Pequeno calado, grandes paisagens
Paisagens para poucos
Danilo Chagas Ribeiro

02 Dez 2008
F
azia tempo que o Comandante Geraldo Knippling e eu vínhamos espreitando uma janela de tempo razoável para navegar na Ponta Escura e no Morro da Formiga, região de águas rasas da foz do Rio Guaíba e noroeste da Lagoa dos Patos.

Esperávamos por vento do quadrante Oeste, de preferência fraco, com duração prevista de uns 3 dias. Depois de algum tempo a previsão aconteceu.

Ponta Escura
Desatracamos o veleiro Magana  do Veleiros do Sul no meio da tarde de uma quarta-feira, 16 de Julho de 2008, com destino à Ponta Escura. A região não é conhecida da grande maioria dos velejadores gaúchos devido à profundidade muito baixa. Situa-se na costa oeste do Guaíba, junto à Lagoa dos Patos. As águas na região são tão baixas, que mesmo em embarcações de baixo calado é necessário conhecer a rota de acesso para não encalhar.

Rede pela proa
Logo no início do passeio, com apenas duas milhas navegadas, tendo a Ilha das Pedras Brancas no través de boreste, o Magana reduziu a velocidade subitamente por causa de uma rede enroscada no hélice. Na verdade, era um pedaço de rede de superfície à deriva, com uns 30m de comprimento, com bóias e cabos. Uma rede presa ao hélice representa um contratempo importante à maioria dos barcos.

Mas como o Magana seguidamente navega em profundidades muito baixas, foi equipado com um cortador de juncos (weed cutter) para uso em situações de emergência em banhados, onde a vegetação aquática pode facilmente enroscar-se ao hélice. Já tive essa má experiência com juncos na Lagoa da Pinguela, litoral norte do RS. Trata-se de duas peças, uma fixada ao eixo do hélice e outra ao "pé-de-galinha", que funcionam como uma tesoura circular (veja as animações). Desvencilhado o hélice, ensacamos a rede e seguimos a motor pelo Guaíba espelhado.

Baixo calado e paisagem
A maior parte dos veleiros da classe oceano tem calado acima de um metro, por conta da quilha fixa. De modo geral, esses veleiros são projetados para navegar no mar. Na navegação em lagos, como em Brasília, ou em rios, como no Guaíba, o calado das embarcações pode representar uma restrição importante no acesso a belos locais de interesse da navegação de recreio.

A bolina, uma espécie de quilha móvel que permite variar o calado, encarece o barco e pode apresentar algumas desvantagens, como o ângulo de orça e a manutenção, mas amplia muito o horizonte do velejador em águas rasas. Via de regra, a quilha móvel implica em disposição interna (layout) modificada. Alguns veleiros têm uma parede central a meia nau (foto abaixo, no Magana), dentro da qual a quilha movimenta-se.
Na navegação em zonas rasas, variações de apenas 30cm de calado podem fazer uma significativa diferença no acesso. Como a paisagem está na costa, e não no meio do mar, o baixo calado das embarcações tem grande importância na navegação de recreio, principalmente em águas doces.

O Magana está equipado com uma quilha móvel que, quando recolhida, o faz calar apenas 54cm. A quilha desloca-se verticalmente através de um eixo de rosca sem-fim que foi utilizado na movimentação dos flaps dos Boeings 707, adquirido pelo Comandante Knippling na VARIG.

Amarrando o barco no mato
Cruzamos o canal de navegação do Guaíba nas proximidades da Ilha do Junco e navegamos em região de baixios, chegando na Ponta Escura depois do pôr-do-sol.
A atracação ocorreu às 10 da noite e foi auxiliada por três faroletes, sendo dois embutidos nos costados do Magana (docklights), e outro mais potente, instalado no púlpito de proa antes de atracar (observe na foto ao lado). O efeito das luzes na água, navegando-se com o rio quieto, é muito bonito.

Era preciso amarrar o barco no mato e a vegetação ao alcance da mão era muito fina, imprestável para fazer a amarração (foto ao lado). Os galhos que serviam estavam lá pra dentro do mato. Com o croque, o Mestre levou a ponta de um cabo com alça por entre os arbustos, e o deixou caído por cima de um galho que servia para amarrar. Em seguida, enganchou o cabo por baixo do galho, trazendo a alça de volta, como ilustrado ao lado. Algo muito simples, depois de se ver alguém fazer. Ao desamarrar, é conveniente desfazer a alça antes de colher o cabo, para que não se prenda no galho.

Calefação a bordo
Apesar daqueles dias do passeio não terem sido frios, à noite esfriava bastante. Em pleno inverno, com neblina baixa, atracado na área alagada da Ponta Escura, a umidade devia ser de 100%.
Mas dentro do Magana, a temperatura e a umidade eram excelentes. O Comte Knippling equipou o barco com um eficiente sistema de calefação Webasto, alemão. Um silencioso queimador, isolado no paiol de popa, aquece o ar soprado por ventilador, sem contato com a chama. Uma  das vantagens da Webasto é utilizar diesel, o mesmo combustível do motor, e não oferecer risco de contaminação do ar ambiente com gases do combustível. A instalação do sistema é dotada de detalhes de segurança, como para o caso de entrada de água pelo escape dos gases. A área aquecida inclui o pilot house, permitindo não só pernoitar como também navegar em temperatura agradável.

Mestre do convívio confinado
O clima a bordo não poderia ter sido melhor. Demos muitas risadas.
O Mestre é de uma cordialidade e atividade incrível (ou proativo, na palavra da moda).
Essa maneira de ser do Comte Knippling já tinha ficado bem clara quando navegamos no Canibal para o Porto do Barquinho. Ex-comandante da aviação comercial, com muitas horas de vôo*, o Mestre conhece muito bem a importância do bom convívio, principalmente quando se está confinado. Se eu fosse escolher um tema para ele dar aulas pra navegadores, dentre tantas fainas em que ele é um grande mestre, sem dúvida seria: "Como conviver bem a bordo".

Morro da Formiga
Uma aranha tecendo a bordo ao ar livre no final da quarta-feira, garantia tempo bom para o dia seguinte (foto ao lado).

Na manhã de quinta-feira, desamarramos o Magana da Ponta Escura e rumamos para o Morro da Formiga, na Lagoa dos Patos. Navegamos por uma passagem crítica cartografada cuidadosamente pelo Mestre em diversas passadas ao longo de anos. O caminho navegável junto ao morro é estreito e delimitado pela costa rochosa a noroeste, e pela Coroa do Morro (baixio) a sudeste. Veja no artigo do Comandante Knippling as recomendações e restrições.

É uma região de águas baixas, onde a navegação é possível apenas para calados de até 1 metro, de modo geral.

Prainha
A prainha na costa leste do Morro da Formiga, onde chegamos às 10:30h da quinta-feira, é um belo atrativo desse roteiro (foto acima). Encrustrada no morro de costa rochosa, a praia está voltada para sudeste, com ampla vista para a Lagoa dos Patos.

A extremidade nordeste da praia (foto ao lado) é guarnecida por formações de lajes, por onde se pode caminhar entre os vestígios deixados por capivaras.

A prainha de uns 60 metros de extensão situa-se a 6 ou 7 milhas a sudoeste da ilhota da Ponta Escura.

Junto aos enormes matacões há abundante vegetação nativa (foto abaixo), incluindo cactus e palmeiras. Na beira do mato há uma cruz improvisada demarcando o túmulo de um pescador. O céu não tinha nebulosidade alguma e a Lagoa dos Patos estava extraordinariamente calma (observe na foto abaixo).

Com a proa do Magana já encalhada na praia, o comandante trouxe a escada que estava guardada no paiol de popa. Foi muito bem bolada por ele. Apóia-se no púlpito e na roda de proa, permitindo fácil desembarque (foto).
Nossa chegada interrompeu a refeição dos urubus que se alimentavam com os restos de peixes deixados por pescadores.

Tesouro
Já quase ao meio-dia recolhemos os ferros da proa e da popa, e contornamos o Morro da Formiga, de uns 100 metros de altura. Passamos pela Praia do Canto do Morro (costa oeste), onde havia uma capela construída no fim do século XVIII ou no início do XIX (não existe mais nada). Segundo um velejador veterano que andou por lá à cata de tesouros, conta a história oral que os jesuítas teriam escondido ouro sob a capela, em um sítio onde havia 2.000 índios. Bueno... As paredes teriam sido dinamitadas por uma excursão de paulistas em busca do tesouro há algumas décadas. Conheça outra história sobre o tesouro.

Praia do Pimenta
Continuando o contorno do morro, já no rumo norte, chegamos à Praia do Pimenta, onde almoçamos em torno da uma hora da tarde. Em frente à essa praia, a uma milha aproximadamente, situa-se a pedregosa Ilha do Veado (foto ao lado). A região estava tomada por redes de pesca de superfície, bem sinalizadas. Havia uns 3 ou 4 barcos de pescadores atracados na praia.

Da Praia do Pimenta avista-se uma torre que parece abandonada no topo do Morro da Formiga. Teria sido construída para detectar eventuais princípios de incêndio na mata de eucaliptos plantados pela Borregard (depois Riocell, e hoje Aracruz). Avista-se também da Praia do Pimenta as falésias da costa oeste da Lagoa dos Patos (veja na foto mais acima, por trás da ilha).

Lagoinha Azul
Do Morro da Formiga navegamos umas 3 milhas para o sul, até a Ilha do Barba Negra. Na costa norte da ilha há um acampamento de pescadores. Há mais de 60 anos Leopoldo Geyer tomou esse mesmo rumo, e na ilha soltou pombos-correio para mandar mensagens à família. Contornando-se a ilha do Barba Negra pela costa oeste, há uma estreita e rasa entrada em meio aos juncos, que dá acesso a um abrigo perfeito das ondas. Às 15 horas chegamos à tal passagem para a "Lagoinha Azul" (foto acima). O acesso precisa ser feito "com fé", acelerando tudo para vencer o curto baixio que, na ocasião, devia ter uns 60cm de profundidade.

Retorno pela Ponta Escura
Na volta ao Rio Guaíba passamos pela Ponta Escura novamente, em torno das 5 da tarde. O local faz parte da reserva ambiental pertencente ao Parque de Itapuã onde é proibido caçar, pescar, cortar árvores e até  mesmo desembarcar.

O horário em que passamos por ali, no fim da tarde, propiciou fotos bonitas da região alagada (foto ao lado), onde vivem jacarés, lontras e ratões do banhado. Como outros recantos do Guaíba, este é um dos bonitos lugares reservados a embarcações de baixo calado.

Subimos parte do Guaíba para pernoitar no Arroio Araçá. Navegamos pelo Canal do Junco, já escuro. Passando a Coroa do Mato Alto, já pelo canal de Belém, guinamos a bombordo em direção à foz do arroio aí pelas 8 da noite. Uma "luz misteriosa" foi avistada na noite, mas isso já é história para outra ocasião. Ao atracarmos na árvore favorita do Mestre, na margem direita do arroio, fiz a amarração com a técnica aprendida na véspera, que nem guri querendo mostrar a lição aprendida.

Margens de um curso d'água
E falando em "margem direita", lembrei do diálogo que ouvi há alguns anos. Um jovem navegador contava a outro sobre algo que tinha observado na margem direita de um arroio. Esse outro, um sessentão, indagou com soberba:
- Ué... "margem direita"?! Mas eu não sei se tu tava indo ou vindo... Como é que eu vou saber qual é a margem? E riu bastante, debochando da "inexperiência" do jovem.
Pois não sabia o tal navegador que margem direita é a que fica à direita de quem desce um curso d'água ("desce" quem vai no sentido da correnteza).

A foz do Arroio Araçá é assoreada e o acesso é crítico. Em águas altas é possível passar com calado de 1,60m. O Arroio Araçá é um excelente abrigo de mau tempo. Em que pese susto recente, a atracação nas margens do arroio é tranqüila.

Estripulia de mestre
Aí pelas 09:00h da manhã de sexta-feira, com o Magana ainda amarrado, café da manhã tomado, e tudo arrumado pra desatracar, o Mestre me saiu com essa:
- Vou tirar umas fotos lá de cima do mastro.
- Hein??? O que?... Vai aonde?...
- Não vai, não. Deixa que eu vou e bato as fotos!
- Não, respondeu o Mestre, com firmeza. Quem não conhece esse mastro pode sofrer acidente.
E agora?... O que é que eu digo pra ele?...
Sabe como é um cara que tem segurança, que tem determinação?
Pois é...

Com 86 anos de idade, estava me dizendo que iria subir no mastro do barco naquele momento, e era isso!!!

E lá vai ele com a câmera pendurada no pescoço... Sem adriça, sem nada, no peito e na raça. Fiquei besta de ver.

Assista ao vídeo e observe que, lá em cima, ele passou para o outro lado do mastro. É quase uma manobra de circo, que implica em ficar suspenso apenas pelos braços por alguns segundos. Na verdade, o Mestre é um gurizão.

Magana
A navegação é levada muito a sério pelo Comte. Knippling. Certamente isso tem muito a ver com suas mais de 40.000 horas de vôo. O Mestre navega, de modo geral, com rotas previamente planejadas, e tem uma grande experiência em navegação. Utiliza sempre rumos magnéticos (e não os verdadeiros).

O Magana é um motorsail de 31 pés, muito bem equipado ("magana" significa moça namoradeira, na gíria do nordeste brasileiro). Um dos ecobatímetros a bordo indica a profundidade à vante da proa.

Popularidade do Mestre
Construído em madeira em São Lourenço do Sul, o barco está equipado com ferragens de excelente qualidade. A construção é esmerada, e completamente voltada à navegação de cruzeiro. Limpador de parabrisa, rádio SSB e motor de popa de reserva fazem parte do equipamento do Magana.
Tanto o barco quanto seu comandante são muito conhecidos na região. O Comte Knippling foi saudado por amigos e conhecidos em diversos lugares por onde navegamos neste final de semana.

Gastronomia
A geladeira à gás estava recheada de mimos gastronômicos preparados pela Dona Regina, esposa e imediata do Mestre no Magana. Cada quitute que ela preparou e embalou vinha identificado. De camarões com catupiri a guisado com quiabo, estava tudo pronto, bastando descongelar. Uma delícia. Foi um festival gastronômico. Tinha até ambrosia, minha sobremesa preferida, que ela lembrou de preparar!
Cerveja bem gelada para acompanhar.

Um belo passeio
No retorno ao Veleiros do Sul, já no Guaíba, cruzamos pelas gurias treinando para os Jogos Olímpicos de Beijing. Fernanda e Isabel navegavam seguidas pelo treinador Paulo Ribeiro. Chegamos ao clube no início da tarde, onde almoçamos.

Os dias tão escolhidos foram de clima ameno e de pouco vento. Navegar em um bom barco apreciando belas paisagens é muito bom, mas não me canso de dizer que o principal prazer ao navegar é a companhia, e não o barco, ou as paisagens. Agradeço ao Mestre pelo privilégio de sua excelente companhia a bordo do Magana, visitando bonitas paisagens que eu não conhecia. E agradeço à Dona Regina pela mordomia gastronômica preparada com tanto carinho e competência.
___________
(*) O Comandante Knippling tem mais de 40.000 horas de vôo. Formado em Aviação Comercial pela Purdue University, foi agraciado com a Ordem do Mérito da Aeronáutica.

Fotos: Danilo Chagas Ribeiro - Animações: http://www.spursmarine.com/shaft_main.htm

Vídeos do passeio

Edição do Comte Geraldo Knippling

 

Edição de Danilo Chagas Ribeiro

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O Rio Guaíba e a Lagoa dos Patos foram mapeadas pelo Comte Geraldo Knippling em belíssimo trabalho apresentado em forma de livro, em papel couché, contendo rotas, rumos, waypoints, informações e muitas fotos bonitas, algumas aéreas. Além de ser uma referência imprescindível a bordo, é um livro que interessa a todos que apreciam belas paisagens.
À venda na secretaria do Veleiros do Sul (fone 51.3265-1733)

Comentários: info@popa.com.br

 

 

 

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