Cargueiro resgata tripulantes e veleiro é deixado à deriva
"Barcos não foram feitos para saltar muros"
Danilo Chagas Ribeiro
1º Junho 2008
Os tripulantes do veleiro argentino Ilikai que participavam do Crucero de la Amistad, foram resgatados ontem pelo navio filipino Kickapoo Belle a 64 milhas da costa gaúcha e já estão à salvo em Rio Grande.
O veleiro de 41 pés ficou à deriva (veja foto ao lado, na semana passada, em Rio Grande).
Costa difícil
O mar dos gaúchos não é pior do que muitos outros. Sim, o mar aqui pode ter ondas altas, ventos fortes e corrente. Em 2004 tivemos até um furacão, bem na fronteira com Santa Catarina. Isso foi uma exceção. Mas se o nosso mar é igual aos outros, a nossa costa, esta sim, é bem pior que muitas outras. Saindo de Rio Grande em direção ao norte, não há abrigo até chegar em Imbituba,SC. São mais de 300 milhas de navegação direta, sem chances de refúgio.
Navegando-se a 5 ou 6 nós, em média, são necessárias 50 a 60 horas no mar. Em 2007, a bordo do Delta32 Feitiço, levamos 48 horas de Rio Grande até passarmos ao largo de Imbituba, com destino a Florianópolis. Em caso de vento contra, ou vai assim mesmo, ou volta. Não tem onde se abrigar.
Vai e volta
Que não se crucifique o comandante argentino Miguel del Rio pelo ocorrido. Todos cometemos erros navegando, como na vida. Nem se sabe ao certo se o que levou ao resgate e ao abandono do barco tem a ver com falha humana. Consta que horas antes do acidente com o comandante, ele resolveu voltar por causa do nordestão pela frente. Claro, porque isso representa deslocamento irrisório e muito desconforto. Horas depois, já com a proa para o sul, o vento virou novamente. Passou a soprar do sul e forte, portanto na cara outra vez. O comandante então fez 180º de novo, agora com a proa para o norte (quase nordeste, na verdade). Isso me faz lembrar da frase "A felicidade nem sempre está a sotavento".
Quando o vento apertou já era noite. Estavam em dois tripulantes apenas. Isso é pouco para enfrentar vento forte em uma costa dessas, aliás vento de conhecimento do comandante Miguel del Rio, antes de desatracar. Contrariado, o comodoro do Crucero de la Amistrad, Carlos Salvochea (foto ao lado), lamentou a decisão do comandante, mas não pode impedir a partida.
Em entrevista à RBS TV na tarde de ontem, o Comte Guto Vieira da Fonseca, ex-comodoro do Rio Grande Yacht Club e organizador da recepção ao Crucero de la Amistad (ao centro, na foto ao lado), informou que o barco desgarrado do cruzeiro enfrentou mais de 35 nós de vento. Com 3 tripulantes é mais fácil enfrentar mar assim por 48 horas porque enquanto 2 fazem a faina, outro descansa. Sempre haverá alguém em boas condições.
Obs.: a imprensa, em geral, adora mostrar desgraça, mas quando é para divulgar os eventos náuticos, não aparece.
Crucero de la Amistad
O Crucero de la Amistad, ou Cruzeiro da Amizade, nesta sua segunda edição, é possivelmente o mais importante cruzeiro da navegação de recreio sul-americana, reunindo 28 veleiros que partiram de Buenos Aires com destino ao Rio de Janeiro, com aproximadamente 200 tripulantes, incluindo jovens e até um septuagenário, em uma rota em torno de 1.500 milhas náuticas (foto em recepção no RGYC). Na pior parte da rota, a costa gaúcha, um dos veleiros teve problemas. Na verdade, o barco não estava mais no cruzeiro. O Ilikai e 4 outros veleiros, saíram de Rio Grande desobedecendo a recomendação da organização do cruzeiro de aguardar por condições meteorológicas favoráveis.
Cansaço
O resgate ocorreu a umas 200 milhas da barra de Rio Grande, na manhã de 30 de maio. Isso significa que estavam navegando entre umas 30 a 40 horas. Com certeza o cansaço estava batendo na tripulação, mas não no mar: ondas altas na noite, e só mais tranqüilo pela manhã do outro dia (veja foto do mar a bordo do Kickapoo Belle, abaixo). Não tenho muita experiência nesta costa, mas sei como é. Pegamos também um vento forte à noite, depois de uma calmaria. As ondas são como paredões. Foi uma correria a bordo entre 4 tripulantes para rizar e jaibear. Não se consegue dormir com o marzão "pegando". Tornamo-nos zumbis na noite, fazendo a faina porque tem que ser feita, ou mantemo-nos acordados porque não conseguimos dormir tal o balanço, embora o corpo peça descanso.
Costela quebrada
Consta que o Ilikai teve problema com a genoa, que não enrolava. Como o barco teria começado a se atravessar nas ondas, cortaram a escota com uma faca, deixando a vela bater e atormentar os ouvidos. Em seguida içaram uma genoa menor no baby stay (estai auxiliar, quase na proa). Com o balanço forte do barco por causa das ondas, o comandante sofreu uma queda e quebrou (ou fissurou) duas costelas. Tive uma costela fissurada em uma regata no Guaíba. Não conseguia respirar fundo e era difícil me movimentar por causa das pontadas que sentia.
Mayday, mayday
Costela esgualepada, ventão, ondas altas, cansaço, um tripulante apenas para a faina, e quem sabe até consciência pesada por ter saído ao mar contra a opinião de seus pares. E, o de menos, a irritante genoa panejando solta e azucrinando a vida. O piloto automático estava em pane. Do local de resgate a Imbituba (o abrigo mais próximo), tinham ainda umas 130 milhas pela frente, ou algo como 20 horas de viagem. Com este quadro, o comandante resolveu jogar a toalha. Pegou o microfone e disparou um mayday pelo canal de emergência do VHF.
Teve muita sorte.
O resgate
O Kickapoo Belle estava a 20 milhas (em torno de duas horas) do Ilikai quando ouviu o pedido de socorro. O navio fazia rota do Rio de Janeiro ao Peru, via Estreito de Magalhães. Ao aproximar-se do veleiro (foto acima), dois tripulantes filipinos desceram a escada "quebra-peito" para auxiliar a remoção do ferido. Uma maca foi baixada até o veleiro e depois içada com o comandante. A operação toda, no entanto, levou várias horas.
Abandonando o barco
O veleiro foi abandonado. Mas antes de entregar o Ilikai à própria sorte, ligaram o motor em meia marcha e engataram a transmissão. O leme foi amarrado na posição central. Imagine a cena, vendo o barco partir no marzão, sem tripulação.
Que momento...
De volta a Rio Grande
Assim que o Kickapoo Belle entrou na barra de Rio Grande, uma pequena lancha da Marinha (foto abaixo) foi ao encontro do navio para o transbordo dos tripulantes do Ilikai. O comandante foi atendido no hospital de Rio Grande. O Comandante Guto Vieira da Fonseca providenciou hospedagem para a tripulação.
Esperando pela janela
Os ventos predominantes na costa gaúcha são o nordeste e o sudoeste. O sudoeste, ou sudeste também, entram quando chega uma frente fria. Se a frente for fraca, é possível que antes do veleiro chegar a Florianópolis o nordestão volte a soprar. Há vários casos de velejadores que tiveram que voltar, já quase chegando ao destino, valendo a mesma coisa para quem desce a costa com o nordeste e encontra uma frente fria pela proa. É preciso estimar corretamente a duração da "janela" de vento favorável.
Para aproveitar a frente fria (que vem do sul), os velejadores saem ao mar quando a frente está chegando a Rio Grande. A chegada da frente é acompanhada por tempestade, mas dura pouco. Assim, a regra geral é encarar a bronca na saída para garantir a chegada. É ruim, mas é favorável, se é que dá para entender...
"Barcos não foram feitos para saltar muros"
É preciso ter paciência e aguardar vários dias em alguns casos. A comodoria do RGYC, já acostumada a essas situações, é criativa e inventa atividades gastronômicas como as tainhas em fogo de chão (foto ao lado).
Há uns 8 anos, o experiente Comandante Marcelo Caminha Shogun, com várias travessias na costa gaúcha, dentre outras, estava no Rio Grande Yacht Club esperando o nordestão se acalmar para poder subir a costa com destino a Angra dos Reis. Eram vários navegadores de Porto Alegre aguardando uma frente fria, conta ele.
Havia um barco argentino nessas mesmas condições. Seu comandante perdeu a paciência e resolveu subir a costa com o vento na cara.
Um dia e meio depois, os comandantes gaúchos ainda aguardavam a hora de partir. Estavam no restaurante do RGYC quando entrou o comandante argentino e seus tripulantes. Houve silêncio geral.
O comandante do 48 pés portenho disse para que todos ouvissem: "Barcos no fueron hechos para saltar muros".
Fotos: Guto Vieira da Fonseca. Fotos a bordo do navio: tripulante filipino não identificado. Colaboração: Jessé Freitas. |