 5 segundos, o que causava um erro irrisório para a época, de 1,25 minutos na longitude.
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Lado a lado, na mesma mesa de navegação, eu via o Otaviano operar o computador com apenas 12 anos, e o Chaguinhas, nos seus 73, com aquelas velhas cartas da Lagoa Mirim, com a batimetria do ano de 1.911, quase um século atrás. Eu via também a lancha plotada
sobre a carta na tela do computador, e percebia a confiabilidade da
longa experiência do navegador ao lado. |
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La
Charqueada
Após
atracarmos, fomos procurar por um lugar para comer no vilarejo, seguindo a
recomendação do Jefe de la sub-prefectura del Comando General
de la Armada Uruguaya.
No caminho, fomos visitar sua sede. Uma cela com grade, bem na entrada, chamou a atenção do Otaviano. Bem à moda das delegacias do farwest americano.
Saímos à pé, pela rua costanera, a rua na costa do rio. Estava frio, uma barbaridade... O restaurante faz parte de uma instalação simples, composta por cabanas e hotel, de muita procura no Verão pelos veranistas do Departamento de Treinta y Tres.
A porta estava fechada e não se via ninguém por ali. Bati na porta. A dona apareceu. Perguntei se poderíamos jantar.
Pase al comedor!
foi a resposta. Bueno...
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Sobre a lareira, um
cervo empalhado comprovava a tradição uruguaia
na caça. A noite estava fria demais. Caminhamos pela rua, quase encarangados. A cidadezinha tem as ruas limpas. É bem cuidada. O município, nos disseram, tem 2.000 habitantes. Vivem da pesca e do cultivo do arroz. |
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Um par de eletrodos ligados a um amplificador de som com autofalante é o material de pesca para peixes elétricos no Cebollatí. Quanto mais perto deles, mais alto o som.
Descendo
o Cebollatí
Apesar
da simplicidade do lugar, nossos celulares funcionavam em La Charqueada!
Através dele obtivemos a previsão do tempo para nossa região, a partir de um amigo em Porto Alegre.
A possibilidade de vento norte na Mirim fez com que resolvêssemos partir bem cedo no dia seguinte, Domingo, 22.
Despertamos antes do amanhecer.
Havia gelo no parabrisa da Aline.
Ao recolher o cabo da amarra, e depois o longo cabo da âncora que utilizamos na popa, minhas mãos ficaram tão frias que perdi o tato momentaneamente.
Ao
amanhecer o céu estava com um colorido sensacional.
Descemos o rio e navegamos pela Mirim sem vento. Havia um pouco de sol. Ao longe avistamos algo que poderia ser um navio pesqueiro, nas bandas da costa brasileira.
Subimos o Jaguarão chegando à cidade pela manhã. Almoçamos na mesma parrillada em que estivemos na véspera. A casa estava com vários clientes, todos brasileiros. Os preços estão muito baratos no Uruguai, favorecidos pelo câmbio de 9 pesos por 1 real.
"Não pega nem com boleadeira!"
A Aline ficou no Iate Clube Jaguarão. Saímos de
lá a caminho de Porto Alegre no domingo (22/6) à tarde, depois
do demorado reabastecimento da lancha (400 litros de diesel trazidos em doses
homeopáticas).
A van do comandante vinha lotada. Além dos 5 tripulantes, tínhamos também o Orí, o motorista que a trouxe de Pelotas. Havia uma festa, do tipo quermesse, na praça central de Jaguarão. Tendas por todo o lado, trânsito engarrafado, música bem alta, muita gente circulando e até blindados Urutu em exposição.
Neste
cenário, e mais perdidos que cachorro em dia de mudança, perguntei
a umas gurias que caminhavam bem faceiras pela calçada qual era o caminho
para P. Alegre. Deram de ombros, desconfiadas da legitimidade da pergunta
(nessas horas, a gente tem que chamá-las de "Ô minha filha!"
pra acabar com qualquer suspeita).
Lá do fundo da van,
diz o Orí:
Essas gurias de Jaguarão são muuuuuito ariscas. Mais não
pega nem com boleadeira!
Más a la pucha tchê! Que gaudério...
"E sou Camaqüense!", foi logo se anunciando ao chegar com a van de Pelotas.
Em protesto às gurias ariscas de Jaguarão, aí vai o flagrante da cata de carrapicho na cola da mula mansa, a caminho do ICJ.